Por Leonardo
Avritzer*
O uso persistente
da mentira ou da dissimulação estava presente na coalizão monopolista da grande
mídia e nos procedimentos à margem da lei da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro
antes de se estender pelo campo Bolsonarista
Circularam
nas redes sociais, neste início de ano, algumas interpretações equivocadas
acerca do argumento arendtiano presente em um de seus principais livros: As origens do totalitarismo (Companhia
das Letras). No Brasil da polarização das redes sociais, o resgate do argumento
de Hannah Arendt acerca do totalitarismo se deu pelos motivos mais pedestres
possíveis.
Depois
do vídeo do discípulo de Goebbels de plantão na Secretaria Nacional de Cultura,
usou-se Arendt para afirmar que o socialismo, na sua versão estalinista, é tão
ruim quanto o nazismo. Cada uma das experiências totalitárias produziu mortos e
fortes restrições na liberdade, o que dificulta discordâncias com esse tipo de
afirmação. Entretanto, essa recepção de Hannah Arendt, comum desde a publicação
de As origens do totalitarismo e está
ligada à situação de Guerra Fria, é uma recepção equivocada (vide entre outros
Jeffrey Issac, Arendt, Camus and modern
rebellion).
Essa
recepção é equivocada, de fato, porque supõe que o objetivo da obra é
relacionar as duas experiências totalitárias quando na verdade o objetivo dessa
e de outras obras arendtianas é mostrar como o autoritarismo destrói os espaços
de pluralidade que são necessários para a política democrática. É com essa
ideia que tentarei dar uma explicação para a praga bolsonarista que atinge a
democracia brasileira.
Para
Hannah Arendt, a política democrática é estruturalmente dependente de um espaço
no qual tendências diversas de pensamento se entrelaçam baseadas na pluralidade
de eventos e experiências. A única maneira de constituir um espaço democrático
é aceitando essa pluralidade na qual nenhuma ideia, a não ser a ideia do
direito a ter direitos, alcança a hegemonia completa e as diferentes formas de
ação são debatidas por atores políticos (Arendt, 1951, As origens do totalitarismo e 1958, A condição humana [Forense universitária]).
Em
contraste com a ideia da política democrática, o totalitarismo ou o
autoritarismo tem como objetivo destruir o espaço público de pluralidade por
meio da transformação de atores políticos que divergem em inimigos que não
merecem o aceso à pluralidade do espaço público. Não é difícil perceber que
essa demonização do público, que o pensamento totalitário secular de meados do
século XX e os fundamentalismos religiosos do século XXI partilham, é que
permite a degradação da política – esta que assistimos ocorrer a largos passos
no nosso país. E aqui vale pensar no papel das redes sociais que evidentemente
não são responsáveis pelo estreitamento do pluralismo no espaço público, mas obedecem
a uma lógica de gueto político que acentua este processo.
O
Brasil é um país no qual estas características se expressam diuturnamente,
independentemente da impossibilidade de classificarmos o país como totalitário.
O Brasil tem um espaço público atípico por diversos motivos: em primeiro lugar,
ele não conseguiu no momento de liberalismo midiático ter uma mídia pluralista.
Temos uma grande mídia oligopolizada devido à maneira como ela foi constituída
no período autoritário e à inabilidade das forças democráticas em submeter a
grande mídia a qualquer tipo de regulamentação, tal como ela sofre nos Estados
Unidos e na Inglaterra.
O
resultado é uma mídia pouco pluralista. A exceção é a Folha de S. Paulo que mantem o pluralismo entre os seus articulistas
e se distanciou rapidamente da coalizão monopolista da grande mídia ao pedir
novas eleições, ainda antes da discussão sobre um possível impeachment de Jair
Bolsonaro.
Foi
esta coalizão midiática que constituiu um espaço de questionamento das
concepções políticas da esquerda brasileira e aceitou uma normalização das
concepções políticas da extrema direita. O resultado dessa distorção de
percepção despontou em 2018 e ainda não chegou ao seu final. Ali, Jair
Bolsonaro foi apresentado como tendo as mesmas concepções de política que
Fernando Haddad – ambos seriam antidemocráticos – mas o capitão reformado não
viria do campo impuro da “corrupção”, outro elemento que merece uma análise
arendtiana.
Hannah
Arendt afirmou em As origens do totalitarismo,
assim como em outros escritos, que um dos elementos centrais do apoio das
massas a experiências autoritárias reside no deslocamento de certas ideias
utópicas. Tanto o nazismo quanto o estalinismo operaram com êxito neste espaço,
transformando ideias como pureza racial ou pureza de classe em utopias que
justificavam a distorção do debate público e a repressão aos seus opositores.
Ouso
dizer que a ideia de corrupção, tal como ela é operada no Brasil desde 2014,
cumpre função semelhante. Ainda que seja difícil concebê-lo hoje, devido ao
absurdo da proposição, a ideia da raça pura, esta foi entendida como uma forma
de utopia na Alemanha dos anos 1930, da mesma forma como a ideia de pureza de
classe na antiga União Soviética. Não tenho dúvida de que a suposta campanha
contra a corrupção preencheu no Brasil os mesmos requisitos: a introdução de
uma chave analítica limpos versus impuros associada com a ideia de um grande
combatente desse processo de degradação social, no caso o juiz da 13º vara da
justiça federal, Sérgio Moro.
Todas
as instituições midiáticas brasileiras operaram nessa chave interpretativa que
permitiu ao juiz tentar intervir no processo eleitoral de 2014, pressionar
juízes do Supremo Tribunal Federal, liberar áudios proibidos pela lei e
extorquir informações de testemunhas através do uso ilegal do instrumento da
condução coercitiva.
Vale
a pena traçar o paralelo com a maneira como os juízes na Alemanha nazista
operavam: a legislação criminal do Nacional Socialismo supunha o dever da
lealdade ao Volk. Assim, o direito nacional socialista renunciava à
ideia de que “a lei deveria ser a única fonte para determinar o que é legal e o
ilegal” (vide o excelente livro de Ingo Muller. Hitler´s Justice). Não tenho dúvida de que a Lava Jato operou a
partir do mesmo princípio: uma vez estabelecidos os seus inimigos, a questão
seria puni-los e não se pautar pela legalidade.
O
campo da mentira midiática ou judicialmente sancionada começa a se desenvolver
ainda em 2016, quando Moro pede as chamadas escusas ao então ministro do STF,
Teori Zavascki. Ali ele afirma que errou, mas que não “teve por objetivo gerar
fato político-partidário”. Em 2017, depois de
condenar o ex-presidente Lula pela propriedade do triplex e por recebimento de
propina em troca de favorecimento em contratos da Petrobras, Sérgio Moro dá um
passo adiante quando afirma, ao responder aos embargos declaratórios dos
advogados do ex-presidente Lula, que o menos importante era se a origem dos recursos
estava em contratos da Petrobrás.
Por
último, ele afirmou que não tinha nenhuma relação pessoal ou convite do atual
presidente quando liberou trechos da delação premiada do ex-ministro Antônio
Palocci alguns dias antes do primeiro turno das eleições de 2018. Assim,
podemos dizer que o problema da mentira ou da dissimulação está presente na
Lava Jato e nos comportamentos do juiz Sérgio Moro antes de alcançar o campo bolsonarista.
Uma
questão central nesta conjuntura e da qual, não por acaso, quase nada sabemos,
porque nenhum órgão de imprensa se propôs a investigar, é qual foi a relação
entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro (ou os militares) entre 2015 e outubro de
2018 quando o primeiro foi então convidado a assumir o Ministério da Justiça do
recém-eleito presidente. Sabemos, no entanto, que há um claro encobrimento
dessa relação.
No
dia 04 de março de 2016, quando Sérgio Moro sentiu-se blindado o suficiente
para ordenar a coerção coercitiva do ex-presidente Lula sem jamais tê-lo citado
ou incluído como suspeito em qualquer um dos processos da operação Lava Jato,
Jair Bolsonaro encontrava-se em Curitiba esperando a chegada do ex-presidente
lá. É lícito supor que estas relações que fazem parte do submundo do bolsonarismo
existiam muito antes e com diversos intermediários.
Assim,
também foi considerada absolutamente natural a visita do general Hamilton
Mourão ao presidente do TRF-4 quando esse estava de posse do recurso do
ex-presidente que seria julgado ou talvez decidido em tempo recorde. Assim, a
politização do Judiciário e o estreitamento do campo público e da mídia andaram
de braços dados até o início da campanha eleitoral. O que ocorreu a partir
dali? A apropriação do conjunto da obra pelo bolsonarismo.
Jair
Bolsonaro pertence a este campo de uma forma bastante particular e o uso que
ele faz da mentira parece ser de outro tipo, diferente de Moro e da Lava Jato.
Em primeiro lugar, a estratégia do bolsonarismo até o início da campanha
eleitoral foi ocupar as margens do debate político e do campo público. Nesse
momento marginal, não há nenhuma mentira no bolsonarismo, apenas uma interpretação
minoritária e isolada dos fatos recentes da história do Brasil. Assim,
Bolsonaro pode assumir o legado da ditadura militar, defender torturadores e
milicianos abertamente e atacar o Poder Judiciário.
Foi
apenas quando os grupos midiáticos, judiciais e empresariais chegaram à
conclusão que seu projeto centrista fracassou completamente, no início do
processo eleitoral do ano de 2018, que uma operação mais sofisticada entrou em
cena. Nessa operação Bolsonaro,
Moro, e os grupos religiosos são apresentados como a fonte da pureza ética ou
da pureza moral, sempre em contrapontos ao PT e à esquerda que há alguns anos
vinham sendo apresentados como o centro da corrupção na sociedade brasileira.
Foi
esse o conteúdo das fake news, assim como foi esse o conteúdo do debate
público travado por esses atores. Naquele momento, a grande mídia e seus
jornalistas de plantão optaram por uma segunda estratégia eleitoralmente
exitosa: o PT e o bolsonarismo estavam igualmente fora do campo democrático,
mas o PT deveria ser punido pelas suas ações na economia e pela corrupção. Esse
foi o discurso que prevaleceu até o começo desse ano apesar dos escândalos da “rachadinha”
no Rio de Janeiro, do sumiço do Queiroz, da investigação manipulada do
assassinato de Marielle Franco e das opiniões do presidente sobre o Congresso e
o STF. Por que essa estratégia não funciona mais?
Porque
o bolsonarismo não consegue entregar promessas nem no campo da economia e nem
no campo da segurança pública e corre o risco de entrar mal posicionado para o
processo eleitoral de 2020. O que ele faz então? Rompe com a aliança tácita com
os setores da manipulação midiática. E rompe completamente, tanto com a Folha de S. Paulo que nem chegou a
entrar completamente nessa aliança, quanto com os grupos que a princípio faziam
parte dela como o O Globo e o Estadão.
A
ruptura do bolsonarismo com o campo mediático que contribuiu com o
estreitamento do debate público se dá pelos mesmos meios que o processo
anterior foi construído: como uma tentativa de criar uma mobilização contra os
impuros ou não-éticos da política que agora são o Congresso, o STF e a
imprensa. O presidente, devido às suas características pessoais, deu um passo
adiante nessa estratégia ao escolher jornalistas (não por acaso do sexo
feminino) para agredir em bases pessoais. Mas, o que mais chama a atenção no bolsonarismo
e no campo que ele vem construindo é que a apresentação de provas por
jornalistas como Patrícia Mello ou Vera Magalhães não impediu o presidente de
mentir abertamente sobre essas questões.
Voltamos
mais uma vez à análise arendtiana. Se o campo no qual o debate público plural
pode ser travado não existe, a mentira pode ser normalizada enquanto verdade. Os
jornais O Globo e Estadão fizeram editorais na última
semana que mostram o tamanho do problema que enfrentamos hoje no Brasil para
tentar reestabelecer um espaço público plural.
O
Estadão seguiu a mesma linha que
segue pelo menos desde 2016. Ele identifica um processo de afronta à lei, mas
faz questão de remetê-lo ao que os donos do jornal chamam de lulopetismo.
Assim, “a bem da verdade, não é de hoje que um
presidente faz troça das instituições e da lei. Já passaram à história as
seguidas ofensas de Lula da Silva ao Judiciário, bem como sua bênção à
corrupção desbragada promovida pelo PT no Congresso. Bolsonaro, aliás,
elegeu-se justamente em razão da revolta dos brasileiros ante essa demonstração
cabal e sistemática de desrespeito à democracia”.
Ou seja, temos aqui duas colocações de absoluta distorção dos
elementos centrais do debate público no Brasil: o primeiro é que os que
elegeram Bolsonaro buscavam a restauração da democracia e da ordem. Não há na
biografia do capitão reformado tornado presidente colocações neste sentido. Em
segundo, que a ordem, a lei e a democracia eram ameaçadas pelo governo de
esquerda. Se o eram, como julgam os editorialistas do Estadão, por que a
degradação produzida por Bolsonaro e sua gang de apoiadores nas redes sociais
implica em uma degradação tão forte da democracia?
O Globo também
publicou um editorial, mas com uma estratégia mais inteligente do que a do
Estadão. Para o Globo, Jair Bolsonaro “Foi beneficiado em 2018 por uma
conjunção feliz para ele, em que a debacle da esquerda, desestabilizada pelo
desastre ético lulopetista e pela teimosia do ex-presidente Lula em continuar
dono do PT, somada à falta de nomes para ocupar espaços no centro, permitiu a
sua eleição, com a ajuda de muitos que usaram o voto para punir o PT. À medida
que o ex-capitão foi revelando toda a face de extremista, e não apenas na
política, boa parte destes eleitores se afastou. Bolsonaro tornou-se, então, um
presidente de baixa popularidade, sustentado por milícias digitais e claques de
porta de Palácio. E passou cada vez mais a dirigir-se a estes bolsões, o que o
foi afastando da maior parcela da sociedade”.
Ou seja, ambas as
narrativas tentam estabelecer o impossível, uma relação entre o governo de
esquerda e o lulismo com uma degradação do espaço público patrocinada pelo Bolsonarismo.
No caso do Estadão já havia essa
degradação antes, só que o Brasil não sabia. No caso de O Globo, o problema foi a tentativa do eleitor de punir o PT e o lulismo,
ação com a qual o próprio jornal ou o grupo não teria qualquer relação. Em
ambos os casos vemos mais uma tentativa de operação tabajara, isto é, tenta-se
criar uma linha de continuidade em um processo de clara ruptura: a tentativa de
Moro e Bolsonaro de romper com o resto de pluralidade que restou no país e que
o bolsonarismo está disposto a romper com agressões a jornalistas e mentir
sobre os fatos envolvidos.
Ainda mais
importante é a tentativa de negação pela grande mídia do óbvio: que a
demarcação ética construída pela Lava Jato é falsa e foi ela que permitiu a
construção do bolsonarismo como um campo não corrupto, apesar de todas as
evidências de relações com milicianos e “rachadinhas” de gabinete.
Infelizmente, não
existe meia sola na reconstituição de um campo público político no Brasil. Para
a sua reconstituição é preciso reconhecer aquilo que a “Vaza Jato” mostrou: a
tentativa de manipulação da operação judicial, assim como a tentativa de
estabelecer um pseudocampo ético na política. Tentar se opor ao bolsonarismo e
manter a estratégia de demarcação ética construída pela dupla Moro-Bolsonaro é
uma estratégia inviável que não conseguirá deter a deterioração do espaço
público no nosso país.
*Leonardo Avritzer é professor de Ciência Política
na UFMG.
