Por BRUNO FARIAS*
Liberdade de expressão ou liberdade para oprimir? A condenação de Léo Lins nos leva a pensar sobre os limites éticos do humor na sociedade contemporânea
1.
A recente condenação do comediante Léo Lins a oito anos de prisão por fazer “piadas” que reforçam estereótipos racistas, capacitistas e transfóbicos trouxe, novamente, a discussão sobre liberdade de expressão para os assuntos mais comentados no Brasil.
Figuras da extrema direita e setores autodenominados conservadores reagiram com indignação, clamando pela suposta violação desse direito. No entanto, um exame mais profundo revela uma contradição fundamental e perigosa: o que esses grupos realmente defendem não é a liberdade de expressão, mas sim a liberdade para o discurso de ódio — em outras palavras, a liberdade para oprimir.
Para compreendermos essa distorção, é preciso primeiramente revisitar o conceito de “liberdade de expressão”. Segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, trata-se do direito de manifestar opiniões, ideias e crenças sem interferência ou punição do Estado. Contudo, esse princípio nunca foi absoluto.
Desde suas formulações clássicas, pensadores liberais como John Stuart Mill já advertiam que a liberdade de expressão deve ser limitada quando causa dano a outros — o chamado “princípio do dano”. Em sua obra “Sobre a Liberdade” (1859), John Stuart Mill afirma: “o único propósito para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é para prevenir dano a outros”.
Nessa perspectiva, o discurso que ofende, marginaliza ou ameaça a dignidade de indivíduos ou grupos não pode ser considerado expressão legítima. A liberdade de expressão não pode ser divorciada do princípio da responsabilidade. Judith Butler argumenta que a linguagem pode ser uma forma de violência, e que os discursos performativos têm efeitos materiais nos corpos que os escutam. O conceito de “injúria performativa”, proposto por ela, revela como palavras não apenas representam o mundo, mas o moldam — e, portanto, precisam ser julgadas também por seus efeitos.
É nesse ponto que entra uma das dimensões mais negligenciadas no debate público: a liberdade de expressão do receptor. A comunicação é uma via de mão dupla; ela não termina na fala do emissor, mas se realiza plenamente na escuta e na resposta. A liberdade de expressão, portanto, deve abarcar também o direito de reagir à mensagem recebida.
Reagir, aqui, não é apenas o direito de discordar, mas o de denunciar, protestar, se indignar, chorar, rir, ou mesmo buscar reparação quando a mensagem recebida fere a dignidade humana. Essa dimensão da liberdade é sistematicamente negada pela extrema direita, que exige silêncio das vítimas e reverência ao agressor sob o pretexto de “humor” ou “opinião pessoal”.
Essa restrição à resposta do receptor constitui também, ao contrário do que eles querem fazer parecer, uma forma de censura. Como bem nota Axel Honneth, o reconhecimento mútuo é essencial para uma sociedade democrática, e negar a voz ou a dor do outro constitui uma forma de violência social. A tentativa de deslegitimar a reação — chamando-a de “vitimismo”, “mimimi” ou “censura” — é um modo de cercear a cidadania daqueles que historicamente já foram silenciados. A liberdade de expressão plena requer, necessariamente, a liberdade de resposta: de dizer “isso me fere”, “isso me exclui”, “isso me desumaniza”. E essa resposta também é protegida por qualquer concepção minimamente democrática de liberdade.
Filósofos contemporâneos como Tzvetan Todorov, Jürgen Habermas e Chantal Mouffe também contribuem para essa reflexão. Jürgen Habermas, por exemplo, defende que o discurso racional em uma democracia só é legítimo quando se dá em condições de simetria entre os interlocutores. Quando há assimetrias estruturais, como racismo, machismo e transfobia, o espaço público deixa de ser democrático.
Chantal Mouffe, por outro lado, ressalta que o dissenso é constitutivo da política, e que a tentativa de silenciar as reações é uma forma de neutralizar o conflito necessário para a transformação social. Já Tzvetan Todorov nos alerta para os usos políticos da liberdade: “a liberdade de expressão não é um valor absoluto se ela se volta contra a própria liberdade”.
2.
Ao mesmo tempo, é preciso desmascarar o uso oportunista da identidade “conservadora”. Muitos dos que hoje se intitulam conservadores, na verdade, não buscam conservar instituições democráticas ou direitos adquiridos, mas retroceder a uma sociedade hierárquica e excludente. São reacionários. O verdadeiro conservadorismo, como o de Edmund Burke, buscava preservar a ordem institucional frente às rupturas abruptas, mas não negava os direitos conquistados com o tempo. A extrema-direita brasileira, ao atacar direitos das mulheres, da população negra, LGBTQIA+ e das pessoas com deficiência, não é conservadora: é reacionária.
Assim, é fundamental reconhecer que a defesa de direitos civis e sociais — como o combate ao racismo, à LGBTQIA+fobia, ao capacitismo e ao machismo — não é, por definição, uma pauta exclusiva da esquerda. Esses direitos podem e têm sido defendidos a partir de diferentes tradições políticas e filosóficas, incluindo vertentes liberais e até conservadoras.
Do lado liberal, autores como John Stuart Mill já defendiam a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e seu legado foi retomado por pensadoras como Martha Nussbaum, que articula os direitos humanos e a justiça social a partir de uma perspectiva liberal baseada nas “capacidades” essenciais para uma vida digna. Já Ronald Dworkin argumentou que a dignidade humana e o respeito à diferença são pilares da justiça em uma sociedade democrática, sendo a igualdade uma exigência moral do próprio liberalismo.
Até mesmo dentro do conservadorismo, há quem defenda os direitos civis como forma de preservar a coesão e a estabilidade da ordem social. Michael Oakeshott, embora crítico da revolução e do racionalismo político, defendia que as instituições devem evoluir para incluir grupos antes marginalizados. Mais recentemente, intelectuais como David Brooks e Yuval Levin, conservadores nos EUA, reconhecem a importância da inclusão e da dignidade como fatores essenciais para a integridade das instituições democráticas.
Do ponto de vista marxista, a crítica à opressão de gênero, raça e sexualidade é compreendida como parte indissociável da luta contra a exploração de classe. Alexandra Kollontai, no início do século XX, já articulava o feminismo à luta socialista. Angela Davis, Nancy Fraser e Silvia Federici são exemplos de autoras marxistas contemporâneas que mostram como o capitalismo reproduz opressões interligadas e estruturais. Fraser, em especial, tem enfatizado a necessidade de integrar a redistribuição econômica com o reconhecimento das diferenças culturais, de gênero e raça.
No Brasil, essa perspectiva crítica também está presente em diversos pensadores e pensadoras marxistas. Lélia Gonzalez foi pioneira ao conectar marxismo, feminismo e a luta antirracista, destacando como o racismo e o patriarcado estruturam as formas de dominação no país. Clóvis Moura, em sua análise histórica, mostrou como a escravidão e o racismo foram pilares da formação do capitalismo brasileiro, sendo o povo negro sistematicamente excluído das promessas da modernidade liberal.
Sueli Carneiro, embora com influências diversas, também adota uma crítica estrutural da sociedade capitalista, apontando como o racismo opera como tecnologia de poder. E mais recentemente, intelectuais como Giovanni Alves e Ricardo Antunes vêm discutindo como o neoliberalismo intensifica a precarização da vida, aprofundando desigualdades de classe, gênero e raça.
Portanto, o compromisso com os direitos humanos não é monopólio de uma corrente política. O que distingue verdadeiramente as posições é o modo como se justificam e se articulam esses direitos — se como forma de emancipação coletiva, de preservação institucional ou de promoção da liberdade individual.
3.
O que está em jogo, nesse debate, não é se alguém é de direita ou de esquerda por defender (ou não) esses direitos. O divisor real está entre aqueles que aceitam a ampliação democrática das liberdades e da dignidade para todos — e aqueles que, ao recusarem isso, defendem um retrocesso autoritário. Recusar os direitos civis e sociais básicos a grupos oprimidos não torna ninguém “conservador”, torna essa pessoa reacionária.
Essa incoerência se torna ainda mais evidente à luz da própria tradição liberal. Muitos dos direitos sociais hoje em disputa foram inicialmente defendidos por liberais clássicos. Mary Wollstonecraft, no século XVIII, advogou pelo direito das mulheres à educação e à cidadania plena. John Locke estabeleceu os fundamentos do direito à liberdade e à igualdade perante a lei. Montesquieu e Tocqueville, pilares do liberalismo político, defenderam a separação de poderes e os direitos civis. Alexis de Tocqueville também denunciou a escravidão nos Estados Unidos e a hipocrisia liberal diante do racismo.
No século XX, autores como Karl Popper alertaram sobre os perigos do discurso intolerante. Em A sociedade aberta e seus inimigos (1945), Karl Popper formula o “paradoxo da tolerância”: uma sociedade tolerante não pode tolerar o intolerante sem destruir a si mesma. Esse raciocínio foi retomado por autores como Michael Walzer e Ronald Dworkin, que argumentam que os direitos fundamentais, inclusive a liberdade de expressão, devem ser protegidos, mas não a ponto de permitir que sejam usados para minar os próprios fundamentos da democracia.
Judith Butler, Nancy Fraser, Kimberlé Crenshaw, Angela Davis e bell hooks ampliaram a reflexão sobre a liberdade e os direitos civis a partir das experiências de gênero, raça e classe. Fraser propõe o conceito de justiça como paridade participativa, onde a liberdade de expressão deve ser pensada dentro de estruturas que garantam que todos os grupos possam participar do debate público em condições de igualdade.
Kimberlé Crenshaw mostra como discursos aparentemente “neutros” podem ser formas de silenciamento de identidades interseccionais. Bell Hooks nos lembra que a linguagem do opressor nunca será neutra, e que resistir a ela é também um ato de liberdade.
No Brasil, essa discussão ganha contornos urgentes. O país ainda carrega os traços de séculos de escravidão, racismo estrutural, patriarcado e violência de Estado. Usar o humor como veículo de reprodução dessas violências não é expressão legítima, mas um reforço de estruturas de opressão. A comédia pode e deve provocar — mas provocar a crítica, a reflexão, e não a humilhação dos mais vulneráveis. O humor que agride a dignidade de pessoas negras, trans, indígenas ou com deficiência apenas reafirma desigualdades históricas.
Dados do Disque 100 (Ministério dos Direitos Humanos) mostram um crescimento alarmante nas denúncias de violações de direitos contra pessoas negras, mulheres, indígenas e pessoas com deficiência. Em 2023, foram mais de 20 mil denúncias de racismo e injúria racial. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo a Transgender Europe. Essas estatísticas não são desvinculadas do discurso público: elas se alimentam dele, e o discurso que desumaniza também prepara o terreno para a violência física.
Portanto, a verdadeira defesa da liberdade de expressão exige coragem e comprometimento com a justiça social. Ela não pode ser um privilégio de quem já detém o poder de dizer sem ser contestado. Deve ser um instrumento de emancipação, de inclusão, de construção de uma esfera pública verdadeiramente democrática. Isso inclui o direito de reagir, de protestar, de se indignar diante da opressão travestida de piada. Como escreve Angela Davis, “em uma sociedade racista, não basta não ser racista: é preciso ser antirracista”. O mesmo vale para a liberdade: não basta defendê-la em abstrato, é preciso garantir que ela sirva à dignidade humana.
A condenação de Léo Lins não é um ataque ao humor, mas uma afirmação ética de que a liberdade tem limites. Limites que existem para que todos possam falar — e viver — com dignidade. E isso, longe de ser censura, é o que torna possível uma sociedade realmente livre.
*Bruno Farias é graduado em economia e graduando em matemática.
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