Por FLAVIO AGUIAR*
Restaram os livros esquecidos em bibliotecas andinas, as palavras sussurradas contra o vento da história e o fulgor nos olhos de um morto que a ditadura não apagou. Oscar Ferreira voou, enfim — não como o pardal que salvou na infância, mas como um pássaro que ainda assombra os céus da América
Este conto, uma obra de ficção, no entanto foi inspirado em fatos absolutamente reais. É uma homenagem a um querido amigo, protagonista de uma busca generosa e improvável.
Uma característica da política dos anos 1960 do século XX, foi a progressiva substituição, na esquerda brasileira, da palavra “camarada” pela expressão “companheiro”. “Camarada” era como se designavam os militantes dos Partidos Comunistas, fosse o Brasileiro, moscovita, ou o do Brasil, chinês. Os grupos militantes, deles egressos ou discordantes por se julgarem mais radicais, passaram a usar a palavra “companheiro”.
Eu pertencia a um grupo de militantes que hoje em dia poderiam ser considerados como da velha guarda comunista da linha soviética: éramos “camaradas” no pleno da expressão.
Ou mais ou menos. Digo isto porque nosso comportamento não era muito ortodoxo. Não vestíamos o macacão dos operários, nem tínhamos as mãos calosas do campesinato. Éramos intelectuais, professores, jornalistas, músicos, arquitetos, médicos, um ou outro engenheiro. Não éramos numerosos: uma vintena, no máximo, compunha a nossa célula, mais de reflexão do que de ação.
Reuníamo-nos regularmente uma vez por semana, ora na casa de um, ora na casa de outro. Havia os mais assíduos, entre eles eu. Havia também os esporádicos e os egressos, que por diversas razões abandonaram o grupo, mas a ele mantinham uma lealdade mais nostálgica do que de praxis. Tínhamos nossa ligação com demais membros do Partido. Embora nem todos tivessem registro partidário, era comum o sentimento de pertença ao movimento comunista nacional e internacional.
Depois do golpe de 1964 e da implantação da ditadura no Brasil, passamos a organizar a fuga de militantes perseguidos para os países vizinhos e a Europa, via Montevidéu e Buenos Aires, ou o seu retorno, quando podiam. Ajudávamos mesmo aqueles que tinham rompido com o Partido, integrando outras organizações clandestinas.
Entre estes havia camaradas da velha guarda comunista; mas na maioria eram mais jovens, e se tratavam por “companheiro”, para marcar a distância em relação a nós, que designavam como “acomodados” e “pequeno-burgueses”, assim com o adjetivo inicial no singular, denunciando o que para eles era a estreiteza das nossas convicções.
Para mantermos as oportunidades e rotas de traslado de militantes contávamos com uma rede de informações que envolvia adeptos de nossa causa no país e fora dele, e até com policiais e militares que não queriam compactuar com os crimes da ditadura brasileira e outras.
Em meio àquelas idas e vindas de militantes para lá e para cá, soubemos do destino de um antigo camarada, então naqueles anos 1960 tornado “companheiro”. O nome era Oscar Ferreira, e com suas preferências mais radicais ele atravessaria a linha de Tordesilhas, indo militar nos vizinhos países da América do Sul, onde as lutas guerrilheiras medravam há mais tempo do que no nosso, definido por aquela juventude, mesmo que tardiamente temporã, como “mais atrasado”.
Lembrava-me e lembro-me ainda de seu aspecto, da última vez em que o vi, numa viagem que fiz para fora de meu rincão de trabalho. Tinha uma calva pronunciada, com cabelos grisalhos nas laterais do crânio e por detrás até a nuca. Usava óculos de grossos aros pretos e quadrangulares, com lentes de fundo de garrafa que não disfarçavam o fulgor incomum que neles habitava desde a mais louçã juventude.
Apesar deste brilho nos olhos, não se ocultava o cansaço de seu rosto. Podia ser o preço da viagem que enfrentara para chegar à rodoviária onde eu o vi. Ele não me viu, mas eu, que lá fora para verificar que sua passagem se cumpria, tinha consciência de sua origem e destino. Vinha de algum lugar ao Norte, onde estivera até aquele momento. Rumava para a fronteira, indo juntar-se a companheiros peruanos, bolivianos, e outros cubanos, que planejavam instalar uma frente guerrilheira no coração da América do Sul, sob a liderança de quem, naquele momento, era o ícone máximo da luta revolucionária no mundo inteiro.
Oscar Ferreira tinha uma personalidade marcante e gostos bem definidos. Por exemplo: amava os pássaros. Via em seu voo uma imagem de liberdade. Ainda muito jovem arriscara sua vida, subindo no alto telhado da casa de seus pais, para libertar um pardal que tivera sua asa presa por uma telha traiçoeira. Chovia, o telhado estava escorregadio, ele quase despencou lá de cima. Mas conseguiu libertar o pardal antes que algum gato o alcançasse, soltando-o ao vento com as asas da liberdade.
De volta a minha cidade e a meu grupo de camaradas, relatei-lhes que, como soubéramos e esperávamos, o ex-camarada e hoje companheiro Oscar Ferreira rumava para as selvas, vales, montanhas e altiplanos d’além fronteira. Daquele momento em diante, resolvemos, por unanimidade, acompanhar sua trajetória na medida do possível, graças a nossas redes clandestinas de informação: afinal, embora convertido ao “companheirismo”, que julgávamos um “vírus juvenil do comunismo”, ele fora e continuava sendo um dos nossos.
Assim fizemos durante alguns meses, seguindo a trajetória daqueles guerrilheiros cada vez mais entranhados nos vales e nas grotas ora verdejantes, ora ressequidas das montanhas. Até o dia em que um dos nossos contatos militares nos alertou sobre o agravamento da situação.
Disse ele que até aquele momento os guerrilheiros tinham conseguido sobreviver porque as forças que os combatiam eram despreparadas e não contavam com muitos recursos. Mas que aquilo ia mudar. A CIA tinha decidido acabar com a guerrilha. Rangers dos Estados Unidos, especializados em combate na selva, vinham para a região a fim de treinar as tropas locais, e entrar diretamente na luta. Cubanos exilados em Miami também estavam sendo convocados para neutralizar a liderança dos revolucionários.
E havia o problema da língua. Alguns guerrilheiros conheciam o quíchua e o aimará, as línguas predominantes nos altiplanos andinos. Outros tinham conhecimentos rudimentares delas. Mas nenhum deles dominava os dialetos correntes nos vales profundos que percorriam, nas regiões entre o planalto e as selvas das terras baixas.
Aquelas informações caíram como uma bomba gelada no nosso grupo. Perplexos, nos reunimos numa sexta-feira como habitualmente fazíamos. Depois de debates ora acalorados, ora dominados pelo medo e pela hesitação, chegamos a uma conclusão. Por mais ousado que fosse, era necessário salvar o companheiro Oscar Ferreira: afinal, ele era um dos nossos, um dos mais preciosos dos nossos. Seu passado, seu currículo impunham esta decisão, por mais tresloucada que ela parecesse. Tínhamos de fazer aquelas informações chegarem até ele, convence-lo, pelo menos ele, que devia sair de lá. Pensamos em traze-lo até nós, se necessário fosse.
A tarefa não era nada fácil. A guerrilha sul-americana não contava com apoios, sequer simpatias, por parte de grandes contingentes dos comunistas veteranos, que a viam como uma aventura romântica e sem futuro. Teríamos de agir por conta própria. E sem chamar a atenção dos organismos repressivos. Mas como? Para debater esta pergunta marcamos nova reunião, na próxima sexta-feira.
Passei aquele fim de semana completamente acabrunhado. Pesava sobre mim o sentimento da mais completa impotência. Como resgatar o companheiro Oscar Ferreira, talvez até os demais? Na penumbra de minha biblioteca, cercado pelos livros, eu pensava: nunca toquei numa arma de fogo, tampouco o fizeram meus camaradas daquela célula. Como alertar, ajudar, resgatar aqueles guerrilheiros que seriam encurralados nos vales selváticos do coração sul-americano?
Eu contemplava meus livros, e… de repente, não mais que de repente, eles me assaltaram. Sim, as palavras, os livros, sempre elas e eles foram as nossas armas. E agora o seriam! Sôfrego, na noite daquele domingo chuvoso e melancólico fiz uma chamada para o Rio de Janeiro. Naquela época isto era complicado. Nada de DDD. Era preciso chamar uma telefonista local, que chamava uma telefonista no Rio, que chamava o telefone desejado. E custava uma fortuna.
Meu objetivo era conversar com um velho amigo de nossas tertúlias, que hoje ocupava importante cargo na burocracia cultural do governo. Embora inimigo das ditaduras, ele servia aquela nossa nos anos sessenta, preservando, malgré tout, uma certa autonomia de pensamento e ação. Combinei que eu iria ao Rio encontrá-lo no meio da semana.
Apesar do preço alto de uma passagem de avião, fui, conversei e voltei. Com um plano de ação que expus aos camaradas, na prometida reunião da próxima sexta-feira.
Ousadamente eu expusera meu plano ao amigo burocrata que residia no Rio de Janeiro. Como diretor de um instituto cultural, ele dispunha de verbas para compra e distribuição de livros. Pois eu reuniria alguns estudantes que ajudara a formar, e com eles faria uma excursão para além-fronteiras, levando livros da literatura brasileira que seriam distribuídos às bibliotecas locais das cidades por onde passássemos. Meu amigo residente no Rio de Janeiro conseguiria até uma verba para que alugássemos um transporte, um ônibus, que nos conduzisse na empreitada.
Haveria melhor disfarce? Iríamos resgatar um guerrilheiro comunista, acobertados por uma missão cultural patrocinada pelo governo de direita do Brasil!
O plano foi aprovado com entusiasmo na reunião. E em três semanas empreendemos a viagem: eu, mais uns dez ex-alunos e ex-alunas a quem nada revelei, é claro, a bordo de um antigo Mercedes-Benz alugado. Levávamos no bagageiro uma pletora de livros a serem distribuídos, cartas e mais cartas de recomendação para bibliotecas e bibliotecários das cidades e pueblos por onde passaríamos. e onde semearíamos a literatura brasileira. E lá se foram Machado de Assis, José de Alencar, Lima Barreto, Mário de Andrade, Jorge Amado, Erico Verissimo, Cecília Meirelles, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Simões Lopes Neto, Monteiro Lobato, Olavo Bilac, Gonçalves Dias, Mário Quintana e tantos e tantos outros autores recém convertidos em camaradas ou companheiros de nossa causa e empreitada.
Na memória viajava comigo o nome do camarada de partido que eu deveria procurar em Cochabamba, na Bolívia, por onde, parece, andava o grupo guerrilheiro que queríamos contatar, informar e salvar, junto com o companheiro Oscar Ferreira. Como era um nome de guerra, posso mencioná-lo: Molina. Era quem tinha contato com os guerrilheiros que, como era de costume, andavam em torno daquela cidade e de mais uma vizinha, executando um verdadeiro “8” em torno delas. Eu nem sabia se o companheiro Oscar Ferreira estaria neste grupo, mas era por ali que eu conseguiria uma primeira ponte para encontrá-lo, adverti-lo, resgatá-lo, talvez trazê-lo conosco no ônibus que se tornaria uma arca da salvação.
Levava na memória também o local onde eu deveria procurá-lo: uma das tantas igrejas da cidade, a de San Juan de Dios, do século XVI. Melhor disfarce impossível. Ambas as informações me chegaram através da rede de contatos que nos ajudava a fazer sair do país camaradas e companheiros perseguidos.
Enquanto meus estudantes se ocupavam das bibliotecas escolares e da biblioteca municipal, consegui esgueirar-me até a igreja. Lá estava o camarada Molina, com um cravo branco na lapela, o sinal combinado. Feitos os reconhecimentos através das demais senhas de praxe. eu lhe expliquei meu intento, e ele me fez ver o difícil da situação. Não era claro que o Partido Comunista Boliviano concordasse em me colocar em contato com os guerrilheiros. Muitos de seus dirigentes não concordavam com a guerrilha, vendo nela uma aventura perigosa que desestabilizava o ambiente político do país, atraindo uma repressão mais intensa do que a costumeira.
Insisti. Disse que não se tratava de julgar se esta ou aquela tática estava correta ou incorreta, mas de salvar a vida de camaradas comunistas. Equivocados ou não, eram “compañeros de ruta”. Molina contemporizou. Disse que levaria meu pedido ao Comitê Central de Cochabamba e que me traria a resposta dentro de quatro dias. Perguntei-lhe se ele conhecia algum contato entre os guerrilheiros.
Ele foi evasivo, dizendo que estabelecer tais contatos cabia apenas aos membros do Comitê. Suspeitei que ele mesmo fizesse parte daquele Comitê, mas não queria se identificar como tal. Combinamos um novo encontro dali àqueles quatro dias, na mesma igreja. Eu propus que nos encontrássemos em outra. Ele me dissuadiu. Para melhor disfarçar, era mais sensato bancarmos os devotos da mesma igreja do que circular pela cidade, sob os olhares inimigos que certamente espreitavam.
Felizmente havia muito o que fazer em Cochabamba, em termos de livros, bibliotecas e palestras sobre a literatura brasileira. Foi fácil estender nossa estadia na cidade. Apesar das distrações, passei angustiado aqueles quatro dias. Qual seria a decisão do Comitê Central? Conseguiria eu resgatar o camarada ou companheiro Oscar Ferreira?
E foi assim que na mesma igreja de San Juan de Dios ouvi o camarada Molina dizer que o Comitê Central de Cochabamba vetava um contato meu com os guerrilheiros, mesmo que fosse para salvar vidas, uma vida pelo menos. Argumentei, contra-argumentei, sobre-argumentei. Não adiantou. O camarada Molina estava empedrado: não, não e ponto final.
Fiquei consternado. Não demorou para eu me dar conta de uma disputa feroz dentro do Partido boliviano. Era a luta entre algumas bases que apoiavam a guerrilha e muitas cúpulas que seguiam obstinadamente a orientação contrária de Moscou. E esta condenava a guerrilha, tanto quanto a CIA, embora por motivos diferentes. Em ambos os lados, pairavam os imperativos da Guerra Fria: território de influência era território de influência de um e de outro lado. A Hungria e a Guatemala que o dissessem. Cuba fora uma exceção. A ser encapsulada, não seguida.
E para os camaradas veteranos tratava-se também de uma questão de disciplina partidária. Muitos daqueles dirigentes mais velhos tinham feito a Revolução de 1952, quando com suas dinamites os admiráveis mineiros bolivianos tinham derrotado o Exército. Não era um bando de jovens açodados ou de estrangeiros recém-chegados que iria destroná-los da direção a que tinham direito. Lavrei meu protesto junto ao camarada Molina, mesmo sabendo que era inútil. Aquela pedra não verteria água nem mesmo a marretadas.
Prosseguimos nossa viagem, com os livros, e as palestras. Fomos até o Peru e voltamos por aqueles planaltos gelados, serranias íngremes e densas selvas tropicais. E continuei procurando contatos que me levassem aos guerrilheiros e ao camarada ou companheiro Oscar Ferreira. Sem sucesso.
Num vilarejo perto de La Paz encontrei uma camarada que tivera contato com a guerrilheira Tânia, nome de guerra da argentina Haydée Tamara Burke, mas perdera sua referência. Foi tudo. Tânia Haydée morreria em combate um mês e pouco depois, no final de agosto.
Acabamos voltando para o Brasil sem que eu cumprisse minha missão. Vivi os próximos meses amargando minha dupla decepção. A primeira, pela fracasso no cumprimento do dever que eu me impusera. A segunda, por ver que as quezílias partidárias tinham sua responsabilidade naquele fracasso. Constatei que, de certo modo, fôramos feitos com alguns cacoetes semelhantes aos da direita. Graças a eles as disputas por poder e favores dos (ou fidelidades aos) poderosos informavam práticas e atitudes, tanto cá quanto lá, ainda que por objetivos e valores muito diferentes.
E foi assim que certo dia de outubro daquele ano de tantas aventuras me deparei com a notícia de que o camarada e companheiro Oscar Ferreira fora morto, melhor dizendo, assassinado num vilarejo boliviano. Vi sua foto, estendido num catre sórdido, ele, Oscar Ferreira, nome com que atravessara o Brasil, depois assumindo o de Adolfo Maria ao chegar na Bolívia. Era ele, sem calva nem óculos, barbudo como se tornara famoso, crivado de balas para fingir que fora morto em combate.
Na verdade fora executado sórdida e covardemente por um soldado treinado pelos Rangers, depois de ferido e aprisionado. Cadáver, guardava aquele fulgor nos olhos por sobre o ar baço da morte, fulgor que fora a marca da vida e das fotos dele, o camarada companheiro Ernesto Che Guevara, ele que loucamente tentáramos salvar da armadilha em que caíra e em que sucumbira na Bolivia.
Que restou de tudo isto, além de minha memória, hoje um tanto entorpecida pelo tempo, e a de outros camaradas, companheiros que já se foram para os eternos campos de olvido? Alguns livros em bibliotecas de cidades, vilas e vilarejos nos altiplanos, vales e selvas dos Andes, e como sempre palavras, palavras e mais palavras, aquelas que lembramos, soletramos, sussurramos, murmuramos, falamos, gritamos, erguemos e brandimos, as palavras que mantemos presas na garganta ou que soltamos ao vento, como asas em liberdade.
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]
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