O contexto da ocupação israelense

Soldados israelenses na Gaza destroçada / Reprodução Telegram
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ILAN PAPPE*

A des-historicização do que está acontecendo ajuda Israel a seguir políticas genocidas em Gaza.

Em 24 de outubro, uma declaração do Secretário-Geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, causou uma forte reação de Israel. Ao se dirigir ao Conselho de Segurança da ONU, o chefe da ONU disse que, embora condenasse com veemência o massacre cometido pelo Hamas em 7 de outubro, queria lembrar ao mundo que ele não ocorreu em um vácuo. Ele explicou que não se pode dissociar nossa preocupação com a tragédia que ocorreu naquele dia e os 56 anos de ocupação israelense de territórios.

O governo israelense não demorou a condenar a declaração. Autoridades israelenses exigiram a renúncia de Antonio Guterres, alegando que ele apoiou o Hamas e justificou o massacre. A mídia israelense se juntou ao movimento, afirmando, entre outras coisas, que o chefe da ONU “demonstrou um grau impressionante de falência moral”.

Essa reação sugere que um novo tipo de alegação de antissemitismo pode estar surgindo. Até 7 de outubro, Israel pressionava para que a definição de antissemitismo fosse ampliada para incluir críticas ao Estado israelense e questionamentos sobre a base moral do sionismo. Agora, contextualizar e historicizar o que está acontecendo também pode provocar acusação de antissemitismo.

A des-historicização desses eventos ajuda Israel e os governos do Ocidente a adotar políticas que eles evitavam no passado devido a considerações éticas, táticas ou estratégicas.

Assim, o ataque de 7 de outubro é usado por Israel como pretexto para praticar políticas genocidas na Faixa de Gaza. É também um pretexto para os Estados Unidos tentarem reafirmar sua presença no Oriente Médio. E é um pretexto para alguns países europeus violarem e limitarem as liberdades democráticas em nome de uma nova “guerra contra o terror”.

Contudo, há vários contextos históricos para a situação atual em Israel-Palestina que não podem ser ignorados. O contexto histórico mais amplo remonta a meados do século XIX, quando o cristianismo evangélico no Ocidente transformou a ideia do “retorno dos judeus” em um imperativo religioso milenar e defendeu o estabelecimento de um Estado judeu na Palestina como parte do caminho que levaria à ressurreição dos mortos, ao retorno do Messias e ao fim dos tempos.

A teologia tornou-se política no final do século XIX e nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial por dois motivos. Em primeiro lugar, ela serviu aos interesses daqueles que, na Grã-Bretanha, desejavam desmantelar o Império otomano e incorporar parte dele ao Império britânico. Em segundo lugar, repercutiu entre os membros da aristocracia britânica, tanto judeus quanto cristãos, que se encantaram com a ideia do sionismo como uma panaceia para o problema do antissemitismo na Europa Central e Oriental, que havia produzido uma onda indesejada de imigração judaica para a Grã-Bretanha.

Quando esses dois interesses se fundiram, eles levaram o governo britânico a emitir a famosa – ou infame – Declaração de Balfour em 1917.

Os pensadores e ativistas judeus que redefiniram o judaísmo como nacionalismo esperavam que essa definição protegesse as comunidades judaicas do perigo existencial na Europa, focando na Palestina como o espaço almejado para o “renascimento da nação judaica”.

No processo, o projeto cultural e intelectual sionista transformou-se em um projeto de colonização por povoamento, cujo objetivo era judaizar a Palestina histórica, desconsiderando o fato de que ela era habitada por uma população nativa.

Por sua vez, a sociedade palestina, bastante pastoril naquela época e em seu estágio inicial de modernização e construção de uma identidade nacional, produziu seu próprio movimento anticolonial. Sua primeira ação significativa contra o projeto de colonização sionista ocorreu com a Revolta de al-Buraq, em 1929, e não cessou desde então.

Outro contexto histórico relevante para a crise atual é a limpeza étnica da Palestina em 1948, que incluiu a expulsão forçada de palestinos para a Faixa de Gaza a partir de vilarejos em cujas ruínas foram construídos alguns dos assentamentos israelenses atacados em 7 de outubro. Esses palestinos desenraizados faziam parte dos 750.000 palestinos que perderam suas casas e se converteram em refugiados.

Essa limpeza étnica foi percebida pelo mundo, mas não foi condenada. Como resultado, Israel continuou a recorrer à limpeza étnica como parte de seu esforço para garantir o controle total da Palestina histórica com o menor número possível de palestinos nativos. Isso incluiu a expulsão de 300.000 palestinos durante e após a guerra de 1967 e a expulsão de mais de 600.000 da Cisjordânia, de Jerusalém e da Faixa de Gaza desde então.

Há também o contexto da ocupação israelense da Cisjordânia e de Gaza. Nos últimos 50 anos, as forças de ocupação impuseram uma punição coletiva contínua aos palestinos nesses territórios, expondo-os à perseguição constante dos colonos e das forças de segurança israelenses, e prendendo centenas de milhares deles.

Desde a eleição do atual governo fundamentalista messiânico israelense em novembro de 2022, todas essas políticas severas atingiram níveis sem precedentes. O número de palestinos mortos, feridos e presos na Cisjordânia ocupada disparou. Ainda por cima, as políticas do governo israelense em relação aos locais sagrados cristãos e muçulmanos em Jerusalém se tornaram ainda mais agressivas.

Por fim, há também o contexto histórico do cerco de 16 anos a Gaza, onde quase metade da população é composta por crianças. Em 2018, a ONU já estava alertando que a Faixa de Gaza se tornaria um lugar impróprio para humanos até 2020.

É importante lembrar que o cerco foi imposto em resposta às eleições democráticas vencidas pelo Hamas após a retirada israelense unilateral de Gaza. Ainda mais importante é retroceder à década de 1990, quando a Faixa de Gaza foi cercada por arame farpado e desconectada da Cisjordânia ocupada e de Jerusalém Oriental após os Acordos de Oslo.

O isolamento de Gaza, a cerca ao seu redor e o aumento da judaização da Cisjordânia foram uma indicação clara de que, aos olhos dos israelenses, Oslo significava uma ocupação por outros meios, não um caminho para a paz genuína.

Israel controlava os pontos de entrada e saída do gueto de Gaza, monitorando até mesmo o tipo de alimento que entrava, às vezes limitando-o a um determinado número de calorias. O Hamas reagiu a esse cerco debilitante lançando foguetes em áreas civis de Israel.

O governo israelense alegava que esses ataques eram motivados pelo desejo ideológico do movimento de matar judeus – uma nova forma de nazismo – desconsiderando tanto o contexto da Nakba quanto o cerco desumano e bárbaro imposto a dois milhões de pessoas e a opressão de seus compatriotas em outras partes da Palestina histórica.

O Hamas, em muitos aspectos, foi o único grupo palestino que se comprometeu a retaliar ou responder a essas políticas. No entanto, a maneira como ele decidiu reagir pode levar à sua própria ruína, pelo menos na Faixa de Gaza, e também pode fornecer um pretexto para uma maior opressão do povo palestino.

A selvageria de seu ataque não pode ser justificada de forma alguma, mas isso não significa que não possa ser explicada e contextualizada. Por mais terrível que tenha sido, a má notícia é que não se trata de um evento que mude o jogo, apesar do enorme custo humano de ambos os lados. O que isso significa para o futuro?

Israel permanecerá um Estado estabelecido por um movimento de ocupação colonial, que continuará a influenciar seu DNA político e a determinar sua natureza ideológica. Isso significa que, apesar de seu autorretrato como a única democracia do Oriente Médio, ele continuará sendo uma democracia apenas para seus cidadãos judeus.

A luta interna em Israel entre o que se pode chamar de Estado da Judeia – o Estado colonizador que deseja que Israel seja mais teocrático e racista – e o Estado de Israel – que deseja manter o status quo – que movimentou Israel até 7 de outubro, entrará em erupção novamente. De fato, já há sinais de seu retorno.

Israel continuará a ser um Estado de apartheid – conforme declarado por várias organizações de direitos humanos – independentemente do desenrolar da situação em Gaza. Os palestinos não desaparecerão e continuarão sua luta pela libertação, com muitas sociedades civis a seu lado, ao mesmo tempo em que seus governos apoiam Israel e lhe concedem uma imunidade excepcional.

A saída continua a mesma: uma mudança de regime em Israel que traga direitos iguais para todos, do rio ao mar, e permita o retorno dos refugiados palestinos. Caso contrário, o ciclo de derramamento de sangue não terá fim.

*Ilan Pappe é historiador e diretor do Centro Europeu de Estudos da Palestina da Universidade de Exeter. Autor, entre outros livros, de Dez mitos sobre Israel (Ed. Tabla).

Tradução: Pedro Paulo Zahluth Bastos.

Publicado originalmente no site da Rede Al-jazeera.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O que significa dialética do esclarecimento?cultura maleta 19/09/2024 Por GILLIAN ROSE: Considerações sobre o livro de Max Horkheimer e Theodor Adorno
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • UERJ afunda em um Rio de crisesUERJ 29/09/2024 Por RONALD VIZZONI GARCIA: A Universidade Estadual do Rio de Janeiro é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras
  • América do Sul — uma estrela cadenteJosé Luís Fiori 23/09/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A América do Sul se apresenta hoje sem unidade e sem qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de fortalecer seus pequenos países e orientar a inserção coletiva dentro da nova ordem mundial
  • A ditadura do esquecimento compulsóriosombra escadas 28/09/2024 Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU: Pobres de direita se identificam com o funk ostentação de figuras medíocres como Pablo Marçal, sonhando com o consumo conspícuo que os exclui
  • Fredric Jamesoncultura templo rochoso vermelho 28/09/2024 Por TERRY EAGLETON: Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Uma carreira de Estado para o SUSPaulo Capel Narvai 28/09/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: O presidente Lula vem reafirmando que não quer “fazer mais do mesmo” e que seu governo precisa “ir além”. Seremos, finalmente, capazes de sair da mesmice e ir além. Conseguiremos dar esse passo adiante na Carreira-SUS?
  • Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?Elenira Vilela 2024 30/09/2024 Por ELENIRA VILELA: Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão
  • Hassan NasrallahPORTA VELHA 01/10/2024 Por TARIQ ALI: Nasrallah entendeu Israel melhor do que a maioria. Seu sucessor terá que aprender rápido

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES