Por Lucius Provase*
Em
31 de março 2006, José Serra anuncia que irá concorrer à posição de Governador
do Estado de cuja capital, São Paulo, havia sido prefeito pelos últimos 15
meses. Na ocasião do anúncio de sua renúncia ao cargo, proferiu as seguintes
palavras para justificar o fato de que, mesmo tendo assinado e registrado em
cartório documentos de que não iria renunciar, o fez: “Naquele
momento, eu disse a verdade. As circunstâncias passaram a ser outras. Naquele
momento não tinha por que não o fazer [assinar]”[i].
Doze anos depois, João Dória toma a mesma atitude. O prefeito da
cidade de São Paulo renuncia, mesmo tendo assinado documento registrado em
cartório dizendo que não o faria. A explicação diante do ato, no entanto, marca
uma diferença grande entre este e o outro renunciante. Dória disse que: “Firmar um documento ou não firmar um documento têm o
mesmo valor, independentemente de documento ou não”[ii].
Evidente que, tal como José Serra, João Dória disse, mais tarde, que se tratava
de um chamamento, que sua candidatura era uma demanda do povo entre outras
explicações comuns a esse tipo de situação.
Em que pese o cinismo[iii]
das declarações de ambos, chama a atenção o fato de que, no caso de Dória, não
houve, em um primeiro momento, a tentativa de relativizar ou negar o documento
assinado, ainda que, como Serra, utilizando a desculpa das circunstâncias.
Dória simplesmente descarta a existência do documento ao dizer que assinar ou
não assinar uma carta compromisso teria o mesmo valor de verdade.
O comportamento de Dória se explica por
aquilo que chamo aqui de perda do lastro discursivo[iv]:
sem um comum sobre o qual construir a experiência, os discursos acabam por
apenas expressar vivências. Ou seja, não é possível construir aquilo que Jacques
Rancière chama de “dissenso”, a perturbação do sensível, o conflito sobre o que
é esse sensível, um conflito entre as formas do dizível, do visível. Esta
ferramenta fundamental da construção democrática, justamente porque repousa no
princípio da igualdade, torna-se virtualmente impossível de ser construída.
Sem um lastro que sustente o comum, as
contradições deixam de ser um ponto importante da construção do político, já
que elas, as contradições, implicam um conflito de experiências. No entanto, se
o que passa a valer são as vivências[v],
torna-se impossível dizer que elas são contraditórias[vi].
Esse cenário, que produz uma mudança epistemológica e nos levou a um tipo de
política que se pauta na construção das fake
news e tem sido explicado como “pós-verdade”, mantém estreita relação com a
crescente financeirização do capital, a tal ponto que a perda do lastro
discursivo pode ser relacionada à perda do lastro financeiro.
No que segue, proponho, justamente, esmiuçar
essa relação e buscar demonstrar como a mudança epistemológica é, também, uma
mudança no funcionamento econômico do sistema em que vivemos. Adianto que não
se trata de retomar a combinação “base x superestrutura” de Karl Marx, mas sim
de pensar como dois sistemas simbólicos, a economia e a linguagem, se interpelam
e transformam-se um ao outro em um momento em que a experiência do tempo vem
sendo reduzida a vivência do presente.
A perda do lastro
A percepção de que há um descompasso entre o
tempo vivido e o tempo histórico é uma marca profunda de um momento recente da
história da humanidade que chamamos de pós-modernidade[vii]. Seja como uma compressão do espaço-tempo, na
percepção de David Harvey ou uma distância irrecuperável entre espaço de
experiência e horizonte de expectativa (Reinhart Koselleck), pensar o presente
com o tempo regulador das experiências humanas, e não mais o passado (história
mestre da vida) ou o futuro (o
progresso, a utopia, o porvir, a revolução), modifica de maneira brutal o modo
como os elementos simbólicos da sociedade, entre eles o discurso e o dinheiro,
funcionam.
No caso do discurso, o excesso de presente
provoca a perda do lastro discursivo, o que, por sua vez, impossibilita a
construção de um espaço comum[viii],
novamente falando com Rancière, que permite que a atividade política, e
poética, seja o espaço de cidadania por excelência, posto que, sem um comum
pressuposto, não há lugar para o dissenso.
Ora,
sem um tempo comum e com o presente aparecendo como o único tempo de construção
do vivido acontece uma perigosa inversão: aquilo que antes era experiência, o
vivido passível de ser compartilhado, torna-se pura vivência, o vivido em sua
individualidade.
Isso
porque o presente sem mediação não permite o acúmulo discursivo, o mínimo
múltiplo comum, necessário para a percepção de contradições, continuidades,
partilhas e distâncias entre o dizer e o dito, entre enunciação e enunciado. A
demanda pelo real, a insistência em marcas que, de alguma forma, deem
sustentação e “verdade” ao discurso[ix],
assim como uma clara mudança epistemológica na forma como a arena pública se
organiza são todas consequências desse cenário.
No entanto, a perda do lastro discursivo não
foi causada apenas pelo “presentismo” que vem se instaurando desde a década de
1970. Como no caso de outra fundamentação simbólica fundamental para o mundo
contemporâneo, a moeda, o discurso teve seu lastro corroído pela “hipersemiotização”:
o sistema simbólico passa a operar com referentes mais fluídos,
transformando-se em um sistema autorreferenciado, além de funcionar em um
conjunto de regras que só se aplica a contextos pré-determinados.
Isso foi facilitado pelo modo como regimes
discursivos naturalmente hipersemiotizados, como a propaganda, o direito e a
própria arte, ao menos, a arte em sua caminhada desde os anos de 1920, foram
produzindo objetos que aceleraram essa corrosão. Ainda, como no caso da moeda,
cujo abandono do lastro fez com que se tornasse um sistema simbólico
autorreferencial, a linguagem foi, aos poucos, com a perda de seu lastro,
ocupando-se de si mesma.
A relação que procuro estabelecer aqui, no
entanto, ainda que assim possa parecer, não é de causa e efeito, na qual
primeiro viria a propaganda, a arte e o direito, depois a perda do lastro.
Trata-se de um processo concomitante, com essa hipersemiotização reforçando um
processo histórico da perda do lastro.
Vejamos,
de início, o caso específico da propaganda. É
possível dizer que esta atrela à linguagem a uma falsa simbologia, pois depende
de uma referencialidade material cujo eixo operador é a própria linguagem
simbólica que decorre do processo de “referenciação”. Ou seja, seu
funcionamento é tautológico também no nível simbólico. Jean Baudrillard usa
a metáfora de um sistema sem sintaxe. Ele também vê que a publicidade instaura
um código universal, o status. Por isso que a primeira vista pode parecer que a
publicidade instaura um lastro, no entanto o tipo de referencialidade utilizada
por esse sistema, que poderia produzir um lastro comum para o discurso, por ser
tautológica, cria um vazio que se reafirma.
O
lastro instável, que se pauta em uma suposta objetividade da materialidade por
si só, invertendo a equação do pensamento ocidental: é o objeto, agora, quem
define o sujeito, independente do contexto, num movimento que iguala forma e
conteúdo. Essa hipersemiotização faz com
que a linguagem publicitária gire em falso a partir de uma pretensa
objetividade da materialidade linguística de seus signos. Combinada ao
excesso de presente, temos um elemento fundamental na perda do lastro
discursivo. A presença da propaganda faz com que nos acostumemos a um uso da
linguagem que independe de uma negociação com outros sistemas simbólicos.
Aquele conjunto de valores simbólicos expressos em uma propaganda não necessita
de outros valores simbólicos para tomar-se como verdade.
A prevalência do direito no cotidiano, a
judicialização da vida, é outro ponto ligado à perda do lastro discursivo. A
linguagem jurídica apresenta-se, desde a sua forma, com uma pretensa hiperobjetividade,
até por ser a linguagem sem autor por excelência. A função-sujeito jurídica
seja ela ocupada por um juiz, um desembargador, um advogado, é o sujeito que
enuncia na ausência de subjetividade.
As vozes que falam por essa pura objetividade
que é o sujeito da enunciação jurídica não conseguem ocupar o lugar de sujeito,
pois, diferentemente da linguagem literária, a linguagem jurídica rejeita a
ocupação da voz. Essa falsa ausência, pois a voz está sim ocupada, cria uma
atmosfera cuja perda de lastro é um pressuposto. Novamente faz-se uma
materialidade, que longe de se mostrar como um referente sólido, por ser também
tautológica[x],
refere apenas a si mesma.
As artes constituem uma terceira área de
investigação. O alargamento do imaginário promovido pelas artes plásticas,
sobretudo, ao longo do século XX, torna a apreciação de uma obra de arte
confinada ao seu espaço de circulação: museus, galerias, colecionadores. Desde
o urinol de Marcel Duchamp, até as performances, passando pela arte americana
dos anos 1950, a pop e a op-art, Jeff Koons e seus contemporâneos, Damien
Hirst, Adriana Varejão[xi],
Cindy Sherman são muitos os exemplos de como essa elasticidade no conceito de
arte afeta diretamente a percepção estética, algo que fica evidente quando a
arte sai dos espaços já institucionalizados de produção de sentido (e algumas
vezes até mesmo nestes)[xii].
O efeito discursivo imediato é a ideia de que tudo pode e tudo vale. A defesa
de uma percepção estética comum torna-se cada vez mais difícil, e
desnecessária, sem que o espectro ético-político tenha conseguido acompanhar
essa diferenciação.
Esse
processo que descrevi brevemente é coincidente com o que chamamos de
modernidade e se dá ao longo do século XX, com a perda e/ou abandono de outro
importante lastro: o financeiro [xiii].
Assim como os discursos acima contribuíram para que o lastro que sustentava a
possibilidade de construção de um comum e, portanto, de um dissenso, o avanço
da moeda sem lastro permitiu que diferentes discursos monetários crescessem e
avançassem. E, assim como ocorreu com os discursos, a hipersemiotização da
moeda fez com que esta figura simbólica fosse alvo de uma disputa
epistemológica.
Um começo bem no fim – a crise de 2008 como exemplo da
performatividade econômica
A perda do lastro discursivo é um processo
que se dá ao longo daquilo que nos acostumamos a chamar de modernidade. O mesmo
se dá com o capital: o processo de adoção do lastro[xiv]
como forma de medir o valor de uma moeda só foi amplamente aceito e utilizado
ao longo do mesmo período que chamamos de modernidade, posto que dependente de
um aparato legal que apenas o Estado-nação poderia oferecer[xv];
ao mesmo tempo, e de forma um tanto paradoxal, foi também o período que viu o
gradual abandono dessa maneira de lidar com a moeda, ao menos como ferramenta
mundialmente compartilhada.
A discussão por trás da adoção ou não de um
lastro para a moeda está diretamente relacionada à função da neutralidade ou
não desta na economia. Entende-se por neutralidade o fato de que a moeda só
afetaria as variáveis nominais (preço, câmbio, salários) enquanto as variáveis
reais (PIB, emprego, consumo, etc.) estariam fora do alcance de qualquer
variação na moeda. Disso depende que as três funções atribuídas à moeda, a
saber, meio de troca, reserva de valor e unidade de conta, seriam as únicas
possíveis a serem cumpridas por uma determinada materialização desse bem.
Por trás desse processo está a grande lacuna das teorias
macroeconômicas: o que é uma moeda[xvi]?
Embora pareça absurdo àqueles de fora dos estudos econômicos, as grandes
teorias macroeconômicas não apresentam uma proposta sólida sobre o que é uma
moeda na economia[xvii]. Isso
se deve muito à naturalização de certa ideia de moeda, que vê a moeda como um
objeto. Tal naturalização gerou mitos que, ainda hoje, imperam na condução das
políticas macroeconômicas.
Tcherneva aponta três
mitos principais: “(1) that money is a creature
of the market born out of the necessity to facilitate barter; (2) that money is
an object, usually of some intrinsic value (derived from precious metals) that
is easily transportable and divisible; and (3) that in and of itself, money has
little economic significance (it is “neutral”), serving only to simplify
transactions but leaving employment, consumption, and investment decisions
unaffected.”
Tcherneva, ao
apontar alguns fundamentos das políticas monetárias como mitos que não se
sustentam diante de evidências empíricas, coloca a moeda não só como uma
ferramenta do Estado, mas como um campo simbólico que, em muitos aspectos se
assemelha ao funcionamento do discurso. O mito três, de que a moeda seria
neutra, ao ser questionado, aponta para uma característica importante dos
fenômenos econômicos, característica da qual a moeda não escapa: o seu
funcionamento performativo.
Se as
expectativas econômicas funcionam, sobretudo, como produtores de desempenho,
afinal, se o mercado acha que o ambiente econômico em um determinado país vai
se deteriorar, ele realmente se deteriora, a moeda também instaura relações que
não são apenas de valor. A moeda como meio de troca e unidade de conta são
catacreses; metáforas mortas que já não mais são compreendidas como tal.
No entanto, como
se pode inferir dos comentários de Tcherneva, esse funcionamento discursivo
ainda tem fortes efeitos no papel que a moeda exerce em nosso cotidiano. A
moeda como meio de troca e como unidade de valor permeia todas as nossas
práticas discursivas em torno da valoração, não apenas de bens materiais, mas
também de bens simbólicos e culturais[xviii]:
nosso imaginário, no que se refere a qualquer relação de valor, é tomado pela referência
ubíqua da moeda. Assim, as comparações que fazemos (o meio de troca) acabam se
tornando, também, uma valoração (unidade de valor).
Nessa
perspectiva, pode-se compreender como a perda do lastro financeiro, ou a
aceitação de que a moeda fiduciária seria algo antigo na História exerce um
papel semelhante à perda do lastro discursivo. Em ambos os casos, o resultado é
um vale-tudo epistemológico no qual cabe a cada indivíduo definir as regras de
construção e produção de sentido, tornando-se inviável, e virtualmente
impossível, a partilha do sensível.
No caso
específico do lastro financeiro, nossa hipótese é de que ela constitui um
evento financeiro, ou seja, performativo, na qual o papel que o lastro
financeiro exerce é semelhante ao papel que a ideia de verdade exerce no
discurso[xix].
Assim, o avanço da moeda creditícia, sem lastro algum, talvez encontre
equivalência naquilo que chamamos de fake
news e o fenômeno que se criou em torno da pós-verdade. A diferença
fundamental é o arcabouço epistemológico construído para lidar com essa gradual
perda do lastro.
O próprio
caminho percorrido para uma moeda sem lastro passa por processos semelhantes,
como a construção de um arcabouço jurídico-institucional que dê sustentação a
moeda[xx],
a transformação do sistema financeiro em um campo semiótico autorreferencial[xxi]
e a necessidade de se ampliar o mercado de consumo a partir do aumento da
produção econômica; sempre medida pelo PIB. A partir dessas referências, talvez
fique claro o que se pretende em uma comparação entre fake news e moeda creditícia: evidentemente, não quer dizer que a
moeda não exista ou que ela não tenha validade; quer dizer que sua existência e
validade dependem de um conjunto epistemológico que mais força tem, conforme
maior é o grupo que partilha esse conjunto.
A força
epistemológica da moeda fiduciária ficou muito clara na crise de 2008, ao mesmo
tempo mostrou como o intrincado sistema financeiro só pode funcionar sem um
lastro físico[xxii].
Evidentemente, pela quebra no contrato de pagamento das hipotecas, o sistema
iria ruir eventualmente. No entanto, quando ficou clara a frágil arquitetura do
sistema de subprimes, que vendia
dívidas de pessoas que nunca conseguiriam pagá-las, o sistema imediatamente
ruiu. Ou seja, antes mesmo de seus efeitos começarem a ser sentidos, quando se
descobriu que o arcabouço que sustentava aquelas operações era performativo.
Começa-se a
compreender a relação entre o lastro discursivo e o lastro financeiro. Sem um
sistema discursivo aberto, cuja epistemologia que o sustenta esteja
fragmentada, a performatividade do sistema seria mais facilmente questionável.
Sem um comum, sem a possibilidade de partilhas, é mais fácil impor a
epistemologia do mercado como a única epistemologia universal. Compreende-se
então de que forma a régua do mercado passa a ser o regulador das expectativas.
Fake News – moeda e discurso
Há uma
generalizada compreensão de que as fake news não são um fenômeno recente
e que o uso de mentiras como ferramenta política é, e sempre foi, comum. Por
outro lado, há, também, a compreensão de que o que vivenciamos hoje, a chamada
pós-verdade, exibe características únicas. Seja pela velocidade, trazida pelas
redes sociais, com que as informações se espalham, seja pelo fato desta ser uma
mudança verdadeiramente epistemológica[xxiii],
o que chamamos de fake news não é um fenômeno que pode ser tratado como
uma nova relação entre mentira e verdade. Este fenômeno só pode existir devido
à perda do lastro discursivo. Dito de outra forma, a mudança epistemológica que
estamos presenciando só existe pela impossibilidade de construir um mínimo
comum conceitual.
Nesse sentido,
as fake news sintetizam a parte
fundamental do funcionamento discursivo pós década de 1970: a aposta na
performatividade do discurso. Vladimir Safatle aponta que, com o advento do
cinismo, no sentido que Sloterdijk dá ao termo, não faria mais sentido pensar
em contradição performativa, como poderíamos pensar ao nos defrontarmos com a
ambivalência entre a notícia e o fato. No entanto, o que se pode notar é que
com a ausência dos pressupostos comuns, que dão as bases para que uma
contradição possa existir, a performatividade passa a ser a única força em jogo
na relação entre enunciação e enunciado. De certa maneira, é como dizer que o
enunciado não mais existe, existe apenas aquilo que está posto em
funcionamento: a enunciação.
Abandonar o
lastro-ouro é operar um processo semelhante em relação à moeda. O lastro seria
o enunciado, contra o qual a enunciação pode ser constituída ou não como contradição.
O abandono do lastro, a volatilização da moeda, transforma as operações
financeiras em enunciações, nas quais a força performativa daqueles que a
operam vale mais do que a relação que esta mantém com o enunciado.
A Economia, como
ciência performativa por excelência, acaba sendo catapultada ao centro de
qualquer debate, seja sobre educação, saúde, ciências. O uso exaustivo dos
dados[xxiv]
serve para mascarar a ausência de lastro e a predominância da performatividade
nesses discursos que se querem técnicos.
Um fim bem no começo
O que se
pretende aqui é esboçar uma possível relação entre o fenômeno discursivo
político das fake news e o processo
econômico de financeirização do capital. Ainda que haja pontos a serem
trabalhados, a ideia geral, exposta pelo conceito de perda do lastro discursivo
e sua correlação com a perda do lastro financeiro, parece-me bastante válida.
Os estudos sobre neoliberalismo[xxv] e
sua mudança nos modos de gestão do humano, do tempo, também podem ser
incorporados a essa ideia mais ampla. Esses apontamentos visam propor um
caminho para se compreender o funcionamento da esfera pública e pensar
possibilidades efetivas de se construir opções políticas.
*Lucius Provase é doutor em Teoria Literária pela USP.
Notas
[i] Folha de São Paulo, 01 de abril
de 2006, in: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0104200602.htm acessado em 01 de março de 2018.
[ii] http://www.jb.com.br/pais/noticias/2018/03/14/firmar-documento-ou-nao-tem-o-mesmo-valor-no-cenario-eleitoral-afirma-doria/ acessado em 15 de março de 2018.
[iii] O conceito de cinismo ao longo
deste artigo será o mesmo cunhado por Peter Sloterdijk em Crítica da razão cínica. A ideia de “falsa consciência
esclarecida”, que perpassa o livro citado, parece definir muito bem o que seria
essa razão cínica e esse cinismo: a possibilidade de sempre escolher a saída,
ética e política, mais fácil sem que isso provoque qualquer tipo de conflito (o
que chamaríamos, em outros tempos, de contradição).
[iv] O conceito foi elaborado em
minha tese de doutorado. No entanto, é fruto de uma troca de muitos anos com
Roberto Zular sobre as questões comuns ao estudo da enunciação e suas relações
com a literatura.
[v] A diferença entre vivência e
experiência é uma proposta que trago em diálogo com Alexandre Nodari com o
intuito de diferenciar entre aquilo que é algo individual e cujo
compartilhamento não consegue ultrapassar esta fronteira, a vivência, de algo
que só pode ser construído em seu compartilhamento, a experiência.
[vi] Como veremos, o cinismo que
prevalece em nossa sociedade impede que as chamadas contradições performativas
ocorram. Isso quer dizer que a diferença entre o dizer e o dito, entre aquilo
que digo e aquilo que faço tem cada vez menos importância.
[vii] Gilles
Lipovetsky, Zygmunt Bauman, Elie During, Hans Ulrich Gumbrecht , Ulrich Beck,
Maria Rita Kehl, Tales Ab’Saber, Jean-François Lyotard, Henri Meschonnic,
Georges Didi-Huberman, Isleide Fontele, David Harvey, Paulo Arantes, Reinhardt
Koselleck, François Hartog, Marcos Siscas, Octávio Paz. Estes são apenas alguns
dos nomes de pesquisadores das mais diversas áreas que perceberam uma
compressão da percepção do tempo. É possível, ainda, pensar que “o fim da
história” de Francis Fukuyama seria uma outra maneira de diagnosticar essa
mudança entre os tempos, ainda que com um tom celebratório e conservador que em
muito dista dos outros pensadores e outras pensadoras mencionados.
[viii] E possível relacionar a ideia de
comum tal como ela aparece em Rancière a conceitos da linguística e da
antropologia tal como a ideia de “frame”, a fraseologia, a gramática de
construções. Muitos destes oriundos das primeiras ideias de Chomsky de uma
gramática universal. O que ocorre é que aquilo que era partilhado fica cada vez
mais fragmentado. Um exemplo, é a crescente dificuldade em identificar ironia
em textos escritos. É cada vez mais comum, quando um articulista escreve
ironicamente, que seja avisado ao leitor com uma frase como “contém ironia”.
Impossível não lembrar das embalagens de leite que avisam ao consumidor que o
produto em questão “contém leite”.
[ix] Algumas dessas marcas aparecem
em referências frequentes a uma suposta descontextualização da fala, como se o
contexto fosse algo imutável e, portanto, um lugar de verdade. O conceito de
lugar de fala, que é tanto tido como uma versão do “standpoint theory” ou do
conceito de “positionality”, é um exemplo desse lugar de verdade que se firma a
partir de um suposto contexto anterior à enunciação.
[x] O caso do julgamento dos
policiais que participaram do massacre de Carandiru, revisto em 2016, é
sintomático desse processo. Por ser impossível julgar um crime coletivo, cada
policial deveria ter sua parcela de culpa. No entanto, por se tratar de um
massacre, é impossível individualizar. O que parece ser apenas um detalhe
técnico ou formalidade, como muitas vezes parece no Direito, é peça fundamental
do funcionamento dessa linguagem: o ato jurídico é o único que tem o poder de
determinar seu próprio lastro, prescindindo de um comum.
[xi] Adriana Varejão talvez seja um
ótimo exemplo de como o alargamento da linguagem simbólica afeta a produção de
sentido e, por sua vez, resulta na perda do lastro. O trabalho que ela faz com
os azulejos, muitas vezes, não é apenas um problema do material artístico;
torna-se uma assinatura, uma maneira de reconhecer o trabalho da autora; um
lastro, enfim. O fato de artistas criarem seus próprios lastros com o público é
o sintoma dessa perda.
[xii] Os relatos de brincadeiras, acidentes e até mesmo crimes
que ocorrem em locais nos quais se espera a performance são inúmeros e vão
desde um abacaxi colocado em uma galeria de arte em Edimburgo, passando pelo
choque que um estudante sofreu no Instituto de Artes da UFPE, até dois casos de
facadas em galerias que foram considerados performance pelas testemunhas.
[xiii] Há que se
ressaltar a coincidência temporal entre a perda do lastro financeiro e a perda
do lastro discursivo. A quebra do
acordo de Bretton Woods, de maneira unilateral, pelos EUA pode representar o início desse novo sistema
que se anunciava desde o pós-guerra. Até então, as experiências com a moeda sem lastro não tinham o impacto que
tiveram naquele momento por não termos consolidada uma economia global. Dito de
outra forma, o que era feito localmente não impactava da mesma forma a economia, pois os Estados-nação
não tinham o poder de influenciar com políticas monetárias a economia global.
Essa desmaterialização do dinheiro e a flexibilização da acumulação do capital,
como propõe David Harvey, impõe uma compressão do espaço e do tempo que se
espraia em todos os níveis da experiência social. O espaço vai perdendo suas
formas de resistência para se moldar ao processo cada vez mais veloz do
capital. Ou seja, a concomitância também revela alguma interinfluência entre
esses dois processos. A finaceirização do capital não seria possível sem o
lastro discursivo perdido. Como especular se estamos presos a uma narrativa
comum? Um exemplo é a crise de 2008 e o subprime. Quem ganhou muito dinheiro
nesse período foram aqueles que perceberam o quanto havia de cinismo naquelas
relações financeiras.
[xiv] Na Inglaterra do século XIXI, a
querela entre monetaristas bulionistas e antibulionistas é tida como o início
dessa disputa entre moeda lastreada e moeda creditícia ou fiduciária.
Bulionistas, adeptos do que veio a se desenvolver como a Teoria Quantitativa da
Moeda (TQM), acreditavam que a inflação era fruto do desequilíbrio entre a
moeda e o metal que a sustentava (o bulion),
ou seja, acreditavam que a inflação era um problema de emissão em excesso. Os
antibulionistas, por sua vez não acreditavam que o aumento de preços era fruto
do excesso de moeda. Para um aprofundamento no tópico ver Fonseca & Mollo,
2012.
[xv] Alguns economistas apontam que
não apenas a moeda fiduciária (fiat Money)
não é um fenômeno tão antigo quanto defendem diversos economistas, como
comentam o fato de essa moeda fiduciária, que substituiria a moeda commodity,
ser uma invenção econômica que não encontra respaldo na realidade. Sobre isto,
um excelente artigo é de Goldberg (2015).
[xvi] André Lara Resende, em seu livro
Juros, moeda e ortodoxia, dedica-se a
investigar essa lacuna, discutindo as diferentes teorias monetárias nos capítulos
1 a 3, passando pela dificuldade em especificar o que determina o preço, uma
consequência da falta de compreensão sobre a moeda e a dificuldade em
especificar a relação entre moeda e inflação. Mas o ponto mais importante, em
minha perspectiva, são os diversos momentos em que Resende destaca a distância
entre a proposta de algumas teorias macroeconômicas e a realidade econômica.
[xvii] Um dos últimos sintomas dessa
ausência é o debate em torno da Modern Monetary Theory (MMT). Além da falta de
unidade em torno do que seria essa teoria, as críticas mostram que há diversas
maneiras de compreender o que é a moeda e, principalmente, sua função.
[xviii] O exemplo mais recente é a
afirmação do Ministro da Educação de que é preciso investir em cursos que
tenham retorno.
[xix] Seria de fácil compreensão o
porquê a MMT vem aparecendo com força entre o mercado financeiro como mostram
algumas reportagens do New York Times e da Bloomberg. De que alguma forma, a
compensação financeira, em torno do U$ 1 trilhão, feita no pós-crise de 2008 é
uma aplicação das ideias básicas do MMT. A isso equivale dizer que o princípio
básico do MMT, de que o déficit não é o maior problema quando o endividamento é
realizado na moeda que se pode emitir, já existi há algum tempo para uma
determinada elite econômica (como não lembrar do Proer), mas quando se trata de
políticas públicas de fato, sua aplicação é limitada.
[xx] Embora a moeda não tenha surgido
junto com o Estado-nação no século XIX, sua força e universalização só foram
possíveis pela estrutura institucional montada com o nascimento do Estado.
Basta ver a resistência que as criptomoedas recebem dos Bancos Centrais.
[xxi] Aqui, assim como no caso do
discurso, as crises decorrentes do abandono do lastro de forma unilateral pelos
EUA com a quebra do acordo de Bretton Woods.
[xxii] Importante diferenciar o lastro
físico, normalmente um metal precioso, de um lastro discursivo ou simbólico. A
defesa que os Estados, e a “solidez” de suas economias, passam a ser o lastro
das moedas é algo velado. De qualquer forma, é importante estabelecer essa matriz
para que fique claro que o abandono do lastro financeiro não significa o
abandono de qualquer lastro, mas apenas a sua extrema flexibilização.
[xxiii] Cabe um comentário: é verdade,
como Foucault aponta, que diferentes sociedades produzem diferentes regimes de
verdade. No entanto, nem sempre as mudanças no regime de verdade produzem
mudanças epistemológicas. Dito de outra forma, nem sempre o registro discursivo
da verdade quando alterado produzia mudanças nas formas de saber (e do saber).
O caso aqui é que a era da pós-verdade, a perda do lastro discursivo, faz com
que, mais do que o regime, a forma de produzir e receber conhecimento é
alterada.
[xxiv] Sobre isso, cabe referir-se a
Evgeny Morozov e seu livro Big Tech: a
ascenção dos dados e a morte da política.
[xxv] É interessante ver como, nas
redes sociais, há uma ridicularização desse termo por parte de certos
economistas, como se o conceito, amplamente debatido, fosse um não-conceito.
Como é de praxe, nenhum debate é estabelecido, apenas o desmerecimento. É assim
que funciona o campo público em um mundo sem lastro.
