Na era da “dromocracia”

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por GEORGHIO TOMELIN*

Na era da política pós-factual é um dado que estamos todos mergulhados na pós-verdade. Se as pré-mentiras tomarem conta da cena política, os eleitores não terão como se defender

A “verdade única” sobre narrativas não existe. Já a “mentira sobre fatos” existe sim e é muito frequente. Podem parecer contraditórias as duas afirmações anteriores, sobretudo para os que entenderem que a verdade seria o contrário imediato da mentira. Verdades e mentiras precisam ser analisadas no contexto político, na era da pós-verdade.

Estamos hoje imersos em um sistema governado pela rapidez: um processo “dromocrático” transversal, pelo qual a velocidade digital transfixa todos os setores do entendimento humano. O Observatório da Democracia da Advocacia Geral da União, especialmente por sua Comissão de Jurimetria, pretende analisar dados e impactos das notícias falsas sobre o resultado das eleições.

No sistema eleitoral brasileiro, divulgações incorretas sobre fatos políticos não podem ser desmentidas a tempo, e acabam interferindo na escolha do eleitor. As notícias falsas navegam na insegurança do eleitor. Em matéria de política, eleitores frustrados acabam aliciados por conteúdos maliciosos. O sistema eleitoral precisa garantir que o eleitor não seja enganado, justo quando está decidindo em quem votar.

Um exemplo simples pode ajudar a entender: se o eleitor for “incorretamente informado”, nas vésperas do pleito, de que “o seu candidato seria um criminoso ou de que não pode mais ser eleito por algum fator”, este eleitor tenderá a reverter seu voto em favor de outro político. Após o pleito eleitoral será tarde demais para reverter os efeitos da enganação.

Notícias falsas durante o processo podem sim distorcer o resultado do pleito eleitoral, pois afetam a formação livre da vontade popular. A velocidade com que as redes sociais espalham versões mirabolantes atinge a liberdade de expressão. Somos governados pela velocidade, daí falarmos hoje em “dromocracia” (“dromos”, em grego, corresponde a rua, estrada, corrida, percurso, e até a um caminho da agilidade).

A “dromologia” é o estudo deste caminho ou atalho mais rápido. A “dromocracia” discute assim os mecanismos para uma gestão atenta aos meios digitais em tempos de democracia veloz. Quem decide rápido, pode acabar decidindo mal, pois a tomada de decisão de modo consciente precisaria de tranquilidade para seleção de premissas.

É inegável que as fake news podem afetar diretamente os resultados de uma eleição. Isto porque elas atentam contra a liberdade de expressão, que é o preceito básico para a boa informação no Estado democrático de direito. Notícias falsas circundam e sufocam o real debate das ideias políticas: quem pensa diferente não terá o imprescindível espaço para se expressar.

A “cidadania ativa” só se implementa pela discussão dos problemas sociais concretos, e não de factoides ou de fantasmas eleitorais. As relações políticas francas envolvem, portanto, selecionar livremente os problemas e projetos públicos mais relevantes. Para tanto, o processo eleitoral deve ser livre e transparente. A liberdade de expressão não pode acabar diminuída em razão da disseminação de notícias falsas.

Nas eleições, o cidadão vota no candidato que mais se assemelha à sua visão de mundo. A cabine de votação indevassável precisa garantir a extração asséptica da vontade popular. Manchar candidatos com incorreções sobre fatos pode alterar as chances reais de eleição. Somente informações completas, positivas ou negativas, podem conformar um eleitorado instruído para escolher livremente os seus governantes. A propaganda tem por fim disseminar ideias, com a meta de influenciar pessoas e conquistar a adesão do eleitor. É um processo válido e precisa se restringir aos limites do “fair play eleitoral”.

É por intermédio da propaganda que os eleitores podem formar seu juízo a respeito dos postulantes a mandatos eletivos. Política é acúmulo de forças, e não a arte do bem-querer. No entanto, a escolha individual pode ser apoiada em preferências e afinidades pessoais, e nada há de errado nisso. A liberdade do eleitor para gostar ou não de alguém, não legitima, todavia, práticas de difamação ou calúnia contra adversários. A circunstância de não haver verdade única sobre a disputa de narrativas em política não autoriza ninguém a falsear fatos sobre a situação pessoal dos que concorrem a um cargo político.

As redes sociais são um ambiente propício para que a “mentira sobre fatos” seja espalhada de forma rápida e amplificada. Durante as campanhas eleitorais, acusações ficcionais não podem ser utilizadas para enfraquecer alguns candidatos e fabricar o sucesso artificial de outros. A ampliação do acesso tecnológico se torna uma ameaça para o processo eleitoral.

As fake news são a base da desinformação eleitoral em uma sociedade com educação política reduzida. O controle de sua disseminação não pode se dar apenas pelo Poder Judiciário. Mecanismos sociais de controle e de verificação precisam ser colocados em prática. O direito eleitoral possui dispositivos que combatem as informações inverídicas: mecanismos estes reforçados pelo direito de resposta, pela vedação ao anonimato e pela garantia constitucional da liberdade de expressão.[i]

Os debates políticos amplos, as críticas sérias e a pluralidade de ideias precisam prevalecer nas eleições. Perverter fatos, sem tempo político para os contraditar, é desinformação proposital que amesquinha nossa democracia. O tema é relevante, e o Observatório da Democracia da AGU pretende trazer o assunto para a reflexão de todos, para que os mecanismos jurídicos e sociais de controle possam ser aprimorados. Na era da política pós-factual é um dado que estamos todos mergulhados na pós-verdade. Se as pré-mentiras tomarem conta da cena política, nossos eleitores não terão como se defender.

*Georghio A. Tomelin, advogado, é doutor em direito do Estado pela USP e doutor em filosofia pela PUC-SP. Conselheiro do Observatório da Democracia da AGU.

Nota


[i] Para aprofundamento do tema, indicamos o texto “A liberdade de expressão e a disseminação de notícias preordenadas à turbação dos pleitos eleitorais” (publicado por Georghio Tomelin, Kahio Fernando Garcia Alves e Marcelo Andrade na REDESP 14/2024, v. 8 n. 1 – Revista da EJEP do TRESP).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES