A Doutrina Monroe de Trump

Imagem: Zhang Kaiyv

Por JIANG SHIXUE*

As diretrizes fundamentais da diplomacia chinesa

A estrutura da diplomacia chinesa pode ser resumida a partir de algumas diretrizes fundamentais: a prioridade nas relações com as grandes potências, a atenção especial aos países vizinhos, o fortalecimento dos laços com o mundo em desenvolvimento e o multilateralismo como principal palco de atuação. No vocabulário diplomático da China, o termo “mundo em desenvolvimento” refere-se, sobretudo, aos países subdesenvolvidos ou de menor desenvolvimento relativo situados na Ásia, África e América Latina.

É amplamente reconhecido que as relações entre a China e a América Latina vêm se desenvolvendo rapidamente nos âmbitos político, econômico e cultural. No entanto, essa cooperação de ganhos mútuos tem despertado grande preocupação, desconforto e até mesmo vigilância por parte dos Estados Unidos. Não surpreende, portanto, que diferentes governos norte-americanos tenham se empenhado em conter a presença chinesa na América Latina, ecoando o legado histórico da Doutrina Monroe, concebida para manter potências externas fora do Hemisfério Ocidental. Um caso recente foi a pressão do presidente Donald Trump sobre a CK Hutchison, conglomerado com sede em Hong Kong, para que vendesse seus portos no Canal do Panamá.

A doutrina Monroe

Em 1823, o então presidente dos Estados Unidos, James Monroe, fez um discurso ao Congresso. Parte desse pronunciamento deu origem aos três pilares centrais da Doutrina Monroe: (i) Anticolonialismo: as Américas não estariam mais abertas à colonização por potências europeias; (ii) não intervenção: as potências europeias não deveriam interferir nos assuntos políticos das nações independentes do Hemisfério Ocidental; (iii) neutralidade: os Estados Unidos não se envolveriam em guerras ou conflitos europeus.

No entanto, como muitos apontam, a Doutrina Monroe logo se transformou em instrumento do imperialismo norte-americano, tratando a América Latina como seu “quintal” ou zona de influência.

Em 1904, por exemplo, o então presidente Theodore Roosevelt afirmou que os Estados Unidos tinham o direito de intervir em países latino-americanos em casos de instabilidade econômica, turbulência política ou ameaça de interferência europeia. Essa lógica levou a inúmeras intervenções militares norte-americanas na República Dominicana, no Haiti, na Nicarágua, em Cuba, entre outros, muitas vezes com o objetivo de proteger os interesses comerciais dos EUA. Esse tipo de justificativa ficou conhecido como o “Corolário Roosevelt”, entendido como uma extensão da Doutrina Monroe.

Ainda relevante hoje

É interessante observar que o governo de Barack Obama tentou romper com a Doutrina Monroe como forma de melhorar as relações com a América Latina. Em 18 de novembro de 2013, por exemplo, o então secretário de Estado, John Kerry, afirmou, durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, que a era da Doutrina Monroe havia chegado ao fim.

Declarou: “O relacionamento que buscamos e que temos trabalhado arduamente para promover não se baseia em declarações dos Estados Unidos sobre como e quando intervir nos assuntos de outros Estados americanos. Trata-se de todos os nossos países se enxergarem como iguais, compartilhando responsabilidades, cooperando em questões de segurança e se orientando não por doutrinas, mas por decisões tomadas conjuntamente como parceiros, em prol dos valores e interesses que temos em comum.” Seus comentários foram recebidos com prolongados aplausos dos representantes latino-americanos presentes.

Contudo, após a posse de Donald Trump em 2017, a Doutrina Monroe voltou a ser invocada como instrumento da política externa dos Estados Unidos para manter sua hegemonia na América Latina. Em 2 de fevereiro de 2018, na véspera de uma visita à região, durante uma sessão de perguntas e respostas após um discurso em Austin, Texas, o então secretário de Estado Rex Tillerson afirmou que a Doutrina Monroe “não está morta nem obsoleta”. Segundo ele, esse enunciado do século XIX, que afirma a primazia dos EUA no Hemisfério Ocidental, é “claramente um sucesso” e permanece “tão relevante hoje quanto no dia em que foi formulado”. Rex Tillerson afirmou que os Estados Unidos não a abandonariam porque “a China e a América Latina estão cada vez mais próximas”.

Parceria de ganhos mútuos

A cooperação entre China e América Latina baseia-se no princípio do benefício mútuo e não visa atingir terceiros. Trata-se de um modelo de cooperação Sul-Sul que prioriza o progresso compartilhado em lugar da competição geopolítica. Essa parceria busca o desenvolvimento e a prosperidade comuns, permitindo que ambos os lados aproveitem suas respectivas vantagens para alcançar um progresso mais robusto.

Em primeiro lugar, os investimentos da China em setores como infraestrutura, mineração, manufatura e agricultura têm impulsionado significativamente o crescimento econômico da América Latina, e as relações comerciais com a China têm gerado benefícios concretos para as economias locais. Até mesmo o Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos, um influente think tank, reconheceu: “A China é hoje o principal parceiro comercial da América do Sul e uma importante fonte de investimento estrangeiro direto e de empréstimos para os setores de energia e infraestrutura, inclusive por meio de sua ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota”.

Em segundo lugar, o fortalecimento das relações sino-latino-americanas corresponde ao desejo e à iniciativa de ambas as partes. Na era da globalização, qualquer país soberano tem pleno direito de desenvolver relações com os parceiros que considerar mais adequados. Assim como a América Latina mantém relações comerciais e de investimento com os Estados Unidos, também pode fazê-lo com a China. Da mesma forma, a China tem todo o direito de negociar e investir na América Latina.

Por fim, como essa cooperação tem contribuído para o desenvolvimento econômico da região, uma América Latina mais próspera favorece inclusive os interesses de segurança nacional dos próprios Estados Unidos, ao ajudar a reduzir a migração ilegal e o tráfico de drogas que afetam a fronteira EUA-México. Nesse sentido, os Estados Unidos deveriam reconhecer com gratidão os efeitos positivos das relações comerciais e de investimento entre China e América Latina.

Há quem diga que, se o presidente Monroe pudesse ver o grau de aproximação entre a China e a América Latina, certamente estaria “se revirando no túmulo”. Na verdade, não há razão para tanto.

*Jiang Shixue é professor da Universidade de Estudos Internacionais de Sichuan (China).


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