Por ANDRÉ ITAPARICA*
Comentário sobre o livro de José Crisóstomo de Souza
1.
O avesso de Marx reflete várias características de seu autor, José Crisóstomo de Souza: é inteligente, perspicaz, digressivo, transgressor e polêmico. Não sendo especialista em Marx, não pretendo aqui revelar o avesso de O avesso de Marx, o que seria até desnecessário, dada a translucidez de sua prosa, e a constante lembrança do autor, em diversos momentos, do alcance de seus objetivos. Pretendo, ao contrário, como leitor relativamente informado, sublinhar as linhas mestras da obra, suas intenções e propósitos.
O livro consiste numa reconstrução crítica da obra de Karl Marx que tem como objetivo discutir a herança que o materialismo histórico deixou para a reflexão e para a prática política de nosso momento atual. Nesse sentido, é um acerto de contas não só com uma tradição marxista mas também com os avatares dessa tradição, como a teoria crítica e a política identitária pós-estruturalista. Crítico dessas tendências, nosso autor realiza, ao mesmo tempo, um programa de pesquisa acadêmica e de intervenção intelectual próprio, de um ponto de vista caracterizado como “materialista prático-produtivo”, abreviado na expressão “poética pragmática”.
Esse é o nome de um grupo de pesquisa liderado por Crisóstomo de Souza, cujas diretrizes se encontram no livro coletivo Filosofia, ação, criação: Poética pragmática em movimento (EDUFBA), organizado por ele. Sua proposta particular consiste numa associação do caráter democrático e emancipatório do pragmatismo/neopragmatismo a uma ênfase na dimensão histórico-social de Hegel e no aspecto materialista de Marx (paradigma da produção), subtraindo destes últimos, no entanto, suas pressuposições e conclusões metafísicas.
Em linhas gerais, a plataforma da poética pragmática acompanha tendências contemporâneas de uma filosofia antimetafísica, antifundacionista, contextualista e antimentalista, mas, ao invés de ressaltar uma intersubjetividade mediada linguisticamente, recupera, de Hegel e Marx, a dimensão de uma interação social mediada materialmente, na qual as ações humanas são compreendidas no interior de uma dinâmica em que a lida humana com os objetos é uma via de dois sentidos, pois não só os homens põem seus objetos como também são afetados e postos por eles.
Nesse sentido, a proposta da poética pragmática, com seu elogio à atividade prático-sensível, seria uma alternativa superior à teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas e às diversas vertentes do pós-estruturalismo justamente por não ser centrada na linguagem e sim na ação corporificada.
Em resumo: no contexto do projeto de uma poética pragmática, O avesso de Marx procura apontar para os pressupostos metafísicos, religiosos e mesmo místicos que, segundo o autor, permaneceram, sub-repticiamente, na obra de Marx, ao contrário do que se costuma considerar, para então apontar para um uso mais produtivo, criativo e efetivamente emancipador de Karl Marx.
2.
Segundo a “história oficial”, Marx teria abandonado, em sua última fase, os resquícios metafísicos da ideia de uma Gattungswesen (essência genérica) humana de matriz feuerbachiana, substituindo essa metafísica por uma economia política materialista, focada nas relações de produção reais que determinam a sociedade, ou seja, uma teoria científica isenta de um ponto de vista normativo.
Ao contrário dessa narrativa, Crisóstomo de Souza descreve em detalhes, nos primeiros capítulos do livro, através da análise dos textos e de refinada leitura das metáforas utilizadas por Marx, como este não só não teria abandonado a ideia metafísica de uma essência de caráter comunitário como a levou ao paroxismo, por meio da proposta de um comunismo teleologicamente orientado que representaria a única via efetiva para a unidade da existência do humano com sua essência comunitária, na forma de um corpo místico.
Nessa interpretação, a filosofia clássica alemã, oriunda da teologia, não se desfez, assim, de seus traços centrais, nem mesmo na forma de uma ciência dialética materialmente enraizada. Segundo nosso autor, Marx segue essa trilha ao conceber a política revolucionária como uma substituta da religião, transformada em “ciência dos homens reais e do desenvolvimento histórico” (p. 168).
Onde estaria, no entanto, o problema de o materialismo histórico ter essa origem? O propósito dos jovens hegelianos, grupo ao qual Marx se insere, não seria justamente fornecer uma interpretação secular e emancipatória de ideais justificáveis que até então motivaram o pensamento religioso, como a ideia de igualdade, comunidade e realização humana?
Para Crisóstomo de Souza, o problema do materialismo histórico não estaria propriamente em sua origem religiosa (o que seria uma falácia genética), mas na carga pesadamente metafísica que traz consigo e nas consequências deletérias não só para a teoria mas também para a prática política, não apenas no passado, como vimos tragicamente na construção do socialismo real, como a hipostasia do Estado, a dominação de uma elite burocrática e a negação da individualidade, mas também no presente, seja na figura de uma teoria crítica pessimista e imobilizadora, seja numa concepção moralista das desigualdades na teoria e na política de movimentos identitários.
3.
Para entender como se pode encontrar em Marx essa origem, é necessário então compreender os três aspectos em que sua filosofia permaneceu dependente de pressupostos metafísicos. Para Crisóstomo de Souza, são eles o aspecto ontológico, epistemológico e normativo.
Do ponto de vista ontológico, Marx ainda permaneceria substancialista, essencialista e dualista; do ponto de vista epistemológico, permaneceria mentalista, representacionista e correspondentista, questões mais amplamente desenvolvidas no seu artigo “Um mundo bem nosso”[1] do ponto de vista normativo, teria compromissos com um essencialismo histórico-transcendental: veria a efetivação do comunismo como uma forma de imperativo categórico, princípio da ação que perfaria, ao mesmo tempo, a consumação e a realização dos ideais do cristianismo.
Assim, a crítica de Crisóstomo de Souza a Marx não se reduz, como é de costume, ao determinismo, à teleologia e ao dogmatismo, mas se estende à totalidade de sua matriz metafísica herdada da tentativa de superação de religião pelos pós-hegelianos. Como consequência, vemos permanecer dualismos como a distinção entre a essência humana a se realizar e a sua existência como imperfeita e cindida, assim como a ideia da realidade como uma substância espinosana, na qual os indivíduos só existem efetivamente como parte dessa substância única, e enfim a separação de um mundo ilusório e um mundo real atingido e compreendido apenas pela razão.
São esses pressupostos, diz o autor, que estão na base de conceitos como alienação, reificação, fetiche da mercadoria, ideologia como falsa consciência, etc. Em termos práticos, esses conceitos vão produzir ideias que estarão na raiz das deficiências de projetos de esquerda contemporâneos, como a visão de uma elite intelectual como definidora da consciência real dos indivíduos, a idealização de um mundo pré-capitalista, a imobilização na ausência de condições pressupostas para ação, e a crítica da democracia liberal como um construto ideológico e ilusório.
Essas concepções são um “avesso” de Marx nas duas acepções da palavra: o contrário do que ele esperava construir como teoria e como prática política e, ao mesmo tempo, consequência do lado não visível de seu materialismo histórico.
Dos problemas apresentados, o normativo é que parece, para nosso autor, ter sido mais decisivamente prejudicial para a teoria e a prática política de nossos dias: o dever da realização do humano pelo critério de uma essência genérica, metafísica e transcendente seria a origem das deficiências da teoria crítica e da política identitária de matriz pós-estruturalista, que são, mais do que Marx, os principais adversários de Crisóstomo de Souza.
Afinal, para ele, pode-se aproveitar de Marx algo para a construção de seu ponto de vista materialista prático-sensível, enquanto a teoria crítica à la Theodor Adorno e o pós-estruturalismo à la Michel Foucault são inteiramente descartados como possibilidades de uma política emancipatória. É importante esclarecer, enfim, como a bagagem metafísica, teológica e mística contrabandeada por Marx, do humano como essência genérica comunitária, resultaria no que se apresenta como uma crítica pessimista e negativa da sociedade capitalista da chamada Escola de Frankfurt e num ponto de vista anti-humanista, anti-subjetivista e antinormativo do pós-estruturalismo.
4.
Considero aqui que são dois os pontos centrais para essa crítica de Crisóstomo de Souza. Em primeiro lugar, o aspecto normativo da filosofia de Marx, que é ao mesmo tempo escamoteado e escancarado: o dever de criticar e transformar a sociedade através do comunismo, embora não seja expresso, pressupõe uma série de valores que são considerados superiores, como a igualdade e a não-exploração, e avalia negativamente, com más, a divisão do trabalho e a propriedade privada.
Até aí, tudo bem. O maior problema é que isso se sustentaria numa compreensão essencialista do que o homem deve ser. Segundo Crisóstomo de Souza, esse humanismo, baseado “nos mais virtuosos atributos humanos”, “acabou sendo quase tudo para a Teoria Crítica posterior, dita frankfurtiana” (p. 241). Do mesmo modo, é tomada como herança recebida da teoria crítica a atribuição de ideológico a todo pensamento que não esteja de acordo com essa idealização humana.
Para Crisóstomo de Souza, enfim, Marx realizou a proeza de convencer seus leitores de que o que é “moralmente prescrito” é o “materialmente inscrito” numa realidade que só uma Teoria acima da consciência comum é capaz de desvelar (p. 247). Sendo essa essência genérica intrinsecamente comunitarista e aversa ao individualismo atomista do mundo liberal moderno, para nosso autor, esse antimodernismo é o combustível do pessimismo frankfurtiano e da devoção identitária a toda organização social tribal, natural e não-ocidental.
A crítica pós-estruturalista, por sua vez, seria o sucedâneo linguístico do dualismo metafísico entre o real (as relações de produção) e o falso (a ideologia), como infraestrutura e superestrutura, o que já promove a ideia de uma estrutura determinando independente da individualidade dos sujeitos empíricos.
Em Michel Foucault, a nêmesis privilegiada de Crisóstomo de Souza, isso se apresenta como o desvelamento das relações de poder, o anti-humanismo inerente ao estruturalismo e a fragmentação da luta de classes como luta entre minorias identitárias (como proliferação de pequenos proletariados), todas determinadas por relações de modo opressor-oprimido, mesmo que capilares, mas em última instância formatadas por normas opressivas oriundas de estruturas da modernidade, através de intuições kuhnianas-canguilhemianas traduzidas num vocabulário kantiano das condições de possibilidade compreendidas linguisticamente (discursivamente).
Tudo isso pode parecer uma vulgata da teoria crítica e do pós-estruturalismo. A essa objeção, nosso autor responde que pode ser até uma vulgata, mas com fundamento no original. Como toda caricatura, seria apenas o exagero dos traços mais marcantes. Não que Crisóstomo de Souza não reconheça algum saldo positivo desses empreendimentos, principalmente na teoria crítica, cuja objeção mais mordaz parece se aplicar mais à primeira geração da Escola de Frankfurt, que, posteriormente, viria a conhecer desenvolvimentos mais promissores.
De qualquer modo, a teoria crítica e o pós-estruturalismo não são para ele as melhores saídas para uma teoria e ações políticas emancipadoras, principalmente no contexto do Brasil, um país semiperiférico do sul global com enormes desafios a enfrentar, o que só realmente poderá ser realizado por uma teoria não colonizada, que saiba extrair da teoria social, internacional e brasileira, aquilo que efetivamente ainda é conceitualmente frutífero e politicamente transformador.
Tudo isso explicita como O avesso de Marx não deve ser entendido apenas como uma discussão especializada e erudita sobre o autor de O capital – o que também é – mas como uma tomada de posição, teórica e política, que procura representar uma alternativa às propostas que se apresentam atualmente no campo progressista. Assim, esse livro, particularmente em suas teses mais polêmicas, deve ser compreendido no contexto mais amplo do programa da poética pragmática, que tem sua própria crítica do liberalismo e dos impasses da esquerda, assim como suas propostas, como a elaboração de uma noção material de cidadania e a adoção de um construcionismo institucional.
Esse pano de fundo propositivo, que anima as críticas expressas em O avesso de Marx, tem sido defendido enfaticamente por Crisóstomo de Souza através de diversos meios, sejam trabalhos acadêmicos ou intervenções públicas.
*André Itaparica é professor de filosofia da Universidade do Reconcâvo Baiano (UFRB).
Referência

José Crisóstomo de Souza. O avesso de Marx: conversas filosóficas para uma filosofia com futuro. Ateliê de Humanidades, 2024, 276 págs. [https://amzn.to/3X1Hevw]
Nota
[1] Cf. Cognitio, v. 12, n. 2, 2015.
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