Modulações históricas da crítica literária

Evgenia Tut, série «Mapas», 2022
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Por EDGARD PEREIRA*

Literatura em trânsito: da autonomia do texto ao inconsciente político — o século dialético da Teoria Literária

1.

O anelo de se criar uma ciência relacionada ao conhecimento da literatura muito cedo se revelou. A alternância de tendências e métodos de abordagens tem decorrido invariavelmente precedida por constatações que defendem o alargamento de horizontes e perspectivas culturais. Os sucessivos debates ocorrem quase sempre na moldura das dialéticas que envolvem o conflito entre o materialismo histórico e as interpretações humanistas.

Fernando Pinto do Amaral afirma, em ensaio desenvolvido na tentativa de abarcar os desdobramentos metodológicos da crítica moderna: “A ligação da modernidade à eclosão da teoria literária foi, de resto, propugnada por Gerald Genette, que afirmava peremptoriamente num texto de 1972: A teoria literária será moderna, e ligada à modernidade da literatura, ou não será nada”.[1]

No final do século XIX, surgem tentativas de pesquisa literária, pavimentadas de tendências cientificizantes, denominadas Determinismo, preconizadas por Taine: divulgam ser a literatura decorrente do entrelaçamento de três fatores (“a raça, o meio e o momento”). A partir de 1915, forma-se na Rússia um grupo, integrado por Eikhenbaum, Roman Jakobson, Tynianov, Tomachevbsky, Vladimir Propp, conhecido como formalismo russo. Em síntese, os formalistas postulavam uma disciplina autônoma da literatura. “Os especialistas deveriam então estudar, dentro da tradicionalmente chamada ‘literatura’, a sua literariedade. Daí que o principal passasse a ser a obra propriamente dita, em vez de quaisquer causas ou factores pré-textuais como a Psicologia, a Sociologia, a História geral, os elementos biográficos, etc.”.[2]

A saturação de procedimentos estruturalistas, gerados pela efervescência de métodos de investigação literária postos em circulação, favorece a aceitação de categorias fundamentais, conhecidos como função poética e literariedade, desenvolvidos respectivamente por V. Propp e Roman Jakobson (“o objeto da ciência literária não é a literatura, mas a literariedade”).

No estudo minucioso focado na obra de Dostoiévski, Problemas da poética de Dostoiévski, de 1929,Bakhtin detém-se em torno do que denomina romance polifônico, elaborado sob o influxo de numerosas vozes, num discurso dialógico, distinguindo-o do gênero monológico, a que pertence o romance tradicional. “Dostoiévski tinha o dom genial de auscultar o diálogo de sua época, ou, em termos mais precisos, auscultar a sua época, como um grande diálogo, de captar nela não só vozes isoladas, mas antes de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas” [3].

Surpreende, na obra ensaística de Bakhtin, cuja relevância passa a ser reconhecida na década de 70, o cuidado de ver, na obra analisada, reflexos de toda uma época, o apelo à totalidade, a visão de mundo de um determinado contexto, filtrada pela lente de Dostoiévski: “Ele procurava interpretar e formular cada ideia de maneira a que nela se exprimisse e repercutisse todo o homem e assim, em forma torcida, toda a concepção de mundo deste do alfa ao ômega. Só uma ideia que comprimisse uma orientação espiritual completa era por Dostoiévski convertida em elemento de sua visão artística do mundo” [4]. O recorrente destaque atribuído à categoria do diálogo constitui uma especificidade do teórico russo, inteiramente seduzido pela competência do romancista em modelizar esta categoria, de grande importância na ficção.

Através do diálogo, “o homem não apenas se revela exteriormente como se torna, pela primeira vez, aquilo que é, repetimos, não só para os outros, mas também para si mesmo. Ser significa comunicar-se pelo diálogo. Quando termina o diálogo, tudo termina” [5]. A tendência científica será retomada por Northrop Frye (The Anatomy of Criticism, 1957), em queanalisa formalisticamente a obra literária, considerada uma entidade autônoma em relação às influências do autor ou da realidade. Northrop Frye alinha-se em rota próxima das ideias de Althusser, quando indicia o interesse em considerar a fundação da cultura em termos sociais e a noção de que a literatura tem quer ser lida como uma mediação simbólica sobre o destino da sociedade.

2.

O fim do milênio revela-se pródigo no campo da teoria literária, com o surgimento de renomados especialistas, providos de instrumentos originais de investigação científica do texto literário. O Estruturalismo instala-se de forma abrangente, arregimentando esforços e um ordenado substrato cognitivo direcionado ao âmbito da literatura. Necessário referir o seu caráter aglutinador, no sentido de englobar derivas conceituais e metodológicas preexistentes.

Assim, as articulações iniciais com as teorias linguísticas de Ferdinand de Saussure (1916); as ramificações oriundas do formalismo russo (1915 – 1960); as influências da antropologia (Claude Levy-Strauss) e da etnologia (Michel Foucault), atuantes nos anos 60. O grande paradigma teórico, nos anos 1970, se desenvolve sob a égide do Estruturalismo, em quatro modalidades distintas, algumas gestadas na década anterior, como o fenomenológico, de Sartre e Merleau-Ponty. O aspecto heterogêneo do estruturalismo expande-se, com a nova crítica francesa, em robustas tendências, atendendo a perfis distintos e mutações de perspectivas diante do fenômeno da modernidade. O estruturalismo intertextual, incentivado por Tzvetan Todorov e Julia Kristeva, configura o texto como uma constelação de textos adicionados.

O estruturalismo genético de Levy-Strauss, Goldmann e Gérard Genette, surge marcado pelo afã de estabelecer o ‘sistema de relações’, tornando-se o paradigma teórico de maior impacto. Lucien Goldmann apresenta o esboço do que denominava “estruturalismo genético”, que acenava para a relação dialógica entre as estruturas da obra e as de grupos sociais.

Na transposição do plano da realidade para o da representação revela-se a tarefa do escritor de ofício. A transposição do real para a ficção é uma operação sofisticada, refinada, que se vale dos dados específicos, singulares, da intuição do escritor. A condição humana não pode prescindir do traço de historicidade, ou seja, a sua inserção num contexto social específico. Tendo como objeto de pesquisa uma obra de Pascal (Pensamentos) e quatro tragédias de Racine (Andromaque, Britannicus, Bérénice e Phèdre), pontua Goldmann: “Tentaremos mostrar como o conteúdo e a estrutura dessas obras são melhor compreendidos à luz de uma análise materialista e dialética” [6]. Em seguida, afiança: “Uma ideia, uma obra, só recebe sua verdadeira significação quando é integrada ao conjunto de uma vida e de um comportamento. Além disso, acontece frequentemente que o comportamento que permite compreender a obra não é o do autor, mas o de um grupo social (ao qual o autor pode não pertencer) e sobretudo, quando se trata de obras importantes, o comportamento de uma classe social” [7].

O pioneiro da crítica marxista, o teórico húngaro Lukács, discutindo as possibilidades existenciais, considera: “É evidente, portanto, que a literatura realista, na medida em que reflete a própria realidade fiel e objetivamente, representa as possibilidades abstratas e concretas do homem nas suas relações mútuas” [8]. O fator de mediação entre a obra e o grupo social, fundamental para a compreensão do fenômeno literário, considerado “instrumento objetivo e controlável permitindo separar numa obra o essencial do acidental” constitui, para Goldmann, a “noção de visão do mundo”.

A questão é colocada nestes termos: “O grande mérito deste último método consiste, entretanto, no fato de ter trazido – pela integração do pensamento dos indivíduos ao conjunto da vida social e notadamente pela análise da função histórica das classes sociais – o fundamento positivo e científico do conceito de visão do mundo, retirando dele qualquer caráter arbitrário, especulativo e metafísico” [9].

Além da relevância indiscutível no emaranhado de abordagens e métodos, releve-se o mérito de distanciar a prática da crítica da teia do sociologismo, retirando a tensão do interior do homem para se abrigar no sistema de relacionamento externo, como formula Eduardo Portela: “O reverso dessa medalha é o sociologismo, que fez da literatura uma sub-ciência social ou política” [10].

3.

A quarta corrente engloba os teóricos do eixo básico do estruturalismo, os militantes da análise estrutural do discurso (lírico e narrativo), subsidiado por fundamentos exarados por Roland Barthes, Greimas, Genette, W. C. Booth, A. J. Courtés, Benveniste, R. Ingarden. O legado de maior consistência consolidou-se no esforço de formular o que foi considerado um dos mais abrangentes contributos à literatura nas últimas décadas, o modelo de análise estrutural do texto. A enumeração dos especialistas não lhes confere exclusividade em determinada área, ao contrário, as intervenções teóricas se entrecruzam e enriquecem mutuamente.

O escopo da crítica passa a ter sua atuação direcionada para o estudo pormenorizado dos elementos constitutivos de uma obra, compreendida como um feixe de estruturas, no esforço de delimitar os nexos entre eles. Subjaz a esta prática um projeto de validação científica que simultaneamente se afastasse do positivismo do século XIX e ensejasse um simulacro de um processo rigoroso de análise textual.

Cabe aos estruturalistas o mérito de restringir os estudos literários à investigação direcionada à matéria textual, em demanda da própria autonomia, cujos objetivos se descortinam através de métodos de natureza científica, diferenciando-se as formas e os interesses aplicados. A centralidade da matéria verbal impõe-se na raiz do intento, no sentido de abandonar os vestígios biográficos do autor e a postura subjetiva, contígua ao florescimento de comentários impressionistas, presentes desde a segunda metade do século dezenove.

A progressiva cientificidade dos estudos literários muito deve ao estruturalismo, notadamente no que engloba a narratologia, ramo da teoria dedicada não apenas a descrever as categorias da narrativa (tempo, espaço, foco, ação, personagem), mas renovar os procedimentos de abordagem do texto narrativo. Roland Barthes, Greimas e Genette preocupam-se em pesquisar as narrativas, tentando apreender as categorias, formas de revelar não apenas a elaboração linguística, mas trilhas para abarcar, pela análise, as contradições da experiência humana.

A expansão de perspectiva implícita no termo narração demarca-se, de imediato na distensão de sentido, a emergência da narratividade: “… a narrativa não se concretiza apenas no plano da realização estética própria dos textos narrativos literários; ao contrário, por exemplo, do que ocorre com a lírica, a narrativa desencadeia-se com frequência e encontra-se em diversas situações funcionais e contextos comunicacionais (narrativa de imprensa, historiografia, relatórios, anedotas etc,)” [11].

A opacidade do discurso literário (Todorov) evidencia a relevância de categorias que explicitam e tornam visível a literariedade: os significantes despertam a atenção sobre si e se presentificam através da densidade das figuras e da função conotativa da linguagem. A decomposição de eixos estruturais e narrativos em rol de actantes e funções específicas acaba desfigurando até certo ponto o halo de mistério e de inexplicável que ronda o trabalho literário. A exacerbação de certos procedimentos herméticos e sofisticados, no entanto, acaba por gerar suspeitas e rejeição ao modelo da análise estrutural, tipo por muitos como elucubração estéril.

Dentre outros sistemas que se teriam cristalizado ao longo da história, o modelo filológico desenvolveu-se marcado pelas diligências em estabelecer, historicamente, um texto: constitui o ramo mais antigo das ciências humanas, que, desvirtuado, desde a segunda metade do século XIX, foi incorporado pela linguística histórica. Operando com saberes tradicionais instalados na glotologia, a Filologia apresentava-se, em passado recente, dotada para analisar os textos numa perspectiva histórica, no sentido de refazer sua origem, estabelecer suas variantes, conexões e os estreitos laços com estudos de língua (Gramática histórica, Linguística).

Outra vertente configura-se, interessada em reconhecer e classificar os modos estilísticos comparáveis às figuras de retórica – a Estilística, disciplina que teve em Léo Sptizer, Dámaso Alonso e Charles Bally seus principais divulgadores. Ao privilegiar a interpretação desses procedimentos, favorecendo divergências e contradições entre os próprios especialistas, verificou-se o progressivo esvaziamento científico de seus postulados.

4.

A semiótica, posta em evidência através da interface dos quadrinhos com a esfera literária, retoma sua importância. O interesse em gerar novidade e inovação estética no território dinâmico da comunicação social enriquece o repertório bibliográfico e o surgimento de novos veículos de informação e desenvolvimento teórico. A Linguística começa a se interessar pelas dimensões textuais que excedem o plano da frase (gramática textual, análise do discurso) e pelas questões que dizem respeito às atuações concretas do exercício da fala ou da escrita (competência comunicacional, pragmática linguística).

O aspecto bivocal e opositivo do signo – “unidade fundada na solidariedade convencional entre forma de expressão (significante) e forma do conteúdo (significado)” [12] – articula-se à subordinação a vetores sociais e culturais. A eficácia de seu uso estende-se num espaço diversificado, com raízes no terreno da Linguística, retomando a condição figurativa e icônica, concretizada nas artes plásticas, desde que se revele a intenção de semantizar categorias inscritas numa esfera extra-semântica.

Kristeva considera a Literatura uma prática semiótica particular, interessada em buscar, mais do que outras práticas, a problemática do sentido. Daí ter adotado o termo “escritura”, para referir o texto como produção. Instalado no espaço fluido das criações estéticas, o signo se ressente de uma contaminação de normas fixas de codificação, o que não impede, no entanto, seja instrumentalizado no sentido de provocar alteração ou subversão de códigos.

O recorte semiótico prossegue, investindo nos materiais concernentes tanto no plano do emissor, quanto na instância receptora na decodificação do texto produzido. “É no seio de um grupo definido de utentes, no interior do corpo social, que o signo se institui; isto significa que só funciona como signo o fato ou objeto culturalizados, fruto de complexos processos de significação e de comunicação” [13].

Insistem os teóricos em fixar dois eixos básicos da narrativa: os que se disseminam no nível da história e os que atuam na instância do discurso. Entre os assinalados na primeira instância, agrupam-se as categorias de personagem, espaço e ação, consideradas de função nuclear no processo narrativo, indiciadas como entidades consideradas signos. No eixo do discurso, os signos narrativos alistados procedem da área do tempo e do modo: analepses e prolepses, pausa descritiva e elipse, cena dialogada e sumário, focalização interna, externa e onisciente.

Os novos rumos trilhados pela teoria literária, a partir da década de 1980, direcionam-se no sentido de atribuir importância ao leitor. Pelo menos, para tal se encaminham as atenções de destacados teóricos da pós-modernidade. Ihab Hassan enumera, a esse respeito, alguns impasses experimentados pelos estudos literários, resultantes do fato de a reafirmação do autor ceder lugar à prioridade dada ao leitor: “A imanência da linguagem junta-se à perda da literariedade e à negação da hermenêutica para dispersar os nossos sentidos. Não temos maneira de fazer sentido dos nossos textos ou das nossas vidas, imersos como estão num mar de significantes que não pára de mudar” [14].

Entre os teóricos da estética da recepção, Culler alinha-se, de forma decisiva, ao declarar: “a maior parte da crítica contemporânea tem algo a dizer sobre a leitura”, enfatizando o esmorecimento da concepção de obra como objeto autônomo, priorizando, a partir daí, o diálogo não entre autor e obra, mas entre a obra e o leitor. Ao movimento de reafirmação do autor, verificado nos anos 70, sucedeu outro, empenhado em atribuir primazia ao leitor.

Culler constata esta evidência, além de demonstrar lucidez ao reconhecer que a atenção ao leitor não estava rasurada dos tópicos estruturalistas. Barthes já identificava a virada epistemológica, prestes a ser indiciada: “O leitor é o espaço em que se inscrevem todos os fragmentos que configuram uma estrutura” [15]. A apresentação dos princípios da estética da recepção pode ser patenteada em artigo de Jauss, “A História da Literatura: um desafio à Teoria Literária” (1978).

Após identificar o que considerava as principais orientações críticas do século XX – o formalismo russo e a análise sociológica de índole marxista – Jauss propõe: “Para renovar a História Literária, é necessário eliminar os preconceitos do objetivismo histórico e fundar a tradicional estética da produção e da representação sobre uma estética do efeito produzido e da recepção (…). Porque o historiador (…) deve tornar-se, ele mesmo, um leitor, antes de poder compreender e situar uma obra” [16].

Cabe retroceder um pouco, para reconhecer que a Semiótica já se mostrava disposta a delegar ao leitor a função de complementar a imagem, ciente de sua dinâmica, a flutuar entre o emissor e o receptor, ou seja, entre o que se disse e o que efetivamente se codificou. Não será descabida a aproximação entre a Semiótica e os novos parâmetros. Tanto lá como cá, percebe-se a clara distinção entre o discurso comum e o discurso literário. O discurso comum é transparente, mostra-se interessado em transparecer o conteúdo; a nitidez desta referência é a mesma tanto para o emissor como para o receptor.

Por sua vez, o discurso literário opera com a opacidade e/ou com a translucidez, detêm duas ou mais referências isoladas, restando ao leitor o trabalho de complementar o sentido, se for o caso. Nesse registro, interferem os sentidos particulares, que conotam as experiências do emissor e do receptor, em semas que, referindo o real (a experiência de cada um) desvelam o espaço da elaboração de figuras e signos.

A relevância da relação entre as categorias e a busca de decifração a que se lança o leitor, diante de um texto, trazem à superfície o que Deleuze advoga sobre o sentido: “Mas tanto sob a rasura como sob o véu, o apelo é no sentido de reencontrar ou restaurar o sentido, seja em um Deus que não teríamos compreendido suficientemente, seja em um homem que não teríamos sondado o bastante. É, pois, agradável, que ressoe hoje a boa nova: o sentido não é nunca princípio ou origem, ele é produzido” [17].

5.

As mais novas interferências teóricas gravitam simultaneamente em torno do pós-estruturalismo e do pós-moderno. “Na verdade, a maioria das novas correntes teóricas têm vindo a definir-se por graduais alterações de centros de gravidade, mais do que propriamente por grandes rupturas em relação ao panorama anterior” [18]. O elo que alicerça a teoria da desconstrução (Derrida) radica na conceção auferida na análise estrutural de que um texto não é um organismo fechado, mas uma encruzilhada de vários textos. A importância atribuída ao leitor tende a crescer, delineando o esvaziamento de fatores que, até a ultrapassagem do milênio, eram tidos como núcleos pétreos no acervo da teoria da literatura: a literariedade, a imanência da linguagem, as incertezas diante da hermenêutica.

Fortemente impregnado de postulados marxistas, o estruturalismo dialético de Althusser posta-se na raiz das ideias do Inconsciente político, flanco teórico que tem em Frederic Jameson seu abalizado líder. Cumpre, no entanto, reconhecer a intersecção do repertório althusseriano com o sistema de Goldmann e Lukács, a homologia narrativa/sociedade e a visão de que a História pode ser concebida ela própria como um texto. A literatura, não importa com que intensidade, apresenta-se permeada pelo inconsciente político.

O teórico americano, na esteira da corrente estruturalista de Althusser, defende a ressonância histórica e social de determinados textos, reabilitando a noção marxista da História e da Literatura: “A defesa de um inconsciente político propõe que empreendamos justamente essa análise final e exploremos os múltiplos caminhos que conduzem à revelação dos artefatos culturais como atos socialmemte simbólicos” [19].

A aceitação de um método acarreta um processo de confronto com teorias consolidadas ou em vias de serem consolidadas no contexto. No caso específico, delineia-se um horizonte polêmico tendo em vista a atividade hermenêutica ou interpretativa, reforçado pela adesão de Nietzsche, contrária às conotações historicistas identificadas ao pensamento totalizante.

A própria gênese do marxismo abriga o confronto turbulento de ideias. A questão não se limitava à tarefa de impulsionar um novo sistema filosófico, mas de fundamentar sua coerência e relevância para a história. “As filosofias clássicas, incapazes de explicar a realidade da história da produção dos conhecimentos, alteravam, deslocavam e elevavam a história, separada da teoria do conhecimento, para uma filosofia da história idealista, destinada a preencher esse vazio” [20].

Os intentos que sustentam o paradigma teórico em foco promovem o desejo de explicitar a diferença entre a dialética marxista e a dialética hegeliana. De outro lado, discutir e fundamentar não só a potência e o alcance da dialética, como inseri-la no processo constitutivo da história e da filosofia. Segue-se, no caso de Althusser, o clássico enquadramento constituinte de qualquer estrutura social: o conjunto conetado de três instâncias: a infraestrutura econômica, a superestrutura jurídico-política, a superestrutura ideológica. “É por isso que o materialismo é necessariamente dialético. É a história, sob a forma da dialética, que está presente como categoria que constitui o próprio materialismo, não a história no sentido ideológico, mas sim no sentido teórico” [21].

Jameson discute múltiplos fatores determinantes da relação da crítica com a história, faz referência a uma crítica ética, à crítica imanente e ressalta a necessidade de investigar os elementos de uma obra em termos de suas condições formais e lógicas e de possíveis condições semânticas.

Sem ignorar a relação da literatura com o contexto, cabe incorporar a evidência de que, não importa com que intensidade, a obra literária mostra-se marcada pelas impensadas pulsões das estruturas sociais. Procura-se uma leitura atenta à condição ética, à relação da crítica com a história, investigando os elementos literários em termos de suas condições formais, conceituais, sugestões semânticas e os espectros simbólicos do inconsciente político.

A leitura do texto poético não pode negligenciar a dialética entre os nexos comunicáveis, língua e linguagem, metáfora e metonímia, sujeito e conexões sensoriais, sujeito e conexões espaciais, signo e sentido, discurso e história, discurso e experiência. Tais elementos, portadores singulares de traços de literariedade, procedem do sujeito, o gerador de todos os signos, aquele que inscreve e se inscreve na dinâmica textual.

Instalado voluntariamente no horizonte dinâmico da linguagem, o escritor utiliza expressivamente o instrumental de uma determinada língua. O conceito que qualifica o discurso poético como fundador, vê a arte como a pátria das origens, participa do desdobramento da concepção de Heidegger, a respeito da constituição do ser, como algo imanente à linguagem. “Toda vez que há transformações na linguagem há transformação no homem. Na verdade é a linguagem que fala e não o homem. O homem fala a partir da linguagem à qual se acha voltado” [22].

Região fronteiriça entre a ciência e a imaginação criativa, a literatura tem-se mostrado altiva, ao resistir como uma atividade de ressonância da atividade humana. Desde que o homem optou pela ciência, a literatura viu-se relegada, como outras formas de conhecimento, a um papel secundário, subalterno, no complexo cultural. Vários cortes se sucedem. “Foi uma acrobacia facílima o salto da dessacralização para a desumanização, da morte de Deus (Nietzsche) para a morte do homem (Foucault).

O homem se viu estigmatizado como um dos anacronismos da sociedade industrial” [23]. Em Fundamento da investigação literária, o teórico brasileiro discute o esforço de resistência da literatura (incluso o discurso crítico) ao longo dos tempos. “A partir do instante em que o pensamento ocidental fez a sua opção declaradamente científica, as outras formas de conhecimento, apreensão ou manifestação do real, foram sendo progressivamente desvalorizadas.

Compreende-se: uma história escrita à imagem e semelhança dos modelos científicos guarda, no seu incontido unidimensionalismo, uma profunda indiferença para com as demais figuras de verdade. Todo o empenho dessa civilização cientificizante se foi concentrando na tarefa de desenvolver e aperfeiçoar uma técnica – a técnica da transformação do mundo” [24].

Deslocada diante de uma mentalidade que aos poucos foi-se desvinculando da ciência medieval, fundamentada em conceitos, erigida sobre os fatos, a literatura (como a arte) viu-se marginalizada. “Mas enquanto perdurou e perdura o homem, ela sobreviveu e sobrevive. Porque o seu lugar na estruturação da existência humana não é um lugar supletivo ou acidental. A arte é dimensão fundadora do homem. Restará sempre, para além da morte do poema, a dimensão poética da existência” [25].

Eduardo Portela estabelece o confronto entre a literatura e a formalização científica: aceita nesta última a tendência à formalização. Fica subentendido que a verdadeira hermenêutica só ocorre se o leitor empreende o mesmo esforço, o mesmo movimento libertário de que se serve o escritor, “se assumir a elasticidade do fazer poético”. Sobretudo, cabe não assumir a voz do texto, mas deixar que ele fale.

Ao contrário do discurso científico, por natureza homogêneo, a literatura expande-se como o espaço privilegiado do heterogêneo, do sistema aberto, vertiginoso, ambíguo. Em tempos recentes, a função da crítica tem sido cada vez mais aliar-se ao saber de outras áreas: “Criticar é rasgar novos horizontes de compreensão. Uma crítica enclausurada será fatalmente uma crítica cega, provinciana ou parasitária. O seu entendimento superlativo pressupõe a consciência de sua interdisciplinariedade” [26].

6.

A teoria literária atualmente não abdica de algumas conquistas radicais, uma delas, a descoberta da historicidade da cultura, paralela à assertiva de que só o homem manifesta historicamente a verdade, rompendo com séculos de imobilismo metafísico. Os textos e os leitores são históricos: enquanto discurso, um texto, uma obra, define-se sempre como uma linguagem escrita endereçada a alguém, sobre alguma coisa.

Resgata-se o papel importante fornecido pela Linguística, no acurado estudo dos signos, capazes de alargar o arcabouço da interpretação, alicerçado em postulados que vieram para ficar: no âmbito da interpretação e da hermenêutica, não há um sentido único do texto, mas leituras possíveis, desde que coerentes, inteligíveis, abertas e criteriosas (por não se pretenderem definitivas, por não se pretenderem competitivas, melhores que as outras). A literariedade, ou seja, a análise do literário com a especificidade de seu instrumental, abriu portas para a compreensão das relações recíprocas entre os textos, a intertextualidade.

Num painel, em que alguns conceitos e categorias teóricas são expressos de forma aparentemente reiterada, cumpre referir o que Foucault denomina uma circunstância gerada por “um conjunto de condições e limites”: “A afirmação de que a terra é redonda ou de que as espécies evoluem não constitui o mesmo enunciado antes e depois de Copérnico, antes e depois de Darwin; não é que, para formulações tão simples, o sentido das palavras tenha mudado; o que se modificou foi a relação dessas afirmações com outras proposições” [27].

O entrecruzamento de posturas e conceitos ocorre, por força do caráter dinâmico e flexível das categorias envolvidas. Apesar da evolução da teoria literária, cabe observar a íntima conexão entre a crítica e a história literária. Esta não consegue distanciar-se da crítica, no intento de abordar, não tanto a obra, mas os elementos que simultaneamente estão dentro e fora dela, transcendendo-a, em função de propiciar uma perspectiva diacrônica.

A crítica desvenda os elementos a-históricos, fixos, impossíveis de serem modificados, e elementos inscritos na história, que se modificam pelo contexto cultural e pelo senso de originalidade do escritor. Este absorve a atmosfera de seu tempo, mas também se mostra inserido num sistema amplo, suscetível de mobilidade, apto para captar a necessidade de modificá-lo, influindo no processo de transformação.

A multiplicidade de métodos e significados abre-se para a possibilidade de uma equivalência mútua e possível substituição de uns por outros. Por trás de uma terminologia extremamente codificada, a que poucos têm acesso, florescem posturas, encasteladas em redutos de abrupta densidade. Para F. Jameson: “Em termos de crítica prática, fica claro para qualquer um que tenha lidado com várias abordagens de um determinado texto que a mente só se satisfaz quando ordena essas descobertas e inventa uma relação hierárquica entre as diversas interpretações desse texto” [28].

A previsão de especialistas indicia a persistência “de uma certa consciência estrutural do texto, mas que, no seio dessa tipologia, aumentarão de importância as fluidas relações que a perturbam e envolvem” [29]. O exercício da crítica é uma prática sucedânea da atividade criadora. Tanto uma como outra não tem prazo de validade; ultrapassam as fronteiras geográficas, espaciais e temporais. Ficarão como inscrição aberta a revisitações e novas interpretações, entre ruínas, vestígios, riscos e monumentos.

*Edgard Pereira é professor aposentado de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da UFMG. Autor, entre outros livros, de O lobo do cerrado (Imago).

Notas


[1] AMARAL, Fernando Pinto do. Na órbita de Saturno – cinco ensaios e uma paráfrase. Lisboa: Hiena, 1992, 19.

[2] AMARAL, 1992, 23.

[3] BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981, 75.

[4] BAKHTIN, 1981, 78.

[5] BAKHTIN, 1981, 237.

[6] GOLDMANN, Lucien. Dialética e Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, 5.

[7] GOLDMANN, 1967, 8.

[8] LUKÁCS, Georg. Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenada, 1969, 42.

[9] GOLDMANN, 1967, 23,

[10] PORTELA, Eduardo. Fundamento da investigação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, 43.

[11] REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988, 66.

[12] REIS & LOPES, 1988, 136.

[13] REIS & LOPES, 1988, 136.

[14] HASSAN, apud AMARAL, 1992, 41.

[15] CULLER, apud AMARAL, 1992, 42.

[16] JAUSS, apud AMARAL, 1992, 42-43.

[17] DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. de Luiz Roberto Salina Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974, 75.

[18] AMARAL, 1992, 39.

[19] JAMESON, F. O Inconsciente político. São Paulo: Ática, 1992,18.

[20] BADIOU, Alan; ALTHUSSER, Louis. Materialismo Histórico e Materialismo poético. São Paulo: Global, 1969, 50.

[21] BADIOU, Alan; ALTHUSSER, 1969.

[22] PORTELA, Eduardo. Fundamento da investigação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, 128.

[23] PORTELA, 1974, 30-31.

[24] PORTELA, 1974, 29.

[25] PORTELA, 1974, 30.

[26] PORTELA, 1974, 22.

[27] FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves,2a. ed.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

[28] JAMESON, 1992, 28.

[29] AMARAL, 1992, 39.


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Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
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