O anti-humanismo contemporâneo

Imagem: Marcelo Moreira
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Por MARCEL ALENTEJO DA BOA MORTE & LÁZARO VASCONCELOS OLIVEIRA*

A escravidão moderna é basilar para a formação da identidade do sujeito na alteridade do escravizado

1.

O corpo de Karl Marx não morreu, virou fantasma na conjunção de Jacques Derrida, seus espectros assombram ao menos a derrocada das cortinas do debate em torno das ruínas do muro de Berlim: o “após a orgia” como ironicamente referenciou Jean Baudrillard como analogia a disrupção do século em uma profunda crise realista, demarcado por uma ausência, um niilismo de uma modernidade que não veio após a “liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação das forças destrutivas, liberação da mulher, da criança, das pulsações inconscientes, liberação da arte” (1996, p. 9).

A concepção humanista, embrionária do Eu-transparente eurocêntrico, que representa a realidade sob a dialética das faculdades e aprisiona os “conceitos espirituais e então, insidiosamente, os traduz no “científico” ou no cognoscível, como uma forma de capitalizar o poder místico do espiritual e de preservar o espiritual sob o pretexto de “compreensão iluminada” (WARREN, 2018, p. 218), chega ao seu apogeu e ruína nos eventos do último século.

A realidade dá lugar a hiper-realidade, a técnica e o trabalho concreto tende cada vez mais subordina-se ao trabalho abstrato, que por sua vez, transforma a ideologia que fazia da mesa que flutuava aos olhos de Marx, uma necessidade de superação paradoxal, que exige uma ontologia própria da mesa, e não tão somente do antropocentrismo da acumulação primitiva da escrita marxiana, sempre assombrada sob um forte incômodo ou ausência do sofrimento colonial do sujeito-histórico que apreende a mesa.

O anti-humanismo contemporâneo, cria novas lacunas que antecedem debates anteriores mal resolvidos que ecoam nos estudos históricos em torno das contribuições epistemológicas de apreensão da realidade. Se Kant, tampouco Hegel também estão mortos ou foram mal resolvidos no sistema volátil de Marx, em que a realidade pode ser apreendida em sua totalidade, isto é, que este contato com a mesma possibilita cognoscibilidade do conceito pela experiência (sensibilidade), um princípio de retroatividade estabelece-se por força própria; sequer um dia saímos de Parmênides e Heráclito.

Com as teorias críticas e pós-humanistas do século XXI, uma pergunta ecoa e cria a necessidade emergente de uma nova teoria da economia política, que contemple a dimensão de todos objetos e suas formas de existência. Forçando ainda mais, se rejeitarmos a absorção da “raça” como exemplo, proposta pelos humanistas radicais do black-studies como Dubois, Fanon, Wynter etc, poderíamos então perguntar: a negridade pode ser um objeto sem sujeito?

2.

Os escombros do muro de Berlim, gestaram em suas ruínas teorias que ultrapassassem a emancipação do homem pelo homem sob suas lentes enviesadas, assim, um objeto que necessariamente atua como uma carapuça construída historicamente e que por isso, ultrapassa o corpo e suas possibilidades poderia criar um objeto sem corpo? Um homem distinto dos Outros?

A negridade a deriva na diáspora é extraída e usada pelos Outros do mundo como alteridade, como argumentou Ferreira da Silva em Homo Modernus: Para uma ideia global de raça (2022), que constrói forçosamente um Sujeito sem um objeto, ou que ao menos, nas teorias da sociedade civil como resultado da luta de classes, não esclarece a posição do escravo nela (Wilderson, 2003).

A negridade, nesse sentido, torna-se um objeto ontológico, mas que em uma análise minuciosa, não resiste à metafísica, ou seja para ela seu terror, uma impossibilidade de representação. Marx identifica que uma particularidade do modo de produção capitalista é, de acordo com Bensusan (2020) a transformação do trabalho imediato em trabalho abstrato na sociedade das mercadorias, essa inversão fetichista na qual insistia Marx (2015) em O Capital, é a característica essencial do capitalismo.

Na OOO, todos os objetos têm seu valor e agência, o que leva a uma reavaliação da mesa flutuante à negridade, como na tentativa inacabada de Barret (1999) que discute como o valor da negridade é duplamente marcado por estruturas sociais e econômicas.

Esse objeto sem sujeito não é apenas a manifestação de uma identidade racial, mas uma construção volátil e dinâmica, moldada por narrativas, expectativas e imposições sociais que frequentemente o reduzem a uma condição existencialista, que por definição do próprio Jean-Paul Sartre atribui ao homem algo de específico em relação aos outros seres do universo.

A crítica ao humanismo marxista ao funcionar como um “corretivo para as lógicas presumidas do humanismo, que representa “um bálsamo curativo para mente humana” (Wilderson, 2021, p. 229) e transforma o sujeito em uma entidade volátil, em constante movimento e adaptação, rompe com a característica essencializante, sempre sujeita à interpretação e ao uso por aqueles que detêm o poder de defini-la ou não foram capazes de anexá-las a uma teoria econômica total.

3.

Se o negro escravizado é pressuposto da sociedade civil, da formação do proletariado enquanto classe, a crítica da economia política marxista não se tornaria insuficiente caso não o incorporasse? É possível uma economia política que incorpore o escravizado? Ainda mais preocupante, sua descrição histórica e teoria revolucionária não se tornaria comprometida?

A acumulação primitiva desempenha na economia política anterior a Marx o análogo ao pecado original teológico, um mito da gênese que justifica o presente “estado de coisas” por meio de uma acumulação de capital, encerrando a cadeia retroativa histórica das desigualdades, justificando-as.  Entretanto, se o pressuposto da produção capitalista atual é a relação capital-salário, o pressuposto de ambos é o sujeito universal, como explica Denise Ferreira da Silva.

A liberdade, como demonstrou Patterson em Freedom (1991) está umbilicalmente conectado ao de escravidão, a escravidão moderna não se apresenta como um fato contingente, paralelo ao desenvolvimento capitalista, mas basilar, necessária para a formação da identidade do sujeito na alteridade do escravizado, que se totaliza numa real acumulação de corpos negros.

A acumulação primitiva tem por finalidade velar a formação capitalista, num transcurso idílico, amistoso, que vai da relação do servo/senhor para trabalhador/burguês, enquanto a história da acumulação dos corpos negros desvela que a economia política que somente compreende o escravizado dentro do campo do “trabalho” ou da propriedade, inverte a ordem histórica reduzindo-o a algo no qual ele é pressuposto.

Dito de outra forma, o proletariado e o burguês não são gestados na superação histórica do modo de produção feudal ou escravista, mas têm na última uma forma própria para seu desenvolvimento. Assim se equivoca Marx (2015, p. 786) ao entender a liberdade do “trabalhador livre” a partir da sua dupla negatividade, com relação à propriedade e às demais relações de dominação precedentes.

A dominação escravista, como demonstra Patterson em Escravidão e Morte Social (2008) não se baseia numa relação de propriedade, tampouco numa relação de trabalho, mas na dominação total que se articula de formas distintas a partir das relações sociais vigentes. A relação do senhor e escravo não é uma relação de troca, como a assalariada, mas de uma extração total, em que as categorias temporais como a mais-valia não regulam majoritariamente os limites do domínio. Uma crítica à economia política que incorpore do escravizado à infância das máquinas deve reconhecer primeiramente a natureza ontológica da violência, seus desdobramentos históricos, suas leis. Ela exige, portanto, uma mudança da compreensão dos limites das teorias revolucionárias canônicas.

*Marcel Alentejo da Boa Morte é mestrando em física na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

*Lázaro Vasconcelos Oliveira é graduando em ciências sociais Universidade estadual de Santa Cruz (UESC).

Referências:


MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. Boitempo Editorial, 2015.

BENSUSAN, H. N. O capital transversal e a seus rebentos atrativos — ou a infância das máquinas. Revista direitos, trabalho e política social, [S. l.], v. 6, n. 10, p. 88–109, 2020. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rdtps/article/view/9305.

BARRETT, L. Blackness and value. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal – Ensaio sobre os fenômenos extremos; tradução de Estela dos Santos Abreu. Campinas, SP – Papirus, 1996.

PATTERSON, O. Escravidão e morte social: um estudo comparativo. Edusp, 2008.

______, Orlando. Freedom. New York: Basic Books, 1991.

WARREN, C. L. (2015). Black Nihilism and the Politics of Hope. CR: The New Centennial Review, 15(1), 215–248. https://doi.org/10.14321/crnewcentrevi.15.1.0215.

WILDERSON III, F. Afropessimismo. São Paulo: Todavia, 2021.

______, Frank. Gramsci’s Black Marx: Whither the slave in civil society? In: Social identities, v. 9, n. 2, p. 225-240, jun. 2003.


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