Norma e transgressão no romance “Clube da luta”

Frame de "Clube da luta", dirigido por David Fincher/ Divulgação
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Por LUCIANA MOLINA*

Prefácio do livro de Joacy Ghizzi Neto

1.

1999. Eu ainda não era uma adolescente quando a adaptação cinematográfica de Clube da luta foi lançada mundialmente. Nos anos seguintes, houve a consagração e a consolidação do filme como um fenômeno cult. Com isso, um efeito cascata: adolescentes e jovens começaram a listar esse filme como um dos seus favoritos.

O filme, dirigido por David Fincher, é estrelado por Brad Pitt, Edward Norton e uma sempre peculiar Helena Bonham Carter, a antiga musa de Tim Burton. Bonham Carter está caracterizada com maquiagem pesada, trajes pretos e ares góticos, com o objetivo de encarnar a solitária presença feminina no papel de Marla Singer.

É fácil perceber como esse filme pôde dialogar com o público em geral e seduzi-lo, tornando-se um fenômeno de massas. Se o cinema, para Benjamin, é uma espécie de sonhar acordado, podemos apostar que muitas das imagens que povoam o inconsciente coletivo da virada do século XX para o século XXI se relacionam ao Clube da luta, com suas falas antológicas, referências e memes replicados em massa.

Provavelmente estamos diante de uma obra ficcional que, até a presente data, é um dos casos mais exemplares do quanto a ficção pode contaminar o real e influenciar leitores e telespectadores. Ao escrever o posfácio para a segunda edição de seu romance, Chuck Palahniuk descreve as replicações do Clube da luta mundo afora, que, de tão numerosas, concorrem com o Efeito Werther, a série de suicídios que, segundo consta na tradição, teria tomado a Europa sob influência do livro de Goethe.

O impulso, senão tanatológico, isto é, orientado pela pulsão de morte, no mínimo é violento e destrutivo, e se expressa pela quantidade de pessoas dispostas a se engajarem em lutas e agressões corporais de maneira regular.

Estamos falando de uma obra distribuída a partir de um sistema que concretiza a globalização de um modo distinto daquele esboçado por Goethe com seu conceito de Weltliteratur. Clube da luta é mais um caso bem-sucedido de produção estadunidense que, dentro das diretrizes da indústria cultural, atravessa as fronteiras do país e domina o mundo.

O filme, baseado no romance de Chuck Palahniuk publicado três anos antes, parece apresentar um conteúdo que estava em ebulição naquela década de 1990. Obras como Trainspotting (1996), Beleza Americana (1999) e Psicopata Americano (2000) também dialogavam com um público insatisfeito com o american way of life e a vida prometida pela burguesia estadunidense. Começavam a flertar com uma outra possibilidade de existência.

Parte do seu apelo vem precisamente do desejo de uma outra vida aquém e além da inserção na sociedade de consumo. Mesmo em um momento de relativa prosperidade, como foi a década de 1990, a sociedade capitalista produziu imagens e fantasias de escapismo de sua claustrofobia existencial.

Nos Manuscritos econômico-filosóficos, o jovem Marx mostra que o capital engendra o processo pelo qual o ser humano, omnilateral, é por ele unilateralizado. Assim, as potencialidades humanas passam a se restringirem ao que é conforme ao capital. Essa suposta prosperidade ainda nos expropria significativamente, posto que estamos inseridos em modelos reificados de formação, trabalho e lazer. Dentro dessa humanidade cindida, não conhecemos qualquer prosperidade real e efetiva.

Na madrugada do dia 9 para o dia 10 de novembro de 1989, derrubava-se o muro de Berlim. Esse acontecimento, ao que tudo indica, marcaria a década de 1990, e seria central para entendermos o encolhimento do marxismo, do comunismo e a voga exultante em relação ao neoliberalismo. Clube da luta e os outros filmes da década de 1990 citados deveriam ser lidos à luz do fracasso do socialismo real e do que simbolizou a queda do muro de Berlim. A imagem da queda significou, para muitos, a destruição de qualquer alternativa para a sociedade capitalista.

2.

Slavoj Žižek tem uma compreensão importante e que muito interessa aos estudos estéticos amalgamados a questões ideológicas. Embora as produções hollywoodianas trafiquem ideologia explícita e implicitamente desde seu surgimento, há algo que deve ser observado com olhar mais apurado no que se refere às flutuações ideológicas dentro da sociedade capitalista ao longo do tempo.

Nesse cenário, podemos nos questionar em que direções apontam as novas narrativas trazidas pela década. Assim, é possível observar com mais apuro o que está em questão na conjuntura do Clube da luta.

Os anos de 1990 foram aqueles que, após a queda do muro de Berlim, anunciavam períodos prósperos para o capitalismo. Então por que, apesar disso, apareciam essas obras, como sintomas de um páthos social ainda insatisfeito?

Em 2021 chegou o convite para participar da banca de doutorado de Joacy Ghizzi Neto, a ser defendida na UFPR. Tratava-se de um convite inusitado, posto que não o conhecia, mas que recebi com grande interesse, tendo em vista minhas próprias pesquisas. Assim, tive a oportunidade de retomar meus pensamentos sobre esse filme, que marcou não só minha constituição como cinéfila e apreciadora das artes, mas também toda uma geração.

Com a tese, vi-me diante de hipóteses interessantes e importantíssimas para pensarmos não só o romance de Chuck Palahniuk, mas também alguns dos impasses a serem enfrentados pela crítica de esquerda. Além disso, compreendi melhor muitas das ressalvas que eu mesma nutria a respeito da obra.

As condições da defesa da tese eram em si mesmas calamitosas, pois ainda estávamos atravessando a crise global da pandemia de covid-19 sob a guarda do presidente Jair Bolsonaro. Mas, por isso mesmo, o debate encerrado pelo escrito parecia urgentíssimo, e ainda mais digno de atenção.

O capitalismo, por conta de seus períodos cíclicos de crise e bonança, pode às vezes disfarçar seu caráter precário, sobretudo para aqueles que, nos momentos de maior prosperidade, conseguem se ver inseridos na cadeia de produção e consumo. Apesar disso, o sistema econômico jamais foi bem-sucedido em extinguir o lumpemproletariado, a miséria e a fome.

Com o prefácio para o livro Norma e transgressão no romance Clube da luta, lanço-me à empreitada hermenêutica de discutir os ganhos do trabalho de Joacy Ghizzi Neto já após a posse de um novo governo Lula em 2023. Os vários momentos cronológicos se cruzam enquanto escrevo. Nesse sentido, não sou capaz de enxergar com demasiado otimismo a taxa de desemprego de 8% anunciada pelo novo governo.

Temos ainda que nos lembrar, com Clube da luta e a tese transformada em livro, que o sistema capitalista produz uma humanidade reificada, em que muitos se afogam para que poucos possam emergir.

É absolutamente fundamental que os debates puxados por Joacy Ghizzi Neto continuem a ocorrer, e que a academia, e os estudos literários em particular, não sufoquem as pesquisas comprometidas com a crítica à hegemonia capitalista. Bem sabemos que, hoje, na universidade brasileira, não são muitos os espaços em que podemos observar essas preocupações.

Muitos dos estudos autointitulados críticos fazem compromissos com políticas de curto alcance. Em razão disso, podemos dizer sem receio de errar que a tese de Joacy Ghizzi Neto se inscreve no cenário como uma joia brilhando quase solitária nos atuais estudos literários nacionais.

3.

Clube da luta, e a análise com que Joacy Ghizzi Neto nos brinda, toca em uma questão central dos últimos anos, que é o modo como a traição da utopia produziu massas ressentidas. Em sua hipótese de leitura, o clube, longe de ser uma saída para o trabalho alienado no capitalismo, converte-se em seu duplo.

Destaco a afirmação do autor: “[…] Em suma, não se trata de uma recuperação a posteriori pelo sistema de uma alguma verve emancipadora, pois o sucesso da Companhia de Sabão Paper Street e a ascensão de classe do personagem estão já no romance, bem como suas condições de existência e realização já estavam devidamente codificadas no imaginário da virada do século e do milênio. Clube da luta é nesse sentido uma obra-prima da publicidade de ponta, um encontro radical com a nova configuração do capital na virada do milênio, e não seu questionamento (NETO, 2024, p. 159).

No terceiro capítulo, que é especialmente instigante, Joacy Ghizzi Neto mostra as afinidades entre a representação do engajamento na obra com a contracultura e uma forma mais lúdica e artística de gerir o trabalho nos tempos atuais.

A obsolescência da contracultura delineada pelo Clube da luta, tanto do ponto de vista intradiegético como extradiegético, aponta para apropriações de narrativas anti-establishment pelo capital, que, como direcionamento geral, já era previsto por Theodor Adorno e Max Horkheimer na Dialética do esclarecimento. A análise dos frankfurtianos indicava que a indústria cultural é capaz de se apropriar de quase qualquer coisa, inclusive das produções artísticas que a ela fazem contraponto.

Mais contemporaneamente, podemos observar os desdobramentos teóricos do fenômeno no Realismo capitalista de Mark Fisher, obra que salienta os modos pelos quais movimentos contraculturais, a exemplo do grunge (representado pela figura icônica de Kurt Cobain), foram apropriados pelo establishment.

Tal não teria ocorrido apenas com o Nirvana e produções culturais da década de 1990, mas também com outras tantas obras das duas décadas seguintes. Apenas variações de um mesmo tema. Wall-e, Breaking Bad, Succession: são muitos os exemplos de narrativas anti-establishment que acabaram por fomentar o establishment. Clube da luta parece se inserir nessa onda mais longa de narrativa anti-establishment que acaba por cair em seu exato oposto.

Essa explosão de narrativas de dupla via ideológica torna clara que, como meta comum, todos ainda precisamos fazer um balanço do que a arte e a literatura são capazes de expressar após os diversos movimentos contra-hegemônicos que atravessaram o século XX, tais como as vanguardas, o modernismo, o pós-modernismo e a contracultura.

O romance Clube da luta e sua adaptação para o cinema ainda apresentam muitos elementos a serem explorados com mais atenção. Talvez estejamos apenas começando. As obras, por seu caráter eminentemente masculino, precisam ser lidas em face das mudanças nas identidades de gênero. Essa dinâmica dos homens que se identificam com Tyler Durden ainda precisa ser mais bem compreendida. Para usar uma expressão corrente hoje, mas que não se empregava no contexto de sua recepção mais imediata, Clube da luta é também um romance sobre a masculinidade tóxica.

4.

O apelo da obra sobretudo junto ao público masculino pode ser comparado ao que ocorre com Tropa de Elite, Taxi Driver e, possivelmente, alguns outros filmes de Martin Scorsese (quase todos marcados por uma subjetividade tipicamente masculina). O mesmo apelo se encontra em outras personagens da cultura pop, que, por mais toscos e caricatos que possam parecer, ainda atraem a identificação dos homens, tais como o Capitão Nascimento e Homer Simpson, cujos bordões são repetidos à exaustão com aparente acordo daqueles que os entoam.

A inclinação tanatológica de homens anti-establishment como Donald Trump, Jair Bolsonaro e, mais recentemente, Javier Milei, na Argentina, parecem ter muito que ver com essa valorização de figuras que representam uma noção tradicional de masculinidade. De acordo com várias pesquisas, também foram principalmente homens das classes sociais espoliadas que votavam em peso a favor de Donald Trump e Jair Bolsonaro.

A resistência a assumir a crise da masculinidade como potencial para sua reinvenção parece levar à identificação com caricaturas do masculino representadas pela indústria cultural e das quais Clube da luta se tornou símbolo dos mais contundentes.

Conforme nos distanciamos da Modernidade do século XX, é possível esboçar ideias para compreender os tempos que atravessamos. No clássico de Marshall Berman Tudo que é sólido desmancha no ar, afirma-se que a Modernidade é o primeiro momento em que uma época histórica pensa a si mesma com mais consciência.

Mas a Modernidade já passou por diversas fases, e por isso mesmo não pode parar de se pensar como transformação histórico-social. Dessa forma, pode-se entender a consumação da obra Clube da luta como derivada de um horizonte imaginativo que se modifica, tornando-se um caso concreto do Realismo capitalista apontado por Mark Fisher, e que hoje atrai a atenção daqueles comprometidos com a crítica anticapitalista.

Neto apresenta uma discussão densa e repleta de insights importantes sobre a vida contemporânea, seus impasses e suas saídas de incêndio. Clube da luta, e uma análise eficiente dessa obra, toca a todos nós. Chamo ainda a atenção para as interlocuções que o autor faz com alguns dos mais destacados teóricos contemporâneos, tais como Esposito, Safatle, Žižek, Blanchot, Badiou, dentre outros, retornando a questões candentes dos séculos XX e XXI.

Assim, com argumentação lúcida e estilo vivo e atraente, Joacy Ghizzi Neto nos conduz por questões como a precarização do trabalho, a expropriação e a crise ecológica em suas novas configurações na virada do milênio.

Os desdobramentos críticos e reflexivos de um romance e um filme tremendamente populares têm tudo para encontrar uma calorosa recepção. No livro escrito por Neto e que tive o privilégio de reler para a produção do prefácio, o público pode olhar a si mesmo e se perguntar o que há no romance e no filme de Clube da luta que o fascina tanto e que faz com que se sinta atraído por eles como as abelhas pelo mel.

A minha aposta é de que o trabalho de Joacy Ghizzi Neto tem tudo para atrair pessoas interessadas no Clube da luta, mas também em arte, literatura e teoria contemporâneas, bem como na conjuntura política e no que a teoria crítica, em sentido abrangente, pode ter ainda a nos oferecer.

Desejo ao leitor que se engaje nos debates abarcados pelo livro. Aqui se fala e deve se falar sobre o Clube da luta. Com esse projeto, temos uma sólida contribuição para repensarmos os sentidos da crítica literária de esquerda.

*Luciana Molina é doutora em Teoria e história literária pela Unicamp. Atualmente é leitora do Programa Leitorados Guimarães Rosa, com atuação na Universidade Carolina de Praga.

Referência


Joacy Ghizzi Neto. Norma e transgressão no romance Clube da Luta. São Paulo, Editora Dialética, 2024, 300 págs. [https://amzn.to/3HFE2B0]


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