Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*
Enquanto docentes são reduzidos a ‘ativos reputacionais’, o sindicato debate pautas do século XX. A crise não é financeira — é a falência de um projeto de educação pública que não enxerga sua própria captura pelo mercado
No início de maio por ocasião das eleições para diretoria do ANDES-SN, escrevi um texto, postado no site A Terra é Redonda, que ingenuamente considerei que poderia contribuir. O texto apresentava as quatro chapas e relatava e os esperneios judiciais acima da política de um sindicalismo que não tem uma teoria política sindical. Muitos foram os incautos que leram a primeira parte e mostraram equívocos nas propostas e havia.
Porém, para minha tristeza ninguém comentou as duas outras partes sobre a universidade pública brasileira e o ANDES-SN já estarem sob o domínio do capital fictício. Deixo de acreditar no movimento docente. Não sabem que universidade temos, como poderão os neófitos e dinossauros construírem uma proposta para a universidade pública?
Vai algumas pistas da universidade pública e do ANDES-SN sob o domínio do capital fictício, que ninguém enxergou
As eleições de maio de 2025 para a diretoria do ANDES-SN foram marcadas por forte fragmentação política, baixa participação da base e pela ausência de uma proposta de ruptura com a financeirização da universidade pública brasileira. Quatro chapas foram homologadas, expressando diferentes correntes e visões internas, mas nenhuma delas apresentou uma crítica estrutural ao modelo de universidade sob o domínio do capital fictício.
O processo eleitoral expôs um sindicato atravessado por disputas internas, mas incapaz de formular uma estratégia coletiva frente à crise profunda da educação superior. O debate permaneceu preso ao horizonte do assembleísmo tradicional, ignorando as transformações materiais do trabalho docente e a captura institucional do próprio sindicato.
A universidade pública brasileira não é mais aquilo que parte do movimento docente acredita estar defendendo. Ela foi atravessada, capturada e reconfigurada sob a lógica do capital fictício — forma social de valorização sem substância produtiva, alimentada pela financeirização do fundo público, pela competição reputacional e pela transformação do conhecimento em ativo intangível. Não se trata de uma abstração teórica.
Trata-se de um processo concreto: o orçamento das universidades federais passou a ser gerido por mecanismos de limitação fiscal que subordinam as finalidades acadêmicas às exigências do “resultado primário”. A Lei do Teto de Gastos (EC 95/2016), o novo arcabouço fiscal (LC 200/2023) e a sistemática dos contratos de gestão transformaram reitores em gestores de metas e indicadores, universidades em vitrines de rankings, e a pesquisa em moeda reputacional indexada ao fator de impacto. A produção científica, cada vez mais, não se orienta por sua relevância pública, mas por sua capacidade de se transformar em pontuação avaliativa no Qualis, no Sucupira, nas métricas do Scopus, nos relatórios de “produtividade” do CNPq.
Essa lógica não é neutra. Ela reordena a estrutura universitária por dentro, fragmentando áreas do saber, hierarquizando epistemologias e estrangulando financeiramente as ciências humanas, sociais e artes. Laboratórios viram plataformas de captação de recurso externo, professores tornam-se empreendedores de si mesmos, estudantes são pressionados a performar excelência num ambiente cada vez mais hostil, inseguro e competitivo.
A carreira docente já não garante estabilidade existencial; a lógica de contratos temporários, avaliações periódicas e estímulo à superprodução intelectual molda subjetividades disciplinadas e adoecidas. Mais do que isso: a própria missão da universidade é subvertida. A crítica estrutural é substituída pela “inovação social”, o pensamento pela “resolução de problemas”, o engajamento pelo “alinhamento estratégico”.
Sob o domínio do capital fictício, o saber torna-se veículo de valorização simbólica — algo que precisa gerar cotação. A CAPES já não é apenas uma agência de fomento, mas um sistema de mensuração; o MEC se converte em gestor de contratos e metas; os PDI das universidades operam como planos empresariais. A docência é reduzida a atividade indexada ao Lattes.
Nesse contexto, o que se torna “excelente” não é o conhecimento que emancipa, mas o que rende prestígio, atrai investimentos, sobe no ranking, cria spin-offs, firma convênios, vira patente. A pesquisa crítica, a extensão contra-hegemônica, a reflexão histórica, a arte insurgente? Todas sob risco de obsolescência institucional.
A captura não é total, mas é estrutural. Ela compromete o horizonte do público, não apenas seu financiamento. O capital fictício transforma a universidade em ativo reputacional e a ciência em instrumento de geração de valor simbólico-mercantil. Essa inversão não é percebida por grande parte das chapas que disputam o ANDES-SN porque elas próprias ainda operam na ilusão de que a universidade possa ser redimida apenas por meio de mais democracia interna, assembleias, plenárias, ou por uma disputa de projeto pedagógico abstrato.
Mas não haverá projeto pedagógico possível enquanto a universidade for instrumento de valorização especulativa, mediada por rankings e métricas globais. O que está em jogo não é a forma de gestão da universidade, mas sua função no interior de um capitalismo financeirizado e dependente.
O ANDES-SN sob o domínio do capital fictício
Se a universidade pública brasileira foi capturada, o mesmo ocorre — por caminhos distintos — com seu sindicato nacional. O ANDES-SN não escapou à lógica da financeirização. A captura aqui opera por outros meios: pelo esvaziamento de base, pela substituição da luta coletiva por lógicas de certificação política, pela transformação das pautas em rituais simbólicos, e pela incorporação do sindicalismo docente à racionalidade reputacional.
As chapas que disputam sua direção não refletem mais sobre o tipo de trabalho docente que existe hoje, sobre a universidade financeirizada que habitamos, sobre a alienação crescente do ofício intelectual. Permanecem presas a categorias que perderam densidade histórica, como “carreira única”, “democracia universitária” e “autonomia plena”, sem perceber que o terreno da luta mudou completamente.
Não se trata de deslegitimar a luta sindical. Ao contrário: trata-se de recusar seu esvaziamento. O que vemos é um sindicato transformado em máquina de reprodução de visibilidade entre correntes político-partidárias, onde os debates reais sobre a função da universidade pública são substituídos por slogans e panfletos. A pauta sindical tornou-se administrável — luta-se por reajuste de benefícios, recomposição orçamentária, espaços em conselhos universitários, mas não se enfrenta o fato de que a própria função social do docente mudou.
O professor foi convertido em gestor de si, sua produção científica é mensurada como ativo, sua aula é avaliada por NPS, sua trajetória é monitorada por algoritmos da Capes e do CNPq. O sindicato que não diagnostica essa mutação não pode defender o professor.
Além disso, o ANDES-SN passou a operar também por meio de uma racionalidade reputacional. Sua força organizativa é hoje medida por quantidade de assembleias, moções aprovadas, pautas formalmente apresentadas. A ação concreta se tornou performance — e a militância, uma burocracia simbólica.
Em vez de enraizamento nos cotidianos docentes, o que se vê é a circulação de lideranças em eventos, lives, publicações e textos que repetem diagnósticos antigos. Não há interpelação concreta da financeirização da vida acadêmica, da captura subjetiva dos docentes, da transformação dos sindicatos em simulacros.
A prova disso é que nenhuma das chapas apresentou uma crítica radical à financeirização da universidade. Nenhuma propôs a revisão da própria forma sindical, nenhuma analisou os contratos de gestão, os PDIs, a inserção nos rankings, a captura epistêmica dos currículos. Nenhuma denunciou a conversão do saber em ativo reputacional, a dissolução da vocação crítica, o sofrimento psíquico como manifestação política. Todas operam como se estivéssemos em 1998.
Essa anacronia não é inocente: ela preserva uma estrutura de poder. Enquanto o capital fictício transforma o conhecimento em ativo e os professores em máquinas de produtividade, o sindicato opera como ritualização da luta, como manutenção de estruturas que legitimam correntes políticas e produzem efeitos simbólicos. Mas não constroem resistência. Não mobilizam a base. Não interpelam a forma-universidade, nem a forma-sindicato.
Se a universidade está sob cerco, o ANDES-SN tornou-se sua fortaleza simbólica. E toda fortaleza que se recusa a compreender a guerra que a cerca está fadada a ruir — não pelo ataque inimigo, mas pela corrosão interna. A defesa real da universidade pública não virá das chapas que disputam cargos no sindicato, mas daqueles que ousarem romper com a farsa e construir uma insurgência cotidiana, concreta, que recuse a mercantilização do saber e reabilite o professor como sujeito de crítica — e não como administrador de sua própria precariedade.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados). [https://amzn.to/4fLXTKP]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA