“Não vamos cumprir a lei e ponto final”

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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

A pressão de setores empresariais para o descumprimento das normas da Constituição Federal

Na notícia veiculada, em 06 de janeiro de 2021, no Painel S.A., integrado ao Grupo Folha, com a chamada “Hotéis e serviços pedem extensão do benefício de redução de jornada”[1], consta que setores econômicos pretendem pressionar o governo para que seja dada continuidade às medidas jurídicas que possibilitaram, em 2020, a redução de salários e a suspensão de contratos de trabalho.

A pretensão, manifestada logo no início de 2021, antes mesmo de se ter alguma avaliação sobre a situação atual, já sob os efeitos da retomada econômica (ainda que carregada de imensa irresponsabilidade sanitária), assim como da verificação dos possíveis impactos do início da vacinação (previsto, embora não seriamente, para o final de janeiro de 2021), serve para demonstrar que a redução de custos da produção por meio da retirada de direitos dos trabalhadores é a única coisa em que conseguem pensar certos “empreendedores” brasileiros, sendo certo que, na visão destes, qualquer redução nunca é o bastante.

Lembre-se que entramos na pandemia, em março de 2020, já sob os efeitos da “reforma” trabalhista de 2017, na qual se incluíram todas (e mais algumas) as mudanças legislativas pretendidas pelo setor econômico, sob o argumento de que com a nova legislação, modernizadora das relações de trabalho, se teriam, enfim, as condições ideais para o progresso econômico do país, acompanhado de desenvolvimento social, este proporcionado pela geração de ao menos 2 milhões de empregos formais (i. e., empregos com direitos).

A “reforma”, como se sabe, só favoreceu a setores econômicos específicos no sentido preciso de uma maior acumulação de riquezas, sem qualquer retorno social, sem geração de empregos e com piora geral do quadro econômico.

Ainda assim, na pandemia, a única coisa que se conseguiu pensar foi no aprofundamento da mesma lógica de redução de custos, o que se efetivou por meio das MPs 927 e 936 (esta última convertida na Lei n. 14.020/20). E a cada instante em que o governo se sentia abalado, por mais um pronunciamento inusitado do Presidente, para recuperar a estabilidade política e recobrar a legitimidade perante o setor econômico e segmentos midiáticos, o ministro da economia anunciava sua pretensão de criar a tal “Carteira Verde e Amarelo”, que, traduzindo, nada mais é que uma relação de emprego sem direito trabalhista algum.

Iniciamos 2021 e a constatação é a de que o sofrimento generalizado que atingiu a todos e todas em 2020, e com muito maior intensidade a classe trabalhadora, sendo de modo ainda mais grave com relação aos periféricos, às mulheres e, principalmente, aos negros e negras, não foi capaz de estimular qualquer mudança nesta postura exploratória, indiferente e excludente que marca a maneira como se vê o trabalho no Brasil.

A notícia em questão, aliás, é elucidativa da recorrente estratégia utilizada por setores dominantes para alcançarem seus objetivos nesta seara. Em primeiro lugar, excluem sua subjetividade. Assim, não formulam pretensões advindas de seus desejos e sim saídas que são inexoráveis diante de elementos externos, de natureza econômica, e que estão fora de seus domínios. A crise ou a penúria econômica é que lhes obriga a agir do modo como agem e o fazem, segundo se tenta expor, até de forma contrária à sua vontade. Como consequência, apresentam-se como vítimas da situação e essa posição de vítima se reforça quando suas “justas” e “inevitáveis” reivindicações não são imediatamente atendidas pelos governos. Neste momento, aliás, passam da vitimização à chantagem, dizendo que se não forem acolhidas suas pretensões, serão obrigados a impingir maior sofrimento à classe trabalhadora e potencializar as dificuldades sociais e econômicas da nação, promovendo o desemprego em massa. Por fim, se nada disso funciona (e até mesmo quando funciona), apresentam a carta guardada na manga em que expressam de forma clara e inequívoca que desrespeitarão à institucionalidade estatal, criando a sua própria. É quando dizem: então, não vamos cumprir a lei e ponto final.

Vale perceber que todos esses elementos estão presentes na notícia em questão: a) reivindicação de redução de direitos trabalhistas para solução dos problemas econômicos próprios; b) redução imposta pelos elementos externos, alheios à sua vontade; c) vitimização diante da possível incompreensão do governo; d) ameaças com as dispensas coletivas; e, e) postura assumida de desrespeito à lei, a qual só teria valido no aspecto estrito dos benefícios que lhes foram concedidos.

Conforme explicitado na notícia, um dos entrevistados, para pressionar o governo a manter a possiblidade de redução de salários e suspensão de contratos, diz que um dos “problemas” da lei “é que empresas beneficiadas com as medidas têm a obrigação de manter os funcionários por período equivalente ou indenizá-los. Isso deve levar a ações judiciais dada a dificuldade de realizar pagamentos.” Traduzindo em miúdos, o que disse expressamente é que se não forem atendidos em sua demanda não cumprirão essa parte da lei e que o efeito desastroso disso será o da ampliação de processos na Justiça. O mais grave é que uma das principais empresas do setor representado pelo entrevistado, que teve cerca de 12.000 de seus empregados atingidos pelas medidas em questão, registrou lucro líquido de 45 milhões de euros nos primeiros nove meses de 2020.[2]

O curioso é que na época do massacre midiático para justificar a “reforma” trabalhista se tentou difundir a ideia de que o número elevado de ações trabalhistas era fruto da facilidade de acesso conferida aos trabalhadores, os quais, promoviam, assim, verdadeiras “aventuras jurídicas” em face dos coitados dos empregadores, abstraindo a realidade de que a grande maioria das reclamações trabalhistas versava sobre verbas rescisórias não pagas. Estava na raiz do problema o reiterado, massificado e assumido desrespeito à legislação trabalhista, adotado, inclusive, como tática de empreendimento, mas, com forte financiamento midiático, se conseguiu sombrear. Agora, pelo menos fica clara a origem das reclamações trabalhistas.

A questão é que se antes muitos empregadores já não temiam as reclamações trabalhistas, cujo resultado, historicamente, não passava (a não ser em situações excepcionais) de uma condenação ao pagamento – anos depois – dos valores que já deviam ter sido pagos (acrescidos e juros e correção monetária), hoje essa posição de conforto para o cometimento da ilegalidade trabalhista é ainda maior, já que o processo do trabalho, diante dos termos da “reforma”, ficou mais arredio, arriscado, custoso e inacessível aos trabalhadores e, agora, nem mesmo correção monetária e juros de mora se somarão à dívida a partir da data da propositura da reclamação trabalhista, conforme preconizada por recente decisão do STF (ADCs 58 e 59).

O fato concreto e insofismável, no entanto, é que esses empregadores experimentaram um benefício estatal que foi custeado, assim, por toda a sociedade, para que reduzissem salários de seus empregados em até 70% ou efetivassem a suspensão de contratos de trabalho, e isto sem a contrapartida de terem que comprovar prejuízos experimentados no período e até mesmo sem ter que prestar contas quanto aos lucros acumulados ao longo dos últimos anos.

E já sabiam, desde o princípio, que as medidas valeriam até, no máximo, 31 de dezembro de 2020, e que a condição, legalmente fixada, para a aquisição do benefício, seria a manutenção dos empregos dos empregados atingidos, durante o mesmo tempo de aplicação das medidas.

Assim, os mesmos que vinham dizendo que a “modernização” das relações de trabalho se justificava pela necessidade das pessoas, individualmente, sem atuação paternalista do Estado, assumirem as suas obrigações contratualmente fixadas, vêm agora a público assumir que vão descumprir o compromisso firmado com toda a sociedade quanto à preservação dos empregos, tentando transformar isso em apenas mais um “simples” descumprimento da lei trabalhista, que diz respeito aos interesses individuais em jogo – para, assim, inclusive, contando com a necessidade econômica do(a) trabalhador(a), auferir um “bom acordo” em eventual futura reclamação trabalhista.

Mas não há nada de “simples” nesta história. É uma questão extremamente grave de assunção pública em torno da prática de um ato ilícito, que, inclusive, interfere no interesse de todos(as) os(as) cidadãos(ãs), já que diz respeito à destinação e à devida utilização do fundo público. Não cumprir essa parte do pacto representa, juridicamente, a obrigação de devolver, com seus próprios recursos, ao Estado todo o valor que foi repassado.

O que a notícia traz, portanto, é uma afronta explícita ao pacto de solidariedade, mas esse tipo de traição, vale reconhecer, é algo com o qual o setor econômico já se habituou. Basta lembrar que o Estado Social, que foi a fórmula adotada pelos países capitalistas para engendrar uma nova relação, inclusiva, no pós-Segunda Guerra Mundial, tempos mais tarde, foi fortemente atacado, sob a acusação de constituir um entrave aos interesses econômicos. A Constituição Federal brasileira de 1988 é exemplo nítido dessa postura de “esquecimento” frente aos pactos formulados.

Então, não seria nem mesmo de assustar que fosse essa a postura adotada por muitas empresas beneficiadas pela Lei n. 14.020/20 – algumas delas que, inclusive, recebendo dinheiro do fundo público para impor sacrifícios salariais aos trabalhadores, apresentaram aumento nas taxas de lucro em 2020 –, até porque, afinal, no Brasil, respeitar direito trabalhista constitucional e legalmente assegurado é coisa de radical, quando não de “comunista”, sendo que o que se consagrou mesmo foi uma espécie de direito do empregador de descumprir a lei trabalhista.

Isso sempre foi grave, mas nunca se percebeu como tal. É urgente, entretanto, que todas as falas de incitação à prática ilícita sejam vistas como de fato são, um atentado à ordem jurídica e ao Estado Democrático de Direito, até porque é desse vício – que corre sem identificação, reprimenda ou punição – que se têm alimentado as reiteradas e cada vez mais contundes agressões às instituições democráticas promovidas pelo próprio chefe de Estado[3].

É de suma importância perceber, de uma vez por todas, que as diversas agressões à ordem jurídica são da mesma potência e umas, quando se perfazem sem punição e até com apoio midiático, alimentam outras, ainda mais quando algumas, para se efetivarem, estão lastreadas em alianças que legitimam e fortalecem golpes institucionais.

Sintomático dessa aliança perniciosa e promiscuamente comprometedora da ordem constitucional é a coincidência entre a inércia irresponsável do governo federal para a aquisição de vacinas e seringas e para promover uma campanha de vacinação pública, horizontal e republicana, e a oportunidade que essa postura abre para a atuação da iniciativa privada no setor[4], o que não se verificou, ao que se sabe, em nenhum outro país. Aliás, é igualmente sintomático das opões eleitas no Brasil durante a pandemia que hoje se tenha chegado a mais de 200 mil mortos, ao mesmo tempo em que o índice Bovespa atingiu a sua maior marca histórica.

Em suma, a notícia acima, transmitida apenas como mais um, dentre tantos outros, capítulos do modo como lidamos com o trabalho, demonstra que se a democracia no Brasil está em risco, muitos são os atores dessa história, já que a ordem democrática está indissoluvelmente associada à efetivação dos Direitos Sociais, dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais e, na essência, não há democracia sem a consagração de um pacto cuja base seja o efetivo, ético e sincero respeito à vida alheia a partir de um padrão concreto de solidariedade social!

Assim, todos que, de algum modo, com argumentos fugidios da realidade e ofensivos à razão e à história, militam contra os Direitos Sociais e Humanos ou naturalizam os ataques institucionais a esses direitos conspiram contra a ordem democrática e retroalimentam o desprezo ao conhecimento e o desrespeito à vida, estimulando o sofrimento, a dor e a barbárie.

*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).

Notas


[1]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2021/01/hoteis-e-servicos-pedem-extensao-do-beneficio-de-reducao-de-jornada.shtml

[i] Prosegur reporta lucro líquido consolidado de 45 milhões de euros nos primeiros nove meses de 2020. Prosegur. Disponível em: https://www.prosegur.com/en/media/article/press/Prosegur-obtiene-un-beneficio-neto-consolidado-de-45-millones-de-euros.

[ii]. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/01/se-brasil-tiver-voto-eletronico-em-2022-vai-ser-a-mesma-coisa-dos-eua-diz-bolsonaro-apos-invasao-ao-capitolio.shtml
[iii].https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-01/clinicas-particulares-brasileiras-negociam-compra-de-vacina-da-india

 

 

 

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