Por HENRY BURNETT*
A coragem do trágico colocou Nana no panteão de grandes artistas do mundo. De onde jamais sairá
1.
Quando a maior cantora do mundo atacou seus pares de geração e seu candidato à presidência da República, achei que tínhamos chegado no fundo do poço. Fiz o que meu sentimento, não minha razão, mandava: fui ouvir Nana Caymmi novamente, em ordem cronológica, dos primeiros aos últimos discos.
Confirmei o que sempre repeti em silêncio, que ela era a maior cantora do mundo. Listas são parte do que há de pior na indústria cultural. Melhores discos, melhores guitarristas, melhores cantores e cantoras, melhores filmes, melhor isso, melhor aquilo. Como não há como fechar essas listas sem subjetividade – não disse gosto –, elas variam de ano a ano, a depender dos jurados ou das celebridades consultadas. Nana nunca esteve em nenhuma lista para mim, entenda-se, era a melhor do mundo e não havia segundo nem terceiro lugar.
No país de Gal Costa, Monica Salmaso, Alaíde Costa, Elis Regina, Marisa Monte, Cássia Eller, mais um batalhão de outras, fora as proscritas, nunca tive coragem de dizer isso fora do círculo íntimo. Ainda assim, sua postura política marcou fundo.
Pensei em Baden Powell e Baby Consuelo em busca de uma explicação para as radicais mudanças que passaram e passam na maturidade em relação aos valores religiosos e suas conversões, à intolerância que propagaram e propagam. Não se trata de julgar decisões pessoais, mas de pensar porque isso aconteceu somente na maturidade. Que relação haveria, a proximidade da morte?
Não queria acreditar em ressentimento, afinal estamos falando de alguns dos grandes artistas do Brasil, que pertencem a um cânone fixado décadas atrás e de várias maneiras, para o bem e para o mal, intocável dentro da chamada MPB. A mudança que a cena musical passou atingiu essa tradição de maneira dura. São dezenas de exemplos de artistas que ocupavam o centro da cena e simplesmente foram escamoteados por novos ritmos, novas artistas – não necessariamente cantoras.
Nana Caymmi nunca foi uma pop star, ou melhor, jamais quis flertar com essa ideia; basta um exercício simples, ouçam Nana e seu repertório, em qualquer época. Seria impossível atingir grandes massas de ouvintes. É verdade que alguns dos seus colegas de geração atingiram, mas não sem acochambrar artistas e ritmos que seriam impossíveis de imaginar ao lado de Nana ou sendo gravados por ela; sem demérito para ninguém, mas Nana levou o bom gosto a sério, acredite-se ou não nele.
2.
De renascer (1976) a Nana Tom Vinicius (2020), nenhuma única concessão a repertórios estranhos ao gênero canção e alguns dos seus mais tradicionais ritmos: bolero, samba-canção, samba etc., escolhas precisas, arranjos que raramente fugiam ao trio piano, baixo, bateria e orquestra, com sua voz em primeiro plano. Sua respiração que tantas vezes nos fazia acreditar que não chegaria ao final das frases, mas sem nunca perder o fio último da melodia, mesmo quase sussurrado, ao fim ouvimos com nitidez seu timbre único. Ninguém jamais cantou como ela.
Voz é timbre, nada mais. Cada pessoa tem um. Técnica é outra coisa. Nana só tem um análogo nesse quesito no Brasil, de quem se pode dizer que é único, Milton Nascimento. Ao ouvir suas vozes temos certeza de estar diante de algo raro, que nunca existiu e não se repetirá com a mesma singularidade. Ouçam a gravação de “Cais”, com Milton no disco Clube da esquina (1972) e com ela em Nana (1997).
Mônica Salmaso talvez seja sua grande herdeira, mas apenas se evitamos qualquer nível de comparação. Ela também é única e talvez seja a melhor para outras pessoas, como Bethânia deve ser, ou Areni Agbabian, ou Ithamara Koorax, ou Jane Duboc…
Caetano Veloso falou em “profundidade” ao se despedir dela em seu Instagram, “(…) às vezes com Gil ao violão, às vezes à capela. Eu pensava que ela era a mais profunda intérprete que se podia imaginar”. A qualidade do que é pro-fundo é tocar em regiões que nossa percepção comum não atinge. É chegar ao abissal, ao inatingível.
Só se alcança essas regiões a sós, como os grandes compositores, pintores, poetas e cineastas. Quando levaram essa profundidade para o deleite da indústria cultural, foi quando esta pensava dominá-los e não ser dominada por eles, como de fato acontecia. O exemplo máximo disso é Nana interpretando “Resposta ao tempo” (Cristovão Bastos e Aldir Blanc) na abertura da série Hilda Furacão, da Rede Globo.
O fato de Nana Caymmi compartilhar essa descida ao absoluto fazia parte da sua generosidade. Ela desceu ao que há de mais essencial no sentimento do mundo e nos convidou a vida inteira a acompanha-la. Muitos a seguiam, muitos não foram capazes. Muitos seguirão ouvindo sua voz no acolhimento e no frio das suas vidas, outros seguirão achando que o mundo é apenas o sol da felicidade, mantendo um véu sobre a finitude.
Com isso não digo que Nana Caymmi fosse sombria, mas jamais temeu as canções que expressavam dores universais. Podia ser noturna e solar na mesma intensidade. Eis seu grande legado para as novas cantoras; não temam a dor e a morte, envelheçam o quanto antes. A coragem do trágico colocou Nana no panteão de grandes artistas do mundo. De onde jamais sairá.
*Henry Burnett é compositor e professor titular de filosofia na Unifesp. Autor, entre outros livros, de Música só: uma travessia filosófica entre a Europa e o Brasil (Edusp).
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