Neoliberalismo 2.0

Imagem: Charlotte May
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Por DANILO JORGE VIEIRA*

A tendência mais provável das atuais mudanças consiste na intensificação das heterogeneidades estruturais no âmbito do sistema global e no agravamento das desigualdades econômicas e sociais dentro e entre os países

O início do governo de Joe Biden tem atraído grande atenção em âmbito mundial, em razão, principalmente, das mudanças que o presidente democrata vem efetuando na política econômica americana, sobretudo no que diz respeito à política fiscal. Em seus primeiros 100 dias à frente da Casa Branca, Biden anunciou três programas governamentais que, além de mobilizar volume expressivo de recursos de cerca de US$ 6 trilhões, restabelecem atribuições abrangentes e incisivas do Estado em diversos setores cruciais da realidade socioeconômica dos EUA.

A nova estratégia nacional em delineamento em Washington rompe claramente com muitas convenções neoliberais dominantes e retoma postulados de inspiração keynesiana que haviam sido rejeitados e desacreditados no bojo da construção da ordem global contemporânea, voltando a reconsiderar os multiplicadores fiscais e, portanto, reabilitando a política fiscal como instrumento de gestão da demanda efetiva.

Por isso mesmo, a nova política econômica proposta por Joe Biden – calcada em maciços gastos orçamentários, ampliação do endividamento público e aumento da tributação sobre empresas e estratos sociais de maior renda – vem despertando entusiasmo em alguns segmentos da opinião pública e, ao mesmo tempo, desconfiança (e oposição) em outros. Enquanto os primeiros interpretam os movimentos do democrata como uma “revolução” capaz de engendrar o fim do neoliberalismo, os demais consideram as medidas exageradas, tendendo a recrudescer a inflação e as taxas de juros e, assim, podendo abortar prematuramente a recuperação econômica dos EUA, com efeitos extensivos para a economia mundial.

Como será argumentado neste texto, os planos formulados pela administração Biden, que se somam a iniciativas semelhantes adotadas por outras economias avançadas, modificam e subvertem, de fato, diversos elementos da política fiscal dominante e, consequentemente, podem transformar as convenções macroeconômicas estabelecidas. Tais mudanças, entretanto, não apontam para o abandono, o enfraquecimento ou a derrocada do neoliberalismo. Ao contrário, elas traduzem e se vinculam a ajustamentos que visam reatualizar a ordem global neoliberal, reconfigurando vários de seus fundamentos, cuja disfuncionalidade para as economias capitalistas centrais vinha sendo percebida e abertamente criticada desde dentro do próprio stablishment, mas que se tornou ainda mais nítida – e, ao que parece, insustentável – após a eclosão da crise pandêmica em curso.

Ademais, esses ajustamentos na ordem global neoliberal serão muito adversos para as nações subdesenvolvidas, pois tendem a acentuar as heterogeneidades estruturais do sistema econômico mundial, aprofundando a bipolarização entre o centro e a periferia, o que resultará na ampliação das assimetrias institucionais e no agravamento das desigualdades econômicas e sociais em escala internacional – dentro e entre os países. Na sequência do texto, serão abordados sumariamente os principais aspectos dessas transformações, mas de forma intencionalmente restrita, tendo como referência apenas as mudanças observadas na política fiscal no período recente.

Mercado-Mundo

Um ponto de partida apropriado para a análise pode ser a discussão a respeito do caráter “homogenizador” da globalização. De fato, como é amplamente reconhecido, o projeto neoliberal da globalização contemporânea consistiu na organização do Mercado-Mundo por meio do duplo processo de unificação e uniformização das economias capitalistas nacionais que, embora conectadas umas às outras, operavam com certa introspecção e autonomia relativa até pelo menos o último quartel do século passado.

O mercado mundial funcionava, em grande medida, como uma soma de múltiplos mercados nacionais relativamente estanques, conformando uma articulação fragmentada de economias organizadas em diferentes bases institucionais. Essa diversidade aumentava a imprevisibilidade, os riscos e as incertezas, ao criar descontinuidades, fricções e instabilidades, que dificultavam as decisões de alocação dos crescentes encaixes líquidos acumulados pelos agentes econômicos participantes do mercado transnacional, obstruindo, assim, a potência de geração e apropriação de excedentes financeiros do sistema.

Embora não tenha suprimido a variedade nacional de sistemas de economia política, a globalização avançou bastante a partir das décadas finais do século XX e as reformas de cunho neoliberal criaram um espaço econômico “desfronteirizado” mais unificado e institucionalmente mais uniforme, permitindo a concretização de fluxos densos e desimpedidos de capital-dinheiro e mercadorias. Conformou-se, assim, o Mercado-Mundo, que organiza os atuais processos de reprodução ampliada e de apropriação polarizada de excedentes em escala planetária.

Política fiscal financeirizada

Esse movimento de convergência institucional entre as nações foi irregular e parcial, mas alcançou avanços notáveis em âmbitos cruciais para a globalização do sistema econômico, entre os quais o campo fiscal. As reformas implementadas, principalmente a partir dos anos 1990, lograram estabelecer um razoável padrão homogêneo de gestão das finanças públicas, criando uma institucionalidade fiscal relativamente comum para um conjunto representativo de países.

O monitoramento do FMI das normas legais estabelecidas no âmbito dos países para disciplinar a política fiscal fornece informações que permitem constatar o alcance desse movimento de convergência institucional no campo das finanças públicas. Os dados disponíveis indicam que, em 1990, apenas cinco países contavam com regras fiscais de observância obrigatória pelas autoridades governamentais. Em 2015, duas décadas e meia depois, esse grupo tinha se ampliado de forma expressiva, atingindo o número de 96 países, cuja gestão orçamentária estava submetida a algum tipo de regra de enforcement de base nacional e/ou supranacional[i].

As regras fiscais consistem em restrições rígidas e duradouras impostas de forma compulsória à gestão das finanças públicas, tendo em vista que são fixadas no ordenamento legal de cada país. Ao estabelecer limites quantitativos para alguns parâmetros selecionados, tais como as despesas, a dívida e o resultado fiscal, elas conformam uma institucionalidade comprometida com diretrizes de higidez orçamentária e financeira permanente, em linha com o princípio pré-keynesiano de sound finance. O objetivo principal é o de coibir a ação discricionária dos responsáveis pela política fiscal e, assim, assegurar uma trajetória para a dívida pública que seja considerada previsível e, ao mesmo tempo, sustentável em termos intertemporais pelos investidores participantes do mercado financeiro global.

Assim, a política fiscal tem suas funções macroeconômicas esvaziadas, em especial a de estabilização, que passa a ser designada e exercida quase que unicamente pela política monetária, em razão de pelo menos cinco elementos, estabelecidos como verdadeiros dogmas na perspectiva teórica majoritária, que podem ser enumerados resumidamente da seguinte forma[ii]:

(1) A crença de que a ampliação do gasto público desloca o gasto privado e pressiona os juros, aumentando o custo do financiamento e da dívida pública, de modo que as políticas fiscais expansionistas, além agravar o desequilíbrio orçamentário, podem resultar no efeito não desejado de contração da demanda efetiva.

(2) A crença de inspiração ricardiana segundo a qual as consolidações fiscais podem induzir a expansão do produto e do emprego, contrariamente ao que prescrevia o modelo simples keynesiano, tendo como premissa a ideia de que os agentes econômicos são capazes de realizar cálculos racionais prospectivos e, assim, tendem a ampliar seus gastos em consumo e investimento, pois esperam efeitos positivos da contração orçamentária sobre a trajetória futura dos juros, da inflação e da dívida pública.

(3) A crença de que a implementação e os efeitos dos estímulos fiscais não são imediatos e demoram para se efetivar, tornando-se, portanto, ineficazes, em razão de seu atraso em relação ao ciclo econômico.

(4) A crença de que a suspensão dos estímulos fiscais é difícil de ser realizada após a superação da crise contra a qual foram criados, fazendo com que seus efeitos expansionistas permaneçam por mais tempo que o necessário e criem um novo vetor de desajustes macroeconômicos.

(5) A crença de que os gestores governamentais tendem a administrar os orçamentos públicos com amortecedores fiscais baixos e/ou inexistentes, estabelecendo um vetor crônico de desequilíbrios fiscais e desajustes macroeconômicos.

Nesses termos, a política fiscal tem sua função estabilizadora rejeitada, perdendo seus atributos de instrumento de gestão macroeconômica. Ademais, a política fiscal passa a ser manejada sob normas restritivas previamente estabelecidas e sobredeterminada por metas inelutáveis de equilíbrio orçamentário e de solvência dos passivos governamentais, com a finalidade precípua de infundir confiança nos mercados globalizados e garantir a plena liquidez e rentabilidade esperada dos títulos da dívida pública, de modo a habilitá-los como ativos seguros e lucrativos de proteção e de valorização da riqueza financeira.

Disfuncionalidades sistêmicas

Esse padrão de política fiscal financeirizada vem crescentemente explicitando disfuncionalidades intrínsecas para a reprodução do próprio sistema, por conta de sua incapacidade de lidar não apenas com choques adversos, mas também por não fornecer os mecanismos apropriados para fazer face a impasses macroeconômicos mais regulares, sejam os de caráter mais rotineiro ou aqueles de natureza crônica. As diretrizes de austeridade orçamentária e de disciplina financeira introduzem uma dinâmica pró-cíclica muito rígida nas finanças públicas, suscetível de ser atenuada em alguma medida e apenas de forma limitada pelo acionamento episódico de estabilizadores automáticos mais ou menos potentes. Esse acentuado encurtamento do raio de manobra das autoridades fiscais tem implicações de grande extensão, traduzindo-se, por exemplo, no prolongado e persistente ciclo de baixo dinamismo das economias de mercado, a fragilização da capacidade do Estado prover bens e serviços coletivos, a deterioração do mercado de trabalho e o consequente agravamento das desigualdades sociais.

A trajetória medíocre e contida das economias centrais nas últimas três décadas, que abrangem o momento de apogeu da globalização neoliberal, evidencia as dificuldades às quais se vêm fazendo referência. Entre 1990 e 2019, o PIB consolidado das economias capitalistas mais avançadas do mundo, que formam o G-7, cresceu a uma taxa média anual real de 1,8%, abaixo da registrada pela América Latina e Caribe (2,7%) e também pela economia mundial (3,2%). Os EUA tiveram expansão pouco superior, atingindo 2,4% em média ao ano. A China, por sua vez, alcançou taxa média anual de 9,2%. Com isso, o país asiático elevou sua participação no PIB global de 3,2% para 17,3% no período em referência, despontando como a workshop of the world.

O padrão de política fiscal financeirizada não foi, por óbvio, o fator determinante para a conformação do quadro duradouro de baixo dinamismo experimentado pelas economias de mercado, tanto as centrais quanto as periféricas. Mas é inegável que entre os diversos fatores que incidem de forma combinada e cumulativa sobre esse fenômeno está também a atual matriz de política fiscal, que, ao rejeitar e buscar neutralizar os multiplicadores fiscais em favor da defesa da riqueza financeira, contribui com a conformação e a persistência do viés estagnacionista dominante na economia global.

Crise global e dissensos

Em razão de seus limites e debilidades inerentes, o padrão de política fiscal financeirizada tem sido recorrentemente criticado por economistas e policy makers do próprio campo majoritário. Esse dissenso, inicialmente pontual e restrito, veio acumulando forças e alcançou maior densidade e amplitude na década passada, sobretudo a partir da grande crise financeira internacional de 2008. Diante da rápida e acentuada deterioração das condições do mercado mundial, tendo como epicentro as economias avançadas, os governos foram obrigados a abandonar os paradigmas dominantes e reativar a política fiscal, mediante a adoção de maciços pacotes de estímulos orçamentários e financeiros, visando atenuar os efeitos depressivos daquela que foi a maior crise desde o colapso de 1929 e que se configurou como a primeira crise de proporções efetivamente globais da história do capitalismo.

Os planos de enfrentamento da crise dos EUA e da União Europeia permitem dimensionar o grau de ruptura que ocorreu em relação aos preceitos de austeridade fiscal até então vigentes. Considerando apenas os estímulos de natureza orçamentária, o governo federal americano mobilizou cerca de US$ 1 trilhão no biênio 2008 e 2009 (Economic Stimulus Act – US$ 170 bilhões; American Recovery and Reinvestment Act – US$ 832 bilhões). A Comissão Europeia, por sua vez, adotou um programa de recuperação econômica de 200 bilhões de euros – o equivalente a 1,5% do PIB da União Europeia em 2008.

Não menos importante que este elemento de caráter mais conjuntural derivado da crise financeira global, outros dois fatores de ordem estrutural têm determinado igualmente as mudanças nos rumos do debate e na concepção a respeito da política fiscal. Um deles diz respeito ao agravamento das desigualdades e condições sociais observado nas economias avançadas desde o final do século passado e outro é a ascensão da China, que vem alterando profundamente a geografia econômica do mundo.

Esses dois fatores colocam em xeque e lançam enormes desafios à ordem neoliberal global. Por um lado, o aumento da concentração da renda e a deterioração das condições de vida de parte expressiva das populações dos países desenvolvidos, configurando um processo que pode ser denominado de “periferização do centro”, reiteram a natureza de classe das reformas e das instituições neoliberais, o que tende a aumentar os tensionamentos e a solapar a base de legitimação social da ordem globalizada contemporânea, cada vez mais frágil e estreita.

A preocupação das instituições da governança global com esse delicado e instável quadro de insatisfação social tem sido recorrente. Emblemático neste sentido é o dossiê intitulado “Age of insecurity: rethinking the social contract”, publicado na edição de dezembro de 2018 da revista Finance and Development, do FMI, no qual é proposta a formalização de um novo “contrato social” a fim de deter o avanço do “populismo” e do “nacionalismo”, que seriam antagônicos à globalização neoliberal.

Por outro lado, o progresso industrial, tecnológico, financeiro e militar acelerado da China ameaça, como jamais tinha ocorrido até agora, a hegemonia americana e, assim, conforma um vetor de contestação da própria ordem global organizada por ela e em torno dela. No discurso que fez no Congresso no final de abril passado para marcar os 100 primeiros dias de governo e defender seus três planos econômicos, o presidente Joe Biden deixou evidente o objetivo estratégico de revigorar a hegemonia americana, com a finalidade de enfrentar o espetacular ascenso chinês, ao afirmar: “a América se move, avança, mas não podemos parar agora. Estamos competindo com a China e outros países para vencer o século 21. Estamos em um grande ponto de inflexão na história”[iii].

Neste contexto complexo e em transformação, o entendimento que vai se firmando no campo majoritário é de que a atual matriz de política fiscal – e, de modo mais amplo, a matriz de política econômica vigente – enfraquece as economias capitalistas centrais frente a esses grandes desafios impostos à ordem neoliberal global contemporânea, determinando mudanças nos seus fundamentos teóricos e práticos.

A eclosão da pandemia da COVID-19 no início de 2020 reforçou a necessidade de alteração de rumos, tendo em vista que seus efeitos sanitários, humanitários, sociais e econômicos de grande extensão acentuaram os três fatores antes arrolados que vinham incidindo no debate acerca dos limites e das disfuncionalidades da política fiscal, a saber: a forte contração da atividade econômica, que superou a de 2008, tornando a crise pandêmica a mais aguda desde a depressão dos anos 1930; o agravamento das desigualdades e das condições sociais, e o maior desarranjo das economias avançadas, em comparação à rápida reação da China ao contexto adverso global.

Combinados, esses fatores conjunturais e estruturais reiterados colocaram o arranjo fiscal dominante outra vez em xeque, exigindo o abandono de seus postulados e a execução de amplos e maciços pacotes de estímulos orçamentários e financeiros pelos governos nacionais para fazer face à crise pandêmica, cujo desenlace ainda não está no horizonte. Tais impasses continuados e cumulativos tornaram mais nítido o delineamento do que pode ser denominado de uma Nova Visão de política fiscal, para usar o termo empregado por Jason Furman, economista-chefe da Casa Branca durante a gestão de Barack Obama (2009-2017), para designar as mudanças que vêm ocorrendo nas convenções firmadas no âmbito teórico e empírico das finanças públicas[iv].

“Nova visão” emergente

Embora seja prematuro afirmar que um novo consenso em torno da política fiscal tenha se estabelecido, é inegável que uma visão renovada e distinta da anterior vai se formando – os maciços planos de resgate econômico adotados ou em elaboração pelos governos dos países centrais podem ser considerados evidências e prenúncio das mudanças em curso. Mas em razão de estar em tal estágio preliminar, sujeita a desenvolvimentos teóricos e empíricos que seguem em aberto no campo hegemônico, bem como à influência de intercorrências de ordem política, a reavaliação da política fiscal se encontra em bases ainda muito fluídas, apresentando diversas versões parciais e incompletas e concentrando-se ora em certos aspectos ora em outros. Ou seja, o que está sendo definido de Nova Visão não conta até o momento com um corpo teórico coerente estabelecido.

Uma forma pertinente de apreender as principais mudanças na concepção hegemônica de política fiscal, buscando verificar alguns dos elementos centrais dessa nova visão em delineamento, pode ter como referência as formulações analíticas e as recomendações de medidas governamentais elaboradas pelo FMI, cuja produção teórica e técnica é reconhecidamente representativa da perspectiva dominante no campo da macroeconomia.

Tendo como base o Fiscal Monitor, série de estudos lançada em 2009 pelo FMI para acompanhar a trajetória das finanças públicas dos países participantes do sistema econômico global, é possível verificar modificações importantes no entendimento acerca do papel que pode ser desempenhado pela política fiscal. Ao longo da última década, a concepção dominante e catalisada pelo staff de economistas da instituição multilateral transitou de uma posição ortodoxa convencional para outra mais flexível, que passa a considerar os multiplicadores fiscais e, consequentemente, volta a vislumbrar as funções estabilizadora, alocativa e redistributiva da política fiscal, abrindo espaço para que ela seja reabilitada como um instrumento de gestão macroeconômica.

Versões mais desenvolvidas desta nova visão de política fiscal foram apresentadas nas edições do Fiscal Monitor posteriores a 2017, recebendo tratamento empírico no relatório divulgado no último mês de abril. Essa nova abordagem do FMI ainda se encontra em bases muito gerais, mas pode ser sintetizada no modelo proposto de “Ajuste fiscal inclusivo e pró-crescimento” – “Inclusive and growth-friendly fiscal adjustments” (Fiscal Monitor, abril de 2019, p. 6).

A nova abordagem do FMI, que incorpora explicitamente objetivos mais amplos à política fiscal, notadamente o crescimento econômico e a redução das desigualdades sociais, contempla, basicamente, quatro iniciativas principais: 1. aumento do investimento público; 2. aumento dos gastos de consumo do governo (custeio); 3. transferências aos estratos sociais de baixa renda; 4. elevação da tributação sobre os estratos sociais de alta renda[v].

Essa nova matriz de política fiscal, de acordo com as simulações empíricas elaboradas pela equipe de economistas do FMI, engendraria três encadeamentos simultâneos virtuosos. Ao mesmo tempo em que estimularia o crescimento econômico, em razão do gasto público ampliado (custeio e investimento) e do maior consumo dos grupos de baixa renda, o endividamento governamental assumiria trajetória descendente, por causa da expansão do PIB a uma taxa superior à da dívida. Adicionalmente, a redistribuição da renda a favor dos estratos de menor poder aquisitivo, por conta de uma tributação mais progressiva e das transferências, além de apoiar o crescimento econômico, favoreceria a redução das desigualdades.

Nos termos expostos resumidamente acima, evidencia-se que o modelo de ajuste fiscal inclusivo e pró-crescimento contrasta de modo muito significativo da atual matriz de política fiscal dominante. Em primeiro lugar, a nova abordagem reconhece os multiplicadores fiscais e busca manejar a política fiscal não apenas com o objetivo de suavizar o ciclo econômico, mas também para influenciar a sua tendência, estimulando o crescimento de médio e longo prazos. Em segundo lugar, e não menos importante, o objetivo de alcançar uma trajetória sustentável para a dívida pública – e para a própria política fiscal, de modo mais amplo – passa a ser balizado não apenas no controle dos gastos e na geração de superávit primário, mas também por intermédio do crescimento do PIB. Esses dois aspectos, em especial, ampliam inegavelmente a margem para a ação discricionária das autoridades orçamentárias.

Um ponto de suma importância para a melhor compreensão da nova abordagem fiscal em delineamento diz respeito ao alcance das mudanças que ela pode suscitar. No debate teórico e empírico que vem ocorrendo está mais ou menos evidente que as transformações não serão amplas e irrestritas, mas, ao contrário, deverão ter implicações seletivas e bem específicas. Como o próprio FMI vem advertindo, o novo modelo de ajuste fiscal inclusivo e pró-crescimento não deve ser considerado como um “apoio geral ao estímulo fiscal em todos os lugares e sob todas as circunstâncias” (Fiscal Monitor, abril de 2017, p. 15 e 16). Assim, cabe indagar em que circunstâncias econômicas e em quais lugares a nova visão de política fiscal terá plena validade.

Espaço fiscal e dívida pública

A implementação do modelo de ajuste fiscal inclusivo e pró-crescimento tem pelo menos duas premissas básicas principais inelutáveis, segundo a abordagem convencional: a existência de espaço fiscal e um contexto crônico de juros baixos e/ou negativos, fazendo com que as funções de estabilização da política monetária fiquem mais restringidas ou percam, até mesmo, a eficácia.

Em relação à primeira pré-condição, cabe ressaltar que o conceito de espaço fiscal não diz respeito apenas à mera disponibilidade de condições orçamentárias correntes para a absorção de maiores gastos. O termo tem sentido mais amplo e faz referência a uma situação de caráter sistêmico e intertemporal que permite a execução de política fiscal discricionária, sem, com isso, afetar a capacidade de financiamento do governo por meio da ampliação da dívida pública. Essa maior capacidade de financiamento, como se sabe, está praticamente restrita aos países que contam com moedas conversíveis e se situam nos níveis hierárquicos superiores do sistema monetário internacional.

Em relação à taxa de juros, há dinâmicas muito distintas entre os países e grupos de países. De modo geral, os juros são estruturalmente mais elevados e rígidos à baixa nos países subdesenvolvidos, uma vez que incorporam um prêmio de risco associado às suas fragilidades e dependência financeira inerentes. Em contraste, as economias avançadas têm experimentado um ciclo duradouro e persistente de taxas de juros baixas, quando não negativas.

Evidencia-se, portanto, que, à luz da nova abordagem em delineamento, praticamente apenas as economias avançadas apresentariam as pré-condições econômicas e institucionais necessárias à adoção do novo modelo de política fiscal inclusiva e pró-crescimento. Nos países periféricos, ao contrário, as pré-condições inexistiriam, de modo que um primeiro procedimento proposto pelo receituário convencional para construi-las consistiria em fortalecer as regras fiscais, o que significa reiterar e a reforçar a atual matriz de política fiscal contrária à ação discricionária das autoridades orçamentárias.

Assimetrias fiscais

A assimetria entre as economias centrais e periféricas no campo fiscal, na realidade, são bastante demarcadas. A trajetória da política fiscal desses dois grupos de países nas últimas décadas evidencia as diferenças e sugere que as convenções ortodoxas são menos flexíveis e mais amplamente aceitas nas nações subdesenvolvidas, onde os princípios de higidez financeira e de disciplina orçamentária parecem ter maior enraizamento entre as autoridades macroeconômicas, fazendo com que o debate público em torno de modelos alternativos de política fiscal permaneça interditado.

As ações governamentais de enfrentamento da crise pandêmica explicitaram essas assimetrias, tornando-as ainda mais notórias. Para fazer face aos efeitos sanitários, sociais e econômicos advindos da pandemia da COVID-19, os governos nacionais implementaram programas de estímulos fiscais que mobilizaram recursos da ordem de US$ 16 trilhões entre março de 2020 e março deste ano, de acordo com informações sistematizadas pelo FMI.

Os dados disponíveis, contudo, sugerem que as políticas fiscais adotadas pelos países centrais foram muito mais expansionistas do que a executada pelos governos da periferia, que, ao que parece, mantiveram-se atrelados aos parâmetros de orçamento equilibrado, a despeito da situação emergencial e sem paralelo na história recente criada pela crise pandêmica.  Em termos consolidados proporcionalmente ao PIB, enquanto as economias centrais ampliaram os gastos públicos em cerca de 23%, os países emergentes de renda média (entre os quais o Brasil) registram aumento de pouco mais de 10%.

Conclusões provisórias

O texto buscou demonstrar que a atual matriz dominante de política fiscal está sob revisão. A profundidade das mudanças delineadas ainda não é clara, mas já é possível antever que muitos dos postulados ortodoxos que organizaram e vem orientando a gestão das finanças públicas no contexto da ordem global neoliberal há pelo menos três décadas devem ser reformulados, flexibilizados ou, até mesmo, abandonados.

A reavaliação de paradigmas e convenções em curso decorre do entendimento que vai se firmando gradualmente no âmbito do próprio mainstream a respeito das insuficiências da atual matriz de política fiscal.

Esvaziada de suas funções de estabilização, alocação e redistribuição, a política fiscal perdeu suas atribuições de instrumento de gestão da demanda efetiva, passando a ser manejada com o objetivo principal – e quase único – de assegurar uma trajetória para a dívida pública que seja considerada sustentável em termos intertemporais pelos investidores participantes do mercado financeiro global.

Essa matriz de política fiscal, sobredeterminada pelo cálculo financeiro dos agentes econômicos, vem sendo considerada cada vez mais disfuncional, por ser incapaz de lidar com os crescentes riscos internos (aumento das desigualdades e da pobreza) e externos (ascensão econômica da China) à ordem global neoliberal. As mudanças em delineamento devem ser entendidas, portanto, como a reorganização da ordem global neoliberal em bases renovadas, e não o seu enfraquecimento.

Ademais, e esse aspecto é de suma importância para qualquer análise prospectiva do sistema econômico mundial, a reformulação da matriz de política fiscal provavelmente será bastante restrita, alcançando apenas as economias de mercado avançadas. Nas economias de mercado subdesenvolvidas, os atuais postulados convencionais de austeridade fiscal e de disciplina financeira deverão ser reiterados e revigorados.

Como consequência dessa transformação desigual e combinada ainda em configuração, os países subdesenvolvidos devem ser reordenados como campo de processos de acumulação ainda mais coercitivos, sendo revitalizados para permitir a reciclagem de grandes massas de excedentes financeiros.

A tendência mais provável das mudanças em delineamento consiste, portanto, na intensificação das heterogeneidades estruturais no âmbito do sistema global, com o aumento da divergência institucional; o agravamento das desigualdades econômicas e sociais dentro e entre os países, e uma maior bipolarização entre centro e periferia.

*Danilo Jorge Vieira é doutor em economia aplicada pelo Instituo de Economia da Unicamp.

Notas


[i] LLEDÓ, V., YOON, S., FANG, X., MBAYE, S. & KIM, Y. Fiscal rules at a glance. Washington: International Monetary Fund, 2017.

[ii] TAYLOR, J. Reassessing discretionary fiscal policy. Journal of Economic Perspectives, v. 1, nº 3, 2000.

[iii] BIDEN, J. Remarks by president Biden in address to a joint session of Congress. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/

[iv] FURMAN, J. The new view of fiscal policy and its application. Conference in Global Implications of Europe’s Redesign. Nova York, Outubro de 2016. Disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/

[v] Online annex 1.1. Model simulations of fiscal support measures, disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/FM/Issues/2021/03/29/fiscal-monitor-april-2021

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