Por VANDERLEI TENÓRIO*
Em tempos de extremismos e crises globais, o mundo precisa de um Papa que dialogue com o século XXI — e não de um guardião de tradições que já não respondem aos nossos dilemas
1.
Tenho acompanhado com atenção – e até com certo fascínio – a cobertura da eleição do novo Papa. Em meio a transmissões ao vivo, mesas-redondas e programas especiais que mais se assemelham a um boletim eleitoral, há uma pergunta que se repete como um mantra: “Quem o senhor acha que será o novo Papa?” Padres, bispos e cardeais respondem em uníssono, quase como se recitassem um cântico: “O Papa será escolhido pelo Espírito Santo.” A resposta soa automática, pronta, ensaiada – e é.
Mas, aqui e ali, surgem vozes como a de Frei Betto, que rompem com o discurso oficial e lembram que, por trás da fumaça branca, há muita política envolvida. Afinal, confiar exclusivamente ao Espírito Santo a escolha de um chefe de Estado (porque é disso que também se trata) é, no mínimo, uma forma poliana de evitar o debate sobre política e poder dentro da Igreja.
Tenho, evidentemente, respeito pela fé. A ideia de que uma força divina paira sobre o conclave e guia os cardeais na escolha do sucessor de Pedro é, para muitos, um consolo espiritual. Mas, quando analisada com um mínimo de estratégia ou senso crítico, trata-se de uma abstração – para não dizer uma alienação – com um tom quase singelo de interior. Uma bela metáfora que encobre disputas territoriais, alianças geopolíticas, egos inflados e interesses bem terrenos. Negar isso é vestir a batina da ignorância voluntária.
E é esse jogo que me inquieta. Não me preocupa a sobrevivência da Igreja – ela já atravessou impérios, guerras e reformas. O que me preocupa é quem virá. Num tempo em que a extrema-direita avança com força sobre corpos, direitos e discursos; num mundo em guerra, anestesiado e polarizado; num cenário em que a diplomacia virou exceção e o radicalismo, regra – é legítimo temer a escolha de alguém que não compreenda a gravidade do trono que herdará.
Será esse novo Papa alguém capaz de dialogar com o século XXI — como Francisco tentou, mesmo enfrentando resistências internas? Ou assistiremos a um retrocesso discreto, disfarçado de tradição?
2.
O conclave é um tabuleiro de xadrez revestido de veludo, ouro e simbolismo. E, por mais que se repita que o Espírito Santo guia a decisão, espero sinceramente que esse sopro divino também tenha consciência histórica e sensibilidade política.
Enquanto isso, nós, jornalistas seculares, muitas vezes nos prendemos ao espetáculo da fumaça, dos sinos, da guarda suíça imóvel e dos fiéis emocionados – quase como se fossem parte de um conto dos irmãos Grimm. Esquecemos – ou ignoramos – que há pressões reais em jogo: o lobby de diferentes alas, as disputas ideológicas, o peso da América Latina – que Donald Trump encara como seu quintal; da África – que, nas últimas duas décadas, passou a ser estratégica para a China e da Ásia nesse processo.
Soma-se a isso o crescimento das igrejas pentecostais, a crise de vocações, os escândalos de abusos sexuais mal resolvidos e o afastamento das gerações mais jovens da religiosidade institucionalizada.
A cobertura midiática raramente toca nas questões centrais: o papel da mulher na Igreja, a discussão sobre o celibato, a abertura à diversidade sexual, o combate às desigualdades sociais. Também se omite a necessidade de a Igreja lidar com temas urgentes, como a emergência climática – na qual o Papa Francisco foi uma das poucas vozes religiosas a se posicionar com clareza –, a relação com a ciência e o acolhimento de povos indígenas, migrantes e refugiados. Tudo isso deveria estar na pauta do novo pontífice. Mas estará?
O receio é que, diante de tantas forças conservadoras, a Igreja opte por alguém que feche portas em vez de abri-las. Alguém que, em nome de uma tradição rígida, se afaste do mundo e perca a oportunidade de conduzir um rebanho que já não aceita dogmas sem questionamento. Alguém que não perceba que a fé precisa dialogar com o conhecimento, com a justiça social, com os desafios do presente – inclusive com a própria ideia de uma espiritualidade mais aberta, comunitária e comprometida com os dramas da humanidade.
Mais do que a eleição de um líder religioso, o conclave revela o quanto as instituições de poder resistem à transformação. Numa era de transparência, de democracia participativa, de escuta ativa das minorias, a escolha de um Papa ainda se dá sob sigilo, entre muralhas e rituais. Não se trata de banalizar o mistério da fé, mas de reconhecer que o mundo mudou – e a Igreja, se quiser continuar relevante, precisa acompanhar.
O que está em jogo, afinal, não é apenas o nome do próximo Papa. É o futuro de uma instituição que precisa se reinventar se quiser continuar a ser farol em tempos tão escuros. Que venha alguém disposto a ouvir. Que, assim como foi Bergoglio, seja humano. Que seja, de fato, um pastor para o nosso tempo – e não apenas o guardião de uma memória que se recusa a ser questionada.
*Vanderlei Tenório é jornalista e professor de cursinhos pré-vestibulares.
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