O acordo Mercosul/ União Europeia

Imagem: Agência Brasil/ Foto de Ricardo Stuckert / PR.
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Por MARCOS AURÉLIO DA SILVA*

O acordo sofre forte rejeição da parte das classes trabalhadoras, intelectuais de esquerda e a oposição nacionalista ao neoliberalismo nos países do Cone Sul

O acordo Mercosul/União Europeia, cujas negociações iniciaram em 1999 mas cujas conclusões foram anunciadas apenas em 6 de dezembro de 2024 em Montevidéu, em uma reunião líderes do Mercosul e da União Europeia, está sofrendo forte rejeição da parte das classes trabalhadoras, intelectuais de esquerda e a oposição nacionalista ao neoliberalismo nos países do Cone Sul.

A Cordinadora de Centrales Sindicales del Cone Sur (CCSCS), em uma conferência à imprensa de 11 de dezembro de 2024, anunciou sua rejeição ao acordo não só porque ele deixou de lado os trabalhadores nas discussões em todos estes anos, mas também porque trata-se de um acordo que tem mais o caráter de um tratado de livre comércio do que de integração dos povos.

De sua parte, na Argentina, o peronismo, oposição ao governo Javier Milei e com maioria na Câmara e no Senado, e historicamente defensor, na linha do populismo latino-americano, das políticas de proteção industrial e de um bloco entre trabalhadores e classes dominantes de perfil nacionalista, fez duras críticas à cláusula “antiperonista” negociada pelo governo brasileiro, segundo a qual, aceitas as condições do acordo na União Europeia, se um dos países do bloco sul-americano o aceitar, o acordo já pode entrar em vigor naquele país, sem necessidade ratificação dos demais.

No Brasil, o Partido dos Trabalhadores está dividido, com os setores hegemônicos defendendo o acordo e a esquerda enviando a ele fortes críticas.

O economista Paulo Nogueira Batista Jr., diretor-executivo do FMI pelo Brasil e outros dez países entre 2007 e 2015, e vice-presidente do Novo Banco dos BRICS entre 2015 e 2017, tem sido um dos principais críticos do acordo entre os intelectuais brasileiros. Vale a pena resumir ao leitor os pontos centrais de sua crítica, exposta em revistas e portais de notícias da imprensa alternativa brasileira.

Estamos diante de um autor com posições patrióticas, não há dúvida, mas nem por isso entregue à onda antimundialista que agora domina a política hodierna, atingindo mesmo setores da esquerda. Para Batista Jr., o acordo deve ser rejeitado porque sua essência é fundamentalmente neoliberal, mas de modo algum isto equivale a um rompimento com a União Europeia e até a um distanciamento entre ela e o Mercosul, que podem continuar a ter laços “fortes” e até mais “aprofundados”.[1]

Para o intelectual brasileiro a essência neoliberal do acordo se manifesta de diversas maneiras.[2] Por um lado, o acordo estabelece grandes perdas para o setor industrial do Mercosul, cuja maioria das empresas continuará submetida à uma proteção com duração de 15 anos, período a partir do qual serão expostas à concorrência desimpedida com as indústrias europeias, cujos sistemas de inovação – ou a competitividade estrutural de que falava François Chesnais[3] − são muito superiores aqueles em vigor no Mercosul, como nos lembram a superioridade tecnológica, a maior escala de produção e o acesso ao crédito em condições mais vantajosas.

E mesmo as reduções de danos obtidas pelos negociadores brasileiros de última hora são pouco animadoras, como no adiamento da redução quase a zero do imposto sobre importação de carros eletrificados, que deverá esperar 18 anos, e dos veículos a hidrogênio e de novas tecnologias, cuja desgravação tarifária passa de 25 para 30 anos.

No que diz respeito aos ganhos, poucos ou mesmo nenhum ganho estão ao alcance do setor industrial do Mercosul, já que as tarifas europeias sobre as importações industriais são baixíssimas, dadas as tarifas praticadas na Organização Mundial do Comércio (OMC) e dos regimes de preferência, parte importante dos sistemas de inovação europeus.

Para piorar, o mecanismo das compras governamentais, histórico instrumento das políticas de desenvolvimento e industrialização nos países de capitalismo retardatário, atualmente sem qualquer restrição de uso no Brasil, fica limitado às compras do setor de saúde, da agricultura familiar e das pequenas empresas. Ainda assim, trata-se de uma concessão insuficiente, como permite concluir a oposição do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

As exportações de commodities, amplamente dominantes na pauta de exportações do Cone Sul, sequer podem ser consideradas grandes ganhadoras. As cotas de exportação oferecidas para alguns produtos da agropecuária, como carne bovina, açúcar e arroz, são pequenas e insuficientes, ou então inócuas, dizendo respeito a produtos nos quais a capacidade de concorrência europeia dificilmente abriria espaço à produção do Mercosul, como a carne. Cotas estas mantidas pela União Europeia como forma de responder a oposição de agricultores da França, Polônia, Bélgica e Irlanda, aos quais se juntou, mais recentemente, o movimento Slow Food italiano. É o “protecionismo verde”, insiste Batista Jr.

Ainda no que diz respeito às commodities, a permissão para que o governo brasileiro imponha impostos de exportação até um limite de 25% em uma pequena lista de minerais críticos, aqueles essenciais para a economia digital e energia, representou um grande retrocesso, já que atualmente o governo não conhece exceções para tributar produtos desta natureza.

Por fim, é pouco crível que os Investimentos Externos Diretos (IEDs) sejam estimulados com o acordo, pois a redução geral das tarifas torna mais atrativo abastecer o mercado do Cone Sul a partir das matrizes europeias. De fato, se lembramos das pesquisas conduzidas por François Chesnais,[4] é fácil concluir que a forma assumida pela valorização do capital desde os anos 1980, encarnada pelas chamadas multinacionais novo estilo, torna de certo modo ocioso falar em IEDs. De fato, hoje a internacionalização das multinacionais está muito mais baseada nos “ativos intangíveis da companhia”, que assim alicerça a sua competitividade “na definição de um Know How e na P&D”, dando lugar a diferentes formas de empresas-redes que não requerem necessariamente IEDs.

A crítica de Batista Jr. não se limita, porém, à análise dos possíveis resultados econômicos do acordo. Ela se volta também para as questões políticas que o envolvem. É quando sua reflexão alcança com mais profundidade as determinações das estruturas de classe que estão por trás das decisões políticas, mas também é onde se encontram seus principais limites. Trata-se de uma análise em dois planos espaciais, dois blocos históricos, para lembrarmos uma elucidativa categoria de Antonio Gramsci.

As referências ao empenho europeu para a assinatura de um acordo cujos fundamentos, basicamente inspirados na ALCA, têm um caráter neoliberal, são lidos como expressão do “neocolonialismo” e do “imperialismo” da União Europeia, uma tese que claramente peca pelo excesso de economicismo. Não há dúvida que os mecanismos de troca desigual inerentes a acordos desta natureza fazem parte da dinâmica imperialista, como já o sabia Vladímir Lênin. Mas é o mesmo Lênin que evita reduzir o imperialismo à uma definição apenas econômica, notando que o imperialismo tem uma dimensão também política e militar, implicando necessariamente “a posse monopolizada de territórios de um globo inteiramente partilhado”.[5]

De fato, se recordamos os estudos de Domenico Losurdo,[6] trata-se daquele erro de avaliação que, remetendo tudo ao PIB e às estatísticas, termina por perder de vista uma dimensão mais totalizante do problema, a rigor deixando de lado “a história, a política, a ideologia”, e isto com consequências práticas um tanto desconcertantes. Afinal, reduzida às condições de troca desigual inerentes às relações econômicas desequilibradas, um país como o Brasil, simplesmente pelo peso econômico que tem no espaço latino-americano, poderia ser considerado imperialista.

Além disso, e retendo o sentido histórico acima referido, a estrutura do imperialismo está hoje essencialmente alterada, não correspondendo mais exatamente àquela de que falou Vladímir Lênin no início do século XX, pois as relações de forças “estão desbalanceadas em favor dos Estados Unidos” tanto no plano “militar” quanto no “plano ideológico”, e talvez ainda mais neste do que no primeiro, motivo pelo qual, lembra Domenico Losurdo, importantes setores da esquerda latino-americana, como os comunistas cubanos (e mesmo as antigas Farcs), rejeitem pôr no mesmo plano EUA e União Europeia.[7]

Certamente, falar em mudança na estrutura do imperialismo não significa dizer que a Europa não possa seguir uma política imperialista e até sustentar ideologias neocolonialistas. O cunho de uma frase recente de Josep Borrell, representante da União Europeia para negócios estrangeiros, segundo a qual “a Europa é um ‘jardim’ e o resto do mundo ‘majoritariamente uma selva’”,[8] é claramente neocolonialista e até racista. De qualquer modo, resta o fato de que as campanhas bélicas em que a Europa se envolve hoje são basicamente campanhas sob coordenação da OTAN e assim a soldo do “imperialismo planetário” norte-americano, como aliás demonstra a atual guerra da Ucrânia.

Uma outra dimensão da leitura excessivamente economicista do cenário internacional se traduz na avaliação um tanto otimista de que, nos últimos tempos, “o neoliberalismo foi abandonado” em “quase toda parte, inclusive nos Estados Unidos e na Europa”.[9] Se observamos bem, o arco de políticas protecionistas lançadas por diferentes governos do bloco euro-atlântico a que se está fazendo referência, e cujo ponto culminante foram as eleições de Donald Trump, mais do que uma superação do neoliberalismo, parecem remeter a uma advertência feita por Fredric Jameson acerca da ideologia política do capitalismo avançado – ou o que ele preferiu chamar de pós-moderno.

Para o marxista norte-americano, aquilo que desde a crise dos anos 1970 se chama de “populismo” – e que nada tem a ver com o clássico populismo latino-americano −, não passa de um “reajuste semântico” a um referente há muito “desaparecido”, a saber, “a coalização em uma Frente Popular dos trabalhadores, dos camponeses e dos pequenos burgueses”.[10] Não há dúvida, na ausência deste referente, é pouco crível que as políticas antissociais do neoliberalismo possam desparecer, mesmo que políticas de defesa do aparelho produtivo reapareçam aqui e acolá.

Quando a discussão alcança o que chamamos o bloco histórico do Cone Sul, a crítica de Batista Jr. torna-se bastante incisiva. Ela se volta para as determinações internas de classe que explicam a adesão entusiasmada a um acordo a toda prova desfavorável. Em especial, os limites das classes dominantes brasileiras são amplamente expostos. Entidades voltadas à defesa dos interesses industriais, como a CNI (Confederação Nacional da Indústria) e a poderosa Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), após “décadas de desindustrialização” são “industriais e apenas no nome”, a rigor abrigando lideranças que em sua maioria “não são empresários da indústria”, mas apenas burocratas, ou então representantes de “importadores e montadores”, interessados na “remoção de barreiras” comerciais.[11]

Ao lado deste grupo, embebidos da mesma ideologia liberalizante, estão os técnicos do Ministério do Desenvolvimento e da Indústria e diplomatas de carreira. Para voltarmos a Antonio Gramsci, a estrutura material e a superestrutura, a economia e o espírito do bloco histórico, organicamente entrelaçados.

Mas aqui há algo que a análise de Paulo Batista Jr. não diz, ou pelo menos deixa nas entrelinhas, limitando a força de sua crítica. E talvez por isto a devastadora denúncia da adesão aos princípios neoliberais da equipe negociadora e dos entusiastas do acordo fora do governo apareça ao lado de conclusões que falam de “erro” ou então de um “equívoco fundamental”.[12] Segundo nos parece, no momento mesmo em que a análise das determinações estruturais de classe, ou correlação de forças − para usarmos uma expressão que remete mais diretamente às lutas de hegemonia −, deveria extrair sua conclusão fundamental, ela se interrompe.

A rigor, a decisão do governo brasileiro de concluir um acordo desta natureza, cujos passos decisivos foram dados pelos governos neoliberais do argentino de Maurício Macri e do brasileiro Jair Bolsonaro, se explica pelo fato de que a vitória contra a extrema direita bolsonarista nas eleições de 2022 ocorreu por meio de uma frente política cujo alcance extremamente amplo comportou no seu interior setores com posições historicamente neoliberais. Basta pensar no nome do vice-presidente de Lula, Geraldo Alckmin, que é também o seu Ministro do Desenvolvimento e da Indústria, recém filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) mas integrante por mais de três décadas do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que esteve à frente da sustentação do neoliberalismo no Brasil antes dos governos do PT e até se engajou nas marchas para a derrubada de Dilma Rousseff.

Em poucas palavras, estamos diante da composição com uma liderança intelectual de destaque do bloco agrário do chamado “agronegócio brasileiro”, e do qual fazem parte também os importadores e montadores de que fala Batista Jr. Um bloco histórico de perfil político reacionário e cujo alcance espacial não se limita ao estado de São Paulo (onde Geraldo Alckmin foi governador por mais de uma década), alcançando também todo o Sul e o Centro-Oeste do Brasil, além dos interesses que sustenta nos países do Mercosul, para onde deslocou espacialmente seus investimentos nos últimos decênios.

Não obstante, quem conhece um pouco a história das lutas contra o fascismo no início do século XX sabe que este não é o único caminho a disposição das forças democráticas. Basta lembrar da composição político-social pensada por Antonio Gramsci em A Questão Meridional, a rigor posta em prática na luta partigiana quelançou as bases da derrota de Mussolini na Itália da II Guerra, mas até mesmo aquela pensada sob orientação de Vladímir Lênin por Karl Radek para as lutas na Alemanha ocupada pelo Tratado de Versalhes após a I Guerra.[13]

Certamente a história não anda em círculos e muitas das condições atuais da esquerda do Cone Sul e em especial da esquerda brasileira não podem ser diretamente associadas aquelas da Europa da primeira metade do século XX. Ainda assim, é preciso não esquecer que o Brasil, e a despeito das divisões existentes no Partido de Lula – ou talvez em razão mesmo destas divisões −, é dos poucos países do mundo a contar com um partido de massas como é o Partido dos Trabalhadores, e assim em condições de reorganizar uma forma determinada daquelas Frentes Populares que Fredric Jameson afirmou terem sido substituídas pelas formas “mascaradas” do neopopulismo na atual etapa do capitalismo avançado.

Como é próprio da história, não estaríamos diante de uma via destituída de contradições, mas seguramente seria ela uma forma bem menos tortuosa e ameaçadora de superação da extrema direita, do neoliberalismo, e até de construção de uma alternativa hodierna ao capitalismo.

*Marcos Aurélio da Silva é professor titular do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Publicado originalmente no magazine italiano Fuori Collana.

Notas


[1] Batista Jr, P. N. “O Brasil não cabe no quintal da Europa”. Disponível aqui.

[2] Resumimos aqui a leitura de Batista Jr. nos artigos “O acordo econômico Mercosul/União Europeia”, e “O acordo Mercosul/União Europeia – um post mortem”.

[3] Chesnais, F. A mundialização do capital. Trad. Silvana F. Foa. São Paulo: Xamã, 1996, p. 118-119.

[4] Id. Ib., pp. 76-78.

[5]Lenin, V. I.  Imperialismo, fase superior do capitalismo. 4 ed. São Paulo: Global, 1987, pp. 87-88.

[6] Losurdo, D. Imperialismo e questione europea. La Scuola di Pitagora, Napoli, 2019, p. 102.

[7] Id. Ib., pp, 85-86 e 116.

[8] Batista Jr, P. N. O Brasil não cabe no quintal da Europa. Veja aqui.

[9]  Batista Jr., P. N. “O acordo Mercosul/União Europeia – um post mortem”.

[10] Jameson, F. Posmodernismo. La lógica cultural del capitalismo avanzado. Trad. Martín Glikson, 2012.

[11] Batista Jr, P. N. Batista Jr., P. N. “O acordo Mercosul/União Europeia – um post mortem”.

[12] Id. Ib.

[13] A respeito da linha política seguida por Karl Radek na Alemanha dos anos 1920, mas também, com menor importância, daquela de Clara Zetkin, pode-se ler o interessante estudo de Azzarà, G. S. Comunisti, fascisti e questione nazionale. Germania 1923: fronte rossobruno o guerra d’egemoni? Mimesis, Milano-Udine, 2018.


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