O código do capital

Imagem: Victory-Park

Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

Comentário sobre o livro de Katharina Pistor

1.

O objetivo desse escrito é fazer uma resenha do livro O código do capital: como a lei cria riqueza e desigualdade, de Katharina Pistor, professora de direito da Universidade de Columbia. Mesmo tendo a pretensão de fazer leitura amigável do escrito, não é possível superar uma dificuldade: ela aborda essa potência que move a sociedade moderna não apenas como economista – o que seria normal dada a sua especialização –, mas também sem ter em conta o que a tradição de economia política pensa sobre ela.

Como o título já mostra bem, a sua preocupação central é a elevação da desigualdade de renda e riqueza que vem ocorrendo desde os anos 1980; eis o dado que ela mesma apresenta logo no início do livro, o qual foi retirado do World Inequality Report de 2018: entre 1980 e 2017, 50 por cento população mundial recebeu apenas 12 por cento da riqueza criada nesse período; por outro lado, um por cento capturou 27 %. Para explicar essa tendência recente, ela menciona que as explicações dos economistas são bem insuficientes.

Para encontrar uma explicação melhor, ela parte da seguinte pergunta: “como a riqueza é criada em primeiro lugar?”. Curiosamente, para dar uma resposta para essa questão, ela não se fia em qualquer teoria da produção, como faria um economista clássico, marxista, neoclássico, austríaco etc. Questionando a sua suposta resilência do capital, ela completa assim essa primeira indagação: “como o capital frequentemente sobrevive aos ciclos econômicos e aos choques que deixam muitos à deriva, privados dos ganhos que antes obtinham?”

E aqui é preciso fazer uma citação mais longa: “A resposta a essas perguntas, sugiro, está no código legal do capital. Fundamentalmente, o capital é feito de dois ingredientes: um ativo e o seu código legal. Eu uso o termo “ativo” amplamente para denotar qualquer objeto, reivindicação, habilidade ou ideia, independentemente de sua forma. Em sua aparência não adulterada, esses ativos simples são apenas isso: um pedaço de terra, um edifício, uma promessa de receber pagamento em uma data futura, uma ideia para um novo medicamento ou uma sequência de código digital. Com a codificação legal correta, qualquer um desses ativos pode ser transformado em capital e, assim, aumentar sua propensão a criar riqueza para seu(s) detentor(es)”.

2.

Uma análise crítica dessa resposta mostra o seguinte: ela separa mal, por meio de uma abstração do entendimento, a forma social (um momento do capital propriamente dito que é, então, reduzido a um direito garantido pelo Estado) de seu suporte material (uma máquina, uma tecnologia, um título etc.); em sequência, usando um termo corrente da contabilidade financeira, designa genericamente esse suporte de ativo. Ao fazê-lo, confunde a forma social com o suporte dessa forma, caindo assim no fetichismo da mercadoria.

Ora, ativo é forma contábil de certas mercadorias que aparecem no balanço das empresas. Trata-se, pois, de uma noção que pressupõe já a realidade social criada pelo próprio sistema capitalista; como se sabe, ele é assim definido: “Em contabilidade financeira, um ativo é qualquer recurso de propriedade ou controlado por uma empresa ou entidade econômica. É qualquer coisa que pode ser usada para obter rendimento. Os ativos representam o valor de propriedade que pode ser convertido em dinheiro”. Ativo, portanto, é já sempre um modo de existência de capital.

O capital, como se sabe ou se deveria saber, aparece sob múltiplas formas porque é um “sujeito” social, ou seja, existe sempre como um processo de autoconstituição, ou seja, como valor que se valoriza. Como tal, ele é expressão de relações sociais entre partes em que uma delas ganha mais-valor e a outra entrega esse valor.

Como foi dito, ao construir uma nova teoria do capital, Katharina Pistor assimila a forma social capital ao código legal que supostamente garante o direito à valorização possível e valorização efetiva a medida que ela acontece. Fechando o argumento, ela chega a atribuir ao próprio código a capacidade de criar (sic!) riqueza, quando deveria ter dito que o direito intitula o seu possuidor a obter uma parte da riqueza que é criada na economia capitalista e que, como já foi dito, está constituída por uma coleção imensa de mercadorias, as quais, como se sabe, são ao mesmo tempo valores de uso e valores de troca.

E se registre neste momento da exposição que há dois tipos mercadorias: as comuns cujo suporte material consiste de valores de uso que atendem alguma necessidade humana e social nas esferas do consumo e da produção como tal e as promissórias (ou financeiras) cujo suporte material consiste de um “papel” ou registro contábil (escriturado de algum modo), os quais atendem necessidades do próprio capital; neste segundo caso, o valor de uso do suporte consiste em ser mero suporte da forma social que ele sustenta.

O que é importante apreender é que as mercadorias em geral, em ambos os casos portanto, são formas aparentes da relação de capital. Como essa relação existe em processo, ela se manifesta por meio de formas aparentes e transitórias – mercadorias comuns, mercadoria dinheiro e mercadorias promissórias – que costumam ser apreendidas erroneamente como capital por excelência.

3.

A teoria aventada por Katharina Pistor, que peca pela falta de rigor na apreensão do seu objeto, tem, contudo, uma finalidade bem especifica. Ela quer encontrar a fonte da enorme concentração da renda e da riqueza na sociedade contemporânea para poder encontrar os meios de melhor contrariá-la. Ao situá-la na forma jurídica, ou seja, na produção de códigos que supostamente transformam os ativos em capital e os protegem, ela propõe um ativismo jurídico que os cerceie e que, ademais, dê suporte aos códigos que forjam os direitos sociais e humanitários.

Tem esperança de que esse ativismo torne possível instituir na sociedade uma contraposição eficiente e eficaz à predominância dos direitos que constituem o capital e que estariam conspirando contra a democracia e a boa sociedade.

Eis pois, em suas palavras, o seu projeto teórico e político:  “Por meio deste livro, espero lançar luz sobre como a lei ajuda a criar riqueza e, ao mesmo tempo, desigualdade. Rastrear as causas raízes da desigualdade se tornou extremamente importante não apenas porque os níveis crescentes de desigualdade ameaçam o tecido social de nossos sistemas democráticos, mas também porque as formas convencionais de redistribuição por meio de impostos se tornaram amplamente ineficazes”.

Bem, é verdade que as transformações sociais passam e se consolidam por meio de uma nova superestrutura jurídica. Mas elas não se se originam aí; como bem se sabe, elas provêm de mudanças substantivas das próprias relações sociais, algo que não acontece sem os movimentos sociais, sem a ação política das classes sociais, sem que se abalada a hegemonia das frações mais poderosas da sociedade.

Eis que as classes em associação e em confronto – dominantes e subordinadas – passam da potência à existência efetiva no próprio processo pelo qual ocorrem as lutas políticas, configurando-se como tais.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).

Referência


Katharina Pistor. The code of capital: how law creates wealth and inequality. New Jersey, Princeton University Press, 2019, 320 págs. [https://amzn.to/3Z2Ji7x]


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