No radar geopolítico — II

Imagem: Ahmed Akacha
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Por RUBEN BAUER NAVEIRA*

A Ucrânia e o Oriente Médio, aparentam estar confluindo rumo a um desfecho “casado”

Os dois teatros de guerra no momento, a Ucrânia e o Oriente Médio, aparentam estar confluindo rumo a um desfecho “casado”. Para podermos chegar a essa conclusão, vamos inicialmente tomá-los em separado.

Ucrânia

A Ucrânia vinha nas últimas semanas realizando um movimento considerado estranho pelos analistas militares. Desde o ano passado, e mais ainda após a aprovação na nova e draconiana lei de mobilizações forçadas, os novos soldados não estavam sendo destinados a repor os contingentes desfalcados nas brigadas em combate no Donbass, como seria de se esperar uma vez que a defesa ucraniana no Donbass está desmoronando frente à intensidade dos ataques russos. Ao invés disso, os recém-mobilizados estavam indo constituir unidades novas, longe da linha de frente.

Há quatro dias, o mistério desfez-se: a Ucrânia iniciou uma significativa ofensiva terrestre contra território russo, no oblast de Kursk.

A tática é a mesma da ofensiva que retomou Izyum e Lyman na região de Kharkov, em setembro e outubro de 2022. Destacamentos avançados procuram penetrar o mais rápida e profundamente possível em território russo, tomando partido da aversão russa por baixas entre suas tropas, ou seja, induzindo os russos à retirada. Somente então o exército ucraniano propriamente dito ocupa de fato o território, consolidando os ganhos, especialmente naquelas áreas nas quais as vanguardas identificaram escassa presença de defesas russas.

Ao contrário da ofensiva em Kharkov em 2022, desta vez os ucranianos estão bem mais sujeitos à artilharia, drones e aviação dos russos, sofrendo baixas bem mais pesadas — nada, porém, que impeça Kiev de jogar cada vez mais tropas nesta ofensiva, naquilo que parece ser uma estratégia de “tudo ou nada”.

Não ficou claro ainda qual o objetivo final da Ucrânia com esta ofensiva, se seria a usina nuclear na cidade de Kursk, se seria a estação de medição do gasoduto que abastece a Hungria e a Eslováquia na cidade de Sudzha, se seria para induzir os russos a deslocar rumo a Kursk as suas tropas desguarnecendo assim outras frentes (como a defesa da megausina nuclear de Energodar em Zaporizhia), ou se seria alguma outra coisa.

Entretanto, um outro possível “objetivo” que aparentemente está passando despercebido já foi alcançado — não haverá mais nenhuma negociação de paz, tão cedo. Dizer que os russos estão furiosos é um eufemismo.

O que os ucranianos já conseguiram com esta ofensiva foi tirar os russos da sua zona de conforto. Os russos vinham seguindo uma estratégia de desgastar o inimigo em uma guerra de atrito, “desmilitarizando” paulatinamente a Ucrânia (estima-se que, ao longo do mês de julho, as baixas ucranianas tenham sido de cerca de dois mil soldados por dia, o maior volume desde o início da guerra), priorizando essa desmilitarização relativamente à conquista de territórios, com o tempo correndo a seu favor.

O único fator que poderia levar os russos a virem a perder a guerra seria uma perda do apoio interno dado ao governo pela população russa. O que os ucranianos conseguiram até agora com a sua ofensiva, muito mais do que dez ou vinte quilômetros de território conquistado, foi colocar sob o seu jugo cerca de uma dúzia de aldeias russas, com os seus respectivos habitantes.

Além disso, foram capturadas tropas de fronteira, compostas não por soldados profissionais ou por voluntários, mas por recrutas de dezoito anos de idade em cumprimento de serviço militar obrigatório. É de se esperar algum grau de atrocidade contra esses civis e esses prisioneiros, e não apenas pela brutalidade inerente à guerra, mas por planejamento deliberado, porque isso desgastará o governo russo diante da sua população (já no primeiro dia da ofensiva uma ambulância, que não é algo que possa ser confundido, foi atacada por um drone, causando a morte do motorista e de um paramédico). Dos russos, pode-se a partir de agora esperar que reajam com força desmedida.

Por uma perspectiva estritamente militar essa ofensiva não faz sentido — não apenas porque provoca os russos de forma inconsequente, mas principalmente porque as defesas ucranianas no Donbass estão colapsando, e é lá que esses soldados seriam mais necessários, não em uma ofensiva em Kursk contra uma grande superioridade dos russos em artilharia e aviação. Na hora em que a Ucrânia mais padece de escassez de soldados ela desperdiça os poucos que ainda tem? Não há nenhum sentido nisso.

Então, a explicação não pode ser militar, precisa ser política. A Ucrânia estaria, aparentemente (e esta é uma suposição de nossa parte), cometendo um suicídio proposital. Em vez de negociações de paz, ainda que desfavoráveis, que levem à preservação de uma boa parte da Ucrânia enquanto país soberano, parece estar sendo trilhado o caminho para uma derrota total.

Os dirigentes na liderança ucraniana têm consciência quanto a que, após uma paz negociada, eles certamente perderão o poder, isso se não vierem a perder a liberdade ou as próprias vidas. Então, para eles pode fazer sentido uma estratégia de “tudo ou nada”. Mas, para Washington, seria infinitamente “menos pior” uma paz desfavorável do que uma derrota total da Ucrânia.

Sintomaticamente, Kiev não avisou previamente a Washington sobre a ofensiva em Kursk (e não há porque duvidar disso, uma vez que os EUA certamente se oporiam). Para piorar, armas ocidentais estão sendo empregadas pelos ucranianos em uma ofensiva contra território russo, algo que os russos não irão deixar barato. Se Moscou já estava fornecendo ao Irã armamento defensivo (radares etc.) de ponta, a partir de agora Teerã (e o Hezbollah, e os Houthis…) poderá seguramente passar a contar com o fornecimento também de armamento ofensivo (mísseis hipersônicos, alô?).

A estratégia de Kiev com essa ofensiva pode assim ser a de obrigar os americanos, contra a própria vontade, a assumirem eles próprios a defesa da Ucrânia, entrando em confronto direto contra a Rússia.

Outra possibilidade seria a de que os ucranianos estariam tentando convencer os governos ocidentais — em especial um eventual futuro governo de Donald Trump nos EUA — de que a Rússia pode ser derrotada, desde que a incapacidade de Vladimir Putin de proteger os cidadãos russos venha a ser deixada patente perante a população russa, e que, nesse sentido, as ajudas financeira e militar do Ocidente à Ucrânia não poderiam ser reduzidas. Esta linha de raciocínio, porém, requer necessariamente o sucesso (duvidoso) a médio-longo prazo da ofensiva em território russo.

Oriente Médio

Tanto quanto no caso ucraniano, Washington não foi previamente informado do assassinato em Teerã do líder do Hamas Ismail Haniyeh, porque a isso certamente teria se oposto, por saber que obrigaria os iranianos a reagirem militarmente contra Israel.

Entretanto, ao contrário do que a mídia hegemônica apregoa (porque o Ocidente quer que aconteça), não há sinais de que o ataque iraniano a Israel seja iminente. Ao que parece, o Irã estaria jogando com a exasperação israelense do ataque “iminente” que nunca vem. Com isso, a cada dia que passa aumentam as pressões internas em Israel para que seja levado a cabo um ataque preventivo contra o Irã.

Se isto vier a acontecer, o Irã conquistará duas coisas: (i) o reconhecimento pelo resto do mundo (e especialmente pela totalidade do mundo árabe) de que Israel é o agressor e o Irã a vítima; e (ii) a liberdade para despejar a totalidade dos seus mísseis sobre Israel.

Aos Estados Unidos interessa que o ataque iraniano seja moderado, a ponto de Israel poder escolher não reagir a ele. Uma escalada é tudo o que não interessa aos EUA, porque eles se verão obrigados a entrar diretamente na guerra ao lado de Israel. Um ataque preventivo israelense ao Irã, todavia, tornará inevitável uma guerra em grande escala. Ao dar sucessivas declarações públicas de que “Israel será punido” e, ao mesmo tempo, ao protelar o ataque punitivo, o Irã empareda o governo israelense e o impele a tomar a iniciativa.

Confluência

Nem mesmo a mente mais aficionada a teorias conspiratórias poderia imaginar que, nos dois grandes teatros de guerra do momento, os Estados Unidos se veriam (se nossas suposições aqui estão corretas) cada vez mais reféns de seus proxies que agem de modo voluntarioso, temerário e fora de qualquer controle, e isso ao mesmo tempo, de forma praticamente sincronizada.

Em uma inversão da lógica da guerra “por procuração” (proxy war), agora são os proxies que na prática buscam obrigar o “senhor” a lutar por eles — e isso às vésperas das eleições presidenciais nos EUA. Vai faltar remédio tarja preta nas drogarias em Washington…

*Ruben Bauer Naveira é ativista político. Autor do livro Uma Nova Utopia para o Brasil: Três guias para sairmos do caos (disponível em http://www.brasilutopia.com.br/).


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