Notas sobre o mercado editorial brasileiro

Imagem: Pixabay
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Por SERGIO COHN*

Do Plano Nacional das Artes ao abismo editorial: como a descontinuidade das políticas culturais e a falta de ousadia do atual governo perpetuam a crise do livro no Brasil

1.

Em 2015, no segundo governo de Dilma Rousseff, fui chamado para ser o coordenador de Literatura no Plano Nacional das Artes. A proposta do plano era fortalecer as linguagens artísticas, que tiveram pouco espaço nos primeiros mandatos de Gilberto Gil e Juca Ferreira na Cultura, entre 2003 e 2010, já que neles se pensava um sentido antropológico da cultura. Uma visão herdada de Lina Bo Bardi e da avant-garde da Bahia dos anos 1960, que buscava criar políticas culturais não apenas para as linguagens artísticas, mas para as diversas formas de manifestações culturais.

O que desencadeou no projeto dos Pontos de Cultura e em outras propostas inovadoras. Mas que, naquele momento, o novamente empossado ministro baiano percebia que tinha deixado desguarnecidas as políticas para as linguagens artísticas. O que se buscava, assim, com o Plano Nacional das Artes, era um equilíbrio.

Para se chegar a esse equilíbrio entre uma visão ampla da cultura e as necessidades específicas de cada linguagem artística, havia também uma promissora proposta de divisão das instituições dentro do Ministério da Cultura: o Ministério em si, com as suas diversas secretarias – Economia Criativa, Políticas Culturais, etc – mantinha a função de pensar a estrutura cultural do país; e uma fortalecida Funarte, a Fundação Nacional das Artes, receberia a função de pensar políticas específicas para as linguagens artísticas.

O escritor carioca Francisco Bosco foi convidado para ser presidente desta renovada Funarte e me chamou para trabalhar no Plano Nacional das Artes, considerada então uma iniciativa estratégica para a reformulação institucional proposta pelo ministro. Durante pouco mais de um ano, até o golpe que tiraria Dilma Rousseff da presidência, um grupo formado por artistas e pesquisadores de diversas áreas – artes visuais, teatro, dança, circo, literatura, música – se reuniu para pensar propostas específicas para suas linguagens e também propostas comuns. O trabalho foi interrompido pela crise política, mas mesmo assim conseguimos entregar documentos interessantes para o Ministério, com projetos concretos para as diversas linguagens.

Mas, desde o golpe, tudo desabou. As políticas para a cultura rarearam, o Ministério da Cultura foi sendo esvaziado até finalmente ser extinto, o Brasil entrou num período de trevas políticas e sociais. Sobreviver como artista ou agente cultural se tornou – e continua sendo – um desafio muito maior do que sempre foi no Brasil. A precariedade virou miséria.

2.

Quando, em 2023, Lula voltou para a presidência e anunciou a volta do Ministério da Cultura, com orçamento recorde e atenção central no governo, se criou uma esperança que não se concretizou. Vi amigos afundarem em depressão, já que antes todos nós tínhamos ao menos um inimigo em comum, o fascismo que estava no poder, mas agora eram nossos aliados que nos deixavam desguarnecidos com promessas que não estavam sendo cumpridas. E como criticar publicamente um governo de reconstrução, com o perigo sempre iminente da volta do fascismo ao poder?

Calar, ao mesmo tempo, não é solução: se não disputamos espaços e recursos, seremos sempre marginalizados e esquecidos. Aos poucos, comecei a ver mesmo os mais governistas dos meus amigos resmungarem contra a falta de atenção para a cultura, contra a inoperância do atual Ministério da Cultura, contra o silêncio covarde e cúmplice dos artistas.

Já tinha visto essa mesma movimentação antes, durante o primeiro governo Dilma Rousseff e sua gestão na Cultura, que desconstruiu as grandes conquistas políticas na área do governo Lula. Comecei a ficar duplamente preocupado: importante para o Lula 3.0 perceber que é preciso ter atenção para a sua base, porque, base, porque, parafraseando o dito de Leonel Brizola sobre os intelectuais, “artista não dá voto, mas tira”. E ninguém aguenta ser humilhado para sempre. E ninguém aguenta ser humilhado para sempre.

Quando o Ministério foi recriado, tive a ingênua esperança de que nós, os coordenadores do Plano Nacional das Artes, seríamos chamados para conversar e apresentar nossas pesquisas e propostas. Não somente por respeito a nosso trabalho, mas para a sociedade brasileira como um todo, já que tínhamos trabalhado recebendo dinheiro público e queríamos fazer uma devolutiva à altura para o país. Mas nada. E agora, com cerca de 30 meses de governo, começamos a ver o preço da inoperância nessa reconstrução das políticas de cultura. Para discutir isso, vou me ater à literatura, que é a minha principal área de atuação. Mas poderia expandir essa fragilidade de propostas para todas as outras linguagens artísticas.

Pois bem, atualmente se reacende o debate em torno do mercado editorial brasileiro. De um lado, uma carta aberta de diversos editores afirma de forma contundente: as editoras do país estão sobrevivendo por um fio. De outro, escritores reclamam da forma como estão sendo tratados, especialmente por editoras pequenas e independentes. Mas as soluções propostas são inócuas: os editores pedem mais celeridade, recursos e transparência para as vendas governamentais, especialmente o PNLD, que se tornou uma boia de salvação para um mercado falido; os escritores pedem que as editoras invistam recursos próprios e mais atenção aos seus livros, o que não vai acontecer se não tivermos leitores para os mesmos – e a tendência é que, se algo mudar nesse sentido, será apenas a diminuição de novos títulos colocados em catálogo.

Mas, antes de ser propositivo, gostaria de me aprofundar um pouco sobre as duas questões, bastante sérias e desafiantes. Quando comecei a editar livros, na virada do século, o PNLD era visto como algo só atingível pelas grandes editoras, um sonho distante de prosperidade. Foi só a partir do governo de Michel Temer, em 2017, que uma mudança no edital limitando o número de títulos por editora permitiu que editoras independentes conseguissem acreditar que aquela era uma forma de pagar as suas contas – empresariais e pessoais.

Mas o remédio virou veneno: muitas editoras agora focam toda a sua atenção para essa venda governamental, e o que é pior, sem ter qualquer preocupação com a qualidade dos seus produtos. Multiplicam-se títulos que se adequam ao edital, mas que são feitos de forma ágil e muitas vezes irresponsável. Num país com grandes falhas educacionais, como o Brasil, é trágico que programas de formação de leitores sejam tratados dessa forma.

Para piorar, no atual governo se criaram regras restritivas e sem sentido, como a obrigação de apresentar na inscrição no edital o livro digital em HTML5, algo caro e que não tem outra funcionalidade para as editoras – o que, como foi dito pelos editores, seria o mesmo que obrigar uma construtora a comprar previamente o cimento para poder entrar numa licitação de obra.

O próprio governo não sabe como lidar com essas regras impostas de forma arbitrária, tanto que vi projetos com estruturas semelhantes de livros digitais serem aprovados ou recusados sem critérios claros. Como se diz em boca miúda entre os editores, se houvesse uma gestão séria no FNDE do Ministério da Educação, os editais do PNLD deveriam ser cancelados e refeitos. Mas quem quer afundar o que parece ser a última tábua de salvação? Melhor deixar alguns afogados pelo caminho e seguir em frente. Ou não.

Mas a questão é ainda mais complexa: outro dia encontrei um amigo, grande poeta e tradutor. Ele trabalha há décadas como principal tradutor de uma grande editora e apresentou um livro infantil para ela. O livro é delicioso, aliás. Mas foi recusado. O argumento: o livro não se adequava à venda governamental no PNLD, por não estar dentro dos padrões “didáticos” que se impõem àquelas obras. Pois bem, duas coisas se sobressaem aqui: de um lado, que padrões são esses? A função da literatura infantil é apenas educar ou também criar o gosto pela leitura, fomentar novos leitores, muitas vezes de forma lúdica?

É sabido que os padrões impostos pelo PNLD estão diminuindo a criatividade, a variedade e muitas vezes a qualidade da literatura infantil brasileira, mas de novo autores, ilustradores e editores preferem se silenciar para não perder a “boquinha” que pode prover seus sustentos. Por outro lado, é preocupante que todo um mercado seja voltado para apenas uma dimensão, que é a venda governamental. Mesmo uma editora grande sabe que dificilmente um livro pagará seus investimentos apenas com vendas em livrarias, já que o número de leitores brasileiros está caindo ano após ano. Mas ao não se pensar em fomentar novos leitores, não estaremos apenas afunilando cada vez mais as nossas possibilidades e aumentando os nossos desafios?

O PNLD é voltado para o ensino público, que no Brasil atinge majoritariamente apenas as classes mais baixas da população – aquelas mesmas que não possuem recursos para comprar livros, já que vivem na subsistência. Seria importante que se fortalecesse o ensino público para ser novamente de qualidade, como já foi, e que atraia alunos de diversas classes sociais. Mas isso é trabalho de longo prazo.

Em curto prazo, se não se pensa livros para livrarias, se quase não existem mais livrarias, como fomentar a leitura entre as outras classes sociais não contempladas pelo PNLD? O livro no Brasil é caro, exatamente por conta da carência de leitores e livrarias. Quanto menor a tiragem, maior o preço por exemplar, por conta do aumento de custo de impressão. No Brasil, uma brochura com 200 páginas custa atualmente cerca de 5 ou 6% do salário mínimo.

Para comparação, nos EUA ou na Europa, um livro semelhante custa cerca de 1%, no máximo 2% (em Portugal) do salário mínimo. Faz diferença. Com custo tão alto, infelizmente não é possível para ampla parcela da população brasileira ser consumidora de livros, mesmo que se desperte o interesse pela leitura.

3.

Pois bem, sobre a outra questão, a do conflito entre escritores e editores independentes, é preciso ver que ambas as partes estão certas – e erradas. Costumo dizer que atualmente aumentou muito a diferença entre editar um livro e publicar um livro. Publicar um livro é trazê-lo a público, criar mecanismos, em diversas dimensões, para que o livro seja conhecido e acessado pelo leitor. Não é apenas diagramar e imprimir um livro, editá-lo, mas qualificá-lo e se criar planos de mídias, formas de distribuição, etc.

As editoras independentes cada vez menos conseguem fazer isso, por falta de recursos e pelos desafios estruturais, como falta de mídia especializada e de pontos de vendas. Em consequência, só se torna possível editar novos títulos com ajuda financeira do autor, seja por investimento próprio, seja por pré-venda em plataformas colaborativas, seja por venda de exemplares para o autor depois do livro pronto.

Em consequência, essas editoras acabam prestando serviços, mais do que estabelecendo um trabalho curatorial. Como esses serviços se tornam cada vez mais baratos – e, portanto, precarizados – resta para as editoras fazerem muitos livros ao mês, para que consigam pagar as suas contas – ou nem isso, já que a maior parte é deficitária. Bom, quanto mais livros, mais difícil de trabalhar com eles para torná-los visíveis – públicos. Sobra menos tempo de trabalho, aumenta a competição pelos parcos espaços.

Só que o serviço precarizado acaba pesando também sobre os autores, que possuem expectativas sobre os seus próprios livros que não serão cumpridas. Em cada 100 livros lançados, acredito que nem mesmo 5% chegam a ter uma circulação mínima, para além da rede pessoal do autor. Por isso, é compreensível que os autores se levantem contra as editoras, sentindo que há um descuido delas em relação aos seus livros tão queridos.

Agora, o que fazer a respeito? Se a editora quiser investir recurso próprio no livro, terá que pagar a gráfica para impressão, por exemplo, em no máximo três meses. Mas só conseguirá colocar o livro em poucas livrarias, estas pegarão poucos exemplares, o desconto será de 50% e o pagamento em 90 dias. A conta não fecha.

Então, do jeito que as coisas andam, ou a editora presta serviço ou não editará esses livros. Eles seguirão nas gavetas, como foi por tanto tempo. E posso dizer: não é o desejo de nenhum editor apenas prestar serviços. Todos sonham com seus títulos de predileção para colocar no mundo e é sempre doloroso para um editor lançar um livro que ele sabe não estar pronto ou não ter ainda a qualidade que ele gostaria. No fim, ninguém está satisfeito com essa situação.

Eu lancei o meu primeiro livro muito jovem, aos 25 anos. Antes disso, já havia procurado uma outra editora – a qual sempre tive respeito – com um original bastante imaturo. Era um sonho editar meu livro por ela. O editor nem sequer leu o livro, disse que gostava do meu trabalho na revista Azougue, que gostava de mim e que publicaria o livro, mediante o pagamento da impressão e dos serviços. Felizmente, o valor era demasiado caro para mim na época e não consegui fazê-lo. O livro ainda estava em construção, e atualmente eu certamente o renegaria – como tantos poetas fazem com os seus livros de estreia.

Quando fiz finalmente o livro, cerca de dois anos depois, tive um editor mais atento. Leu os originais, fez sugestões. Mas paguei caro pela edição e senti o meu trabalho pouco prestigiado mesmo assim: não saíram resenhas, mesmo tendo pago assessor de imprensa, e o livro circulou pouco. Fiquei indignado. Quando, no ano seguinte, abri a minha editora, prometi que não prestaria serviços, investindo nos próprios livros, e vi o quanto era difícil.

De qualquer forma, segui buscando investir nos livros que publico até hoje – eventualmente, fiz livros pagos pelos autores, mas sempre com um travo amargo na garganta. Escrevi sobre essa experiência dupla como escritor e editor num texto que tem um título que até hoje é válido: “Os dois lados da moeda sem a moeda”.

4.

Pois bem, aqui chegamos ao ponto. As crises perduram, muitas vezes se ampliam, e pouco se busca soluções, apenas paliativos. A impressão digital, de baixa tiragem ou sobre demanda, permite o aumento de novos lançamentos, mas numa estrutura de cauda longa: pouquíssima venda. Os livros não chegam ao seu final, que é o leitor. E pouco satisfazem o seu princípio, que é o escritor.

No meio do caminho, editores lutando para existir, sem conseguir trabalhar de forma consistente nos seus catálogos. Seja na escolha dos títulos, seja na divulgação e distribuição. O circuito editorial brasileiro virou uma ciranda drummondiana ao avesso: o autor odeia o editor que odeia o livreiro que odeia o leitor que não existe.

Hoje, se olharmos com calma para o mercado, veremos majoritariamente três tipos de editoras independentes, para além dos grandes conglomerados: as que possuem investimento externo, especialmente de herdeiros, funcionando como um hobby ou um tipo de beneficência cultural; as que vivem de incentivos públicos – seja vendas governamentais, seja agências de fomento; e as que vivem de prestar serviços para escritores ansiosos de ver seus livros impressos. Nenhuma delas tem como fim ou como princípio o leitor. Este é quase um feliz acidente, quando ocorre.

Mas será que não existem soluções possíveis? Pois bem, voltamos agora ao Plano Nacional das Artes. Quando fiz meu relatório final, quase dez anos atrás, coloquei entre as propostas de políticas para o livro e a literatura uma que considero até hoje interessante, e que gostaria rapidamente de expor aqui: um edital que contemplasse as diversas dimensões do circuito editorial: escritores, trabalhadores, editores, livrarias.

Estas, aliás, seriam o ponto principal do edital, já que sem elas nunca teremos uma forma consistente de distribuição e acesso ao livro pelas diversas regiões do país. Assim, o objeto do edital é o fortalecimento ou a criação de livrarias de rua, independentes (ou seja, sem pertencer a nenhuma rede de livrarias ou conglomerado empresarial) e preferencialmente em regiões que não possuem esse tipo de equipamento cultural.

É importante ressaltar esse ponto: os projetos contemplados serão de livrarias que atuem não apenas como um espaço comercial, mas também um equipamento cultural, realizando eventos, oficinas, encontros com autores, etc. No Brasil, hoje, existem diversas cidades que possuem campus universitário, mas não tem nem sequer uma livraria qualificada, o que demonstra a fragilidade de nossa educação e da constituição de público leitor.

Assim, a proposta do edital é contemplar 100 livrarias, sejam elas já pré-existentes ou novas, que receberão um aporte de 25 mil reais mensais por um ano. Esse aporte seria realizado de três formas:

(i) 10 mil reais ao mês como incentivo, em forma de bolsa, para a estrutura básica da livraria: aluguel, equipamento, água, luz, funcionários. (ii) 9 mil reais ao mês em exemplares de livros, que serão adquiridos de editoras parceiras (ponto a seguir). (iii) 6 mil reais ao mês para eventos, para pagar cachês, transportes e diárias de escritores convidados. As livrarias se comprometeriam a realizar ao menos um evento semanal com esses autores selecionados.

Os livros que seriam enviados para as livrarias são adquiridos de 50 editoras, também contempladas por edital através de uma proposta de catálogo anual. Cada editora terá 200 exemplares de três títulos comprados por mês, totalizando 36 títulos anuais com valor médio de 30 reais por exemplar. Assim, cada editora contemplada receberá cerca de 18 mil reais por mês. Esse valor ajuda não apenas a pagar os custos básicos da empresa, mas podem ser usados para criar estoque, mediante a impressão de mais exemplares dos seus livros. Os livros enviados para as livrarias para serem comercializados ajudam elas a ter um estoque mensal de base e complementar a sua renda.

As editoras contempladas seriam selecionadas segundo os seguintes critérios: serem independentes (ou seja, não fazerem parte de conglomerados de editoras), de pequeno ou médio porte (ou seja, tendo um fluxo financeiro anual dentro de uma ordem de grandeza) e apresentarem uma proposta de catálogo com 36 títulos de autores nacionais contemporâneos dos diversos gêneros, não apenas literários. Poderão ser contemplados também livros de ensaios, por exemplo.

Os livros não precisam ser necessariamente inéditos, podendo já figurar no catálogo da editora previamente, mas precisarão atender a critérios de qualidade editorial e gráfica – papel de miolo e capa, formato, etc. O seu valor de aquisição será referente ao seu formato e número de páginas.

Por fim, os autores que circularão pelas livrarias serão contemplados a partir dos títulos selecionados das editoras, para haver uma relação entre os eventos – palestras, debates, oficinas – e os livros lançados. Nisso, não é preciso edital, mas apenas uma negociação entre as partes – autores, editoras e livrarias. Um benefício extra da circulação de autor é que a editora pode enviar mais exemplares para serem comercializados durante os eventos, aumentando assim a tiragem e o acesso a leitores.

Lembrando-se aqui que se as editoras se unirem podem conseguir preços de impressão mais baixos com as gráficas, pelo aumento de exemplares e pela regularidade de produção. O estabelecimento de uma rede entre as editoras e as livrarias contempladas é importante e precisa ser estimulada, seja para o intercâmbio de experiências, seja para a constituição de estratégias comuns que fortaleçam a iniciativa.

Outra possibilidade de aquisição de exemplares e títulos qualificados para as livrarias é através de parceria com as agências de fomento de pesquisa científica, que financiam muitas edições de livros que pouco circulam após publicadas, exatamente pela dificuldade de chegar a pontos de venda e se tornarem visíveis aos possíveis leitores. Pode-se incluir dentro dos livros contemplados pelos editais destas agências a contrapartida de envio de exemplares para as livrarias parceiras do edital.

Assim, com um investimento base de 30 milhões de reais – um investimento muito baixo, em nível ministerial ou estatal, e que pode ser dividido nas diversas esferas, federal, estadual e municipal (uma possibilidade colocada na proposta original é que as cidades ou estados onde se localizam as livrarias contempladas possam realizar uma contrapartida financeira) – é possível conseguir altos números: (a) 100 livrarias contempladas; (b) 50 editoras contempladas; (c) 1.800 títulos de autores contemporâneos publicados por ano; (d) 360 mil exemplares de livros impressos por ano; (e) 4.800 eventos presenciais.

Além disso, o edital permitiria o aumento da capilaridade dos espaços culturais voltados para o livro e a literatura, o fomento à leitura e o pagamento de salários e serviços de profissionais nas diversas instâncias em torno do mercado editorial. Para além dos contemplados diretamente – livreiros, editores e autores – o edital beneficiaria tradutores, revisores, designers gráficos, administradores, entre outros.

Para se ter uma ideia da virada política que uma proposta como essa seria para o mercado editorial, vale lembrar que em 2013 o BNDES aprovou um empréstimo de 28 milhões de reais para a Livraria Cultura. Esse recurso não chegou na ponta, já que a rede de livrarias possuía poucas lojas – 15 no seu auge – e consignava poucos exemplares das editoras independentes. Ou seja, houve poucos beneficiados pelo uso de um alto recurso público.

Na presente proposta, é o contrário: o benefício atingiria os diversos agentes do circuito editorial, com benefícios para além dos contemplados no edital: outras editoras e autores conquistaram mais espaços de comercialização de seus livros, por exemplo, através do fomento de livrarias pelo país.

Por fim, um último adendo, não contemplado na proposta original mas que me parece de grande importância: há uma carência de espaço de reflexão crítica sobre a produção literária e bibliográfica contemporânea no Brasil. Seria importante a inclusão, no edital, de um valor para elaboração de resenhas e ensaios sobre os livros publicados, com publicação em portal digital.

Assim, se incorpora a pesquisa acadêmica no projeto, além de estimular um diálogo mais amplo e qualificado com as obras publicadas. O portal digital é de grande importância para trazer um mapeamento dos livros e das livrarias contempladas, apresentando para a sociedade a amplitude da proposta.

Se o presente texto é duro em suas críticas, é por acreditar que é somente na relação franca entre sociedade e Estado que se pode qualificar as políticas públicas. É importante uma permeabilidade e um diálogo, o que foi uma marca dos dois governos anteriores de Lula e está ainda faltando na presente gestão.

Trago a proposta a público como começo – a rigor, retomada – de debate e por acreditar que existem, sim, formas de suplantar os grandes desafios culturais do nosso tempo. Mas isso exige diálogo, criatividade e uma ação conjunta entre os diversos agentes, sejam governamentais ou civis.

*Sergio Cohn é poeta e editor. Atualmente, é curador das revistas Poesia Sempre (Fundação Biblioteca Nacional) e BRICS Poetry Review.


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