Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES*
Introdução do autor ao livro recém-publicado
Os romances
O Brasil emergiu como país a partir da expansão colonial europeia. Nunca foi uma ilha. É, pois, parte integrante do desenvolvimento desigual e combinado da expansão ocidental. Não é possível interpretá-lo, sob nenhum ponto de vista, separando-o do mundo. É por isso que o principal desafio deste livro é analisar a cultura e, no interior desta, a produção literária brasileira, em relação dialética com as cinco fases de decadência ideológica da civilização burguesa, sendo uma trans-histórica, a do período colonial, que se atualiza sem cessar da seguinte maneira: (i) tornou-se fase colonial capitalista a partir sobretudo da Segunda Revolução Industrial e da Revolução Francesa de 1789; (ii) em função da crise do modo de produção capitalista a partir de 1870, com epicentro na Inglaterra, transformou-se em imperialismo; (iii) após a Segunda Guerra Mundial, impôs-se mundialmente como ultraimperialismo estadunidense. E o que significa períodos de decadência ideológica?
Embora a categoria de decadência ideológica, em interlocução sobretudo com o ensaio de György Lukács, “Marx e o problema da decadência ideológica” (2016), virá a ser objeto de análise mais aprofundada no primeiro capítulo deste livro, em nome da clareza, é preciso ensaiar um esboço de definição. Em convergência com o Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, se a história é um processo aberto, marcado pela luta de classe, isso em linhas gerais significa: (a) que existem classes antagônicas, as que oprimem e as que são oprimidas; (b) que a luta de classes pode ser, sobretudo para as classes oprimidas, consciente e efetiva ou, ainda sob prisma das classes exploradas, inconsciente ou oculta; (c) que, no primeiro caso, a classe trabalhadora disputa, a partir do presente, o seu próprio futuro, com o objetivo de deixar de ser a classe explorada e desumanizada; (d) que, no segundo caso, a classe oprimida acata a ideologia dominante, que é a ideologia da classe que a oprime, referenciando-se no passado e no presente.
Nesse contexto, uma época de decadência ideológica se define como um período em que a luta de classe está ocultada, de modo que a ideologia da classe dominante tende a ser a referência da classe trabalhadora. São momentos históricos de predominância de ideologias reacionárias em que ora o passado se sobrepõe ao presente e ao futuro; ora o presente ampliado ocupa o lugar do passado e do futuro.
Com a expansão colonial europeia, objetiva-se uma luta de classes sui generis, qual seja: a anticolonial, transformada em luta de classes anti-imperialista com o advento da fase imperialista do capitalismo, no final do século XIX. Entre os séculos XVIII e XIX, o Brasil viveu alguns episódios isolados e nem por isso menos dramáticos de lutas de classes anticoloniais, com o exemplo da Conjuração Mineira de 1779; da Carioca de 1794, da Baiana de 1798, da Revolução Pernambucana de 1817, sem esquecer o Quilombo dos Palmares no século XVII, comunidade cuja existência significou a vanguarda mundial da luta de classes ao mesmo anticolonial e antiesclavista, antecipando em mais de cem anos a Revolução Haitiana de 1791.
Entretanto, a partir da fase capitalista e imperialista da expansão ocidental, a luta de classe anticapitalista e anti-imperialista, no contexto da história brasileira, tem sido fundamentalmente inconsciente e oculta, razão pela qual é possível afirmar que a cultura brasileira tem se expressado dominantemente, ao longo de sua história, como decadência ideológica inseparável das ideologias dominantes produzidas nas metrópoles colonizadoras e imperialistas.
Essas ideologias dominantes representam as cinco fases de decadência ideológica da civilização burguesa, que são: (1) a decadência do período capitalista, que tem como data simbólica a tomada do poder do Estado pela Burguesia, em 1789, com a Revolução Francesa; (2) a decadência da fase interimperialista, que se inicia no final do século XIX e perdura até o fim da Segunda Guerra Mundial; (3) a primeira fase de decadência ideológica estadunidense, iniciada por Truman em 1947, com o começo da Primeira Guerra Fria; (4) a Segunda Guerra Fria do ultraimperialismo ianque é o nome geral da quarta era de decadência da civilização burguesa, iniciada para valer em 1991, persistindo ainda hoje; (5) a decadência que diz respeito ao eterno retorno da ideologia do colonialismo, que está presente nas quatro fases brevemente apresentadas, sendo indissociável do estatuto colonial da humanidade, seja em sua versão europeia, que diz respeito ao seu largo período de expansão colonial, capitalista e imperialista; seja em sua versão estadunidense, aqui definida como ultraimperialista.
O autor deste livro, é bom que se diga com todas as letras, defende que a arte literária o é se resiste ou se expressa na contramão do período de decadência ideológica de sua época, que não significa, como se verá no primeiro capítulo, epígono de um período, mas o seu apogeu conquistado pelo domínio econômico e político de uma classe sobre os demais. Sempre considerando as contradições e as possibilidades de erros de avaliação, qualquer produção estético-cultural (um romance, um conto, um poema, uma peça de teatro, uma canção) que não venha a se contrapor, esteticamente, à decadência ideológica de sua época apenas merece ser objeto de análise crítica quando se constitua como um importante registro representativo das tendências ou linhas de força dominantes da decadência ideológica de um país, de uma região, de um período histórico.
E quais obras literárias brasileiras podem ser analisadas como exemplos singulares de resistência à decadência ideológica dominante no período de sua produção? Como não é possível abarcar tudo, sendo necessário fazer escolhas, tais obras narrativas (há muitos exemplos na lírica e no drama), para este livro, são: o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, a ser interpretado como narrativa que se contrapôs à decadência ideológica da ideologia da fase colonial brasileira, antecipando uma crítica satírica das tipicidades humanas protoburguesas do Brasil no período do Segundo Reinado e início da República Velha.
No que diz respeito ao período da segunda fase de decadência ideológica, a interimperialista, o diálogo será com os romances Parque industrial (1933), de Patrícia Galvão, Revolução melancólica (1943, Marco zero I) e Chão (1945, Marco zero II), de Oswald de Andrade, por serem obras que objetivaram, pela forma-romance, a presença de diferentes imperialismos no Brasil, o japonês, o alemão, o inglês, o estadunidense, o italiano, ao mesmo tempo que representaram também a permanência da ideologia do colonialismo, sob novos formatos, dialeticamente amalgamados à fase de decadência ideológica interimperialista.
O romance Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina de Jesus; e PanAmérica, de José Agrippino de Paula, serão os textos literários que estarão na linha de frente da análise da terceira e quarta fase de decadências ideológicas da civilização burguesa. O primeiro, Quarto de despejo, será analisado como registro humano singular da permanência da ideologia do colonialismo e, por meio desta, do racismo estrutural no Brasil, tendo em vista a emergência, na década de cinquenta do passado século, do período de dominação estadunidense, marcado pela decadência ideológica do domínio dos valores de troca ou relações mercantis da sociedade do espetáculo, com a invasão no cotidiano da favela dos programas e notícias radiofônicos, além do sensacionalismo dos jornais impressos.
Não obstante a presença diária dessa cultura de massa tipicamente estadunidense, captura paródica da cultura popular autêntica, a narrativa de Carolina de Jesus se singulariza por demarcar o contraponto dos valores de uso inseparáveis do cotidiano, da solidariedade e da luta pela sobrevivência em um ambiente de adversidade e miséria.
O segundo, PanAmérica, objetiva analisar a estrutura singular desse romance de José Agrippino de Paula, interpretando-a como uma espécie de mimesis paródica da era da epopeia burguesa do hegemon estadunidense, dividido em dois períodos, o da Primeira Guerra Fria, semilaico e protoanarquista; e o da Segunda, puritano, sionista e neopentecostal, com foco, na relação entre o Antigo Testamento e o excepcionalismo biopolítico do american way of life, sem deixar de assinalar que a pós-modernidade – designada hoje como período contemporâneo – é, a rigor, a época da hegemonia do ultraimperialismo estadunidense, marcada pela produção sem fim de estúdios, com a pressuposição de que a própria história humana não passe de efeitos de estúdios cinematográficos, podendo ser permanentemente editada e reeditada.
Os capítulos
O primeiro capítulo desta obra, “Os cinco períodos de decadência ideológica da civilização burguesa: realismo, formalismo e natura lismo”, tem como objetivo a apresentação analítica das categorias de decadência ideológica (com uma discussão sobre o conceito de ideologia), base para a definição de o que venha a ser literatura realista, antirrealista e pseudorrealista, antecipando que a abordagem é marxista e tem como interlocutor fundamentalmente a produção teórico-estética do pensador húngaro György Lukács. A partir daí, inicia-se a análise dos cinco períodos de decadência da civilização burguesa, tendo em vista os seguintes referenciais:
(i) a produção literária do realismo estético é a arte de resistência aos períodos de decadência ideológica em que se inscreve, não sendo, nesse sentido, uma escola ou estilo de época, mas uma forma artística de expressão humana da realidade histórico-social objetiva; (ii) as manifestações estéticas antirrealistas e pseudorrealistas são formas literárias de decadência ideológica, representando a ideologia dominante do período em que são produzidas.
O segundo capítulo, “O estatuto colonial da humanidade e a decadência ideológica do complexo de Arcádia da cultura brasileira”, tem como objetivo apresentar o contexto histórico transversal das decadências ideológicas, em arte, no Brasil, a partir da análise da ideologia de dependência, indissociável da situação histórica de um país que nunca se tornou soberano, tendo sido desde a colonização portuguesa tutelado, submetido, impedido.
A expressão “complexo de Arcádia” confunde-se tanto com a de ideologia da dependência como com a de ideologia do colonialismo, sendo a forma por meio da qual, de modo trans-histórico (enquanto persistir a condição de país dependente), a produção estético-cultural brasileira tende a se manifestar, como fuga da história, como cultura de decadência ideológica; e não apenas na literatura, mas nas produções musicais, cinematográficas, picturais, embora o foco sempre seja a literatura, em seus diferentes gêneros.
O complexo de Arcádia da literatura brasileira manifesta-se sobre tudo de modo antirrealista, razão pela qual tende a ocultar a realidade histórica concreta, sobretudo as condições de vida reais das brasileiras e brasileiros comuns, sem títulos, sem propriedades, sem eiras nem beiras, constituindo-se como a multidão de superexplorados do período colonial de dominação portuguesa, com a tragédia inominável do genocídio indígena e da escravidão negra; da breve época de domínio inglês, hegemônico no Segundo Reinado; da fase interimperialista e também do período de dominação estadunidense, iniciado, de fato, a partir da Segunda Guerra Mundial.
O terceiro capítulo, “A decadência ideológica e a subsunção real ao capital: a era tecnetrônica, o realismo e o ethos barroco”, dedica-se à análise dos bastidores histórico-ideológicos da dominação estadunidense, procurando estabelecer as diferenças entre o sistema colonial capitalista imperialista europeu do ianque, com o cuidado concentrado de descrever, sobretudo no plano cultural, este último, o ultraimperialismo estadunidense.
O quarto, “Realismo e ethos barroco na literatura brasileira”, na interlocução com György Lukács e Bolívar Echeverría, primeiramente relacionará o realismo estético, que objetiva a realidade historicamente constituída, com a categoria do ethos barroco, definido como racionalidade popular que se atém aos valores de uso, resistindo, até para sobreviver, aos valores de troca da era do capital. A hipótese de base é a de que as obras literárias do realismo estético não podem prescindir do ethos barroco nem este pode deixar de lado a importância insubstituível de objetivação do ser social, em sua totalidade dinâmica, local, nacional, mundial.
A seguir, inicia-se a análise do romance machadiano, Memórias póstumas de Brás Cubas, e, ato contínuo, de Parque industrial, de Pagu; de Marco zero I e II, de Oswald de Andrade; de Quarto de despejo, de Carolina de Jesus; e finalmente de PanAmérica, de José Agrippino de Paula, perspectivando-os histórica, cultural, política e economicamente, tendo em vista a presença acumulada das cinco eras de decadência ideológica no Brasil e as diferentes formas de manifestação, para cada fase, da ideologia do colonialismo.
Por fim, o quinto capítulo, “As duas guerras frias e as duas eras de decadência do ultraimperialismo estadunidense: a pandemia”, detém–se na análise das duas fases de decadência estadunidense, a semilaica e protoanarquista, a primeira; a puritana e neopentecostal, a segunda, procurando, ainda que como hipótese, refletir sobre a gravíssima crise atual que atravessa a humanidade, intensificada com a pandemia.
*Luis Eustáquio Soares é professor titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de A sociedade do controle integrado (Edufes).
Referências

Luis Eustáquio Soares. As duas guerras frias e o complexo de Arcádia da literatura Brasileira: Machado, Pagu, Oswald, Carolina de Jesus, José Agrippino de Paula. Vitória, Editora da Universidade Federal do Espírito Santo, 2023. [https://edufes.ufes.br/items/show/688]
Bibliografia
BANDEIRA, Luis Alberto Muniz. A segunda Guerra Fria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
ECHEVERRÍA, Bolívar. La modernidad de lo barroco. México D.F: Ediciones Era, 2000.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nelio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
ENGELS, Friedrich. MARX, Karl. Manifesto comunista. Tradução Álvaro Pina e Ivana Jinkings. São Paulo: Boitempo, 2010.
LUKÁCS, György. Marx y el problema de la decadencia ideológica. In: LUKÁCS, György. Problemas del realismo. Tradução de Carlos Gehard. México: Fondo de Cultura Económico, 1966d. p. 55-110.
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