O dilema do domínio dos EUA

Imagem: Dan Parlante
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Por JOMO KWAME SUNDARAM*

O governo de Donald Trump quer comer o bolo e ainda tê-lo por inteiro. Pretende fortalecer o império dos EUA, minimizando os efeitos colaterais e os custos adversos da hegemonia

O principal conselheiro econômico de Donald Trump afirmou há algum tempo que o seu presidente enceta uma política tarifária com o objetivo de “persuadir” as outras nações a pagar aos EUA o custo de seu império global na suposição de que ele é benéfico para todas as nações.

O economista geopolítico Ben Norton[i] foi um dos primeiros a destacar a importância do briefing do presidente do Conselho de Assessores Econômicos de Trump, Stephen Miran, no Instituto Hudson.

O Instituto é financiado por bilionários como o czar da mídia Rupert Murdoch, que controla a Fox News, o The Wall Street Journal e outros meios de comunicação conservadores.

Stephen Miran fez a defesa desses pontos logo após a vitória eleitoral de Trump em Um Guia do Usuário para Reestruturar o Sistema de Comércio Global.[ii] Miran tentou mostrar a racionalidade implícita das políticas econômicas de Donald Trump, que são amplamente vistas como estando em desacordo com a sabedoria e a razão convencionais. Na seção final deste artigo, as suas contradições serão apontadas.

Aumentar o domínio dos EUA

Stephen Miran defende as tarifas de Donald Trump como parte de uma ambiciosa estratégia econômica para fortalecer os interesses dos EUA internacionalmente. Elas permitiram uma “mudança geracional no comércio internacional e nos sistemas financeiros”.

“Nosso domínio militar e financeiro não pode ser tomado como garantido; ora, o governo de Donald Trump está determinado a preservá-lo”. Stephen Miran afirma que os EUA fornecem dois grandes “bens públicos globais”, os quais acabam ficando bem “caro para nós”.

Primeiro, Stephen Miran afirma que os gastos militares dos EUA fornecem ao mundo um “guarda-chuva de segurança”, pelo qual os outros países também precisam pagar. Em segundo lugar, os EUA emitem o dólar e os títulos do Tesouro, os principais ativos de reserva para a liquidez do sistema monetário e financeiro internacional.

Stephen Miran parece bem inconsciente das queixas de longa data de outros países sobre o “privilégio exorbitante” dos EUA. O status de moeda de reserva do dólar vem fornecendo renda de senhoriagem para os EUA, enquanto as vendas de títulos do Tesouro há muito financiam a dívida dos EUA a um custo muito baixo.

A defesa de Stephen Miran do trumpismo

A Casa Branca está ameaçando outros países com altas tarifas, a menos que eles façam concessões, às suas próprias custas, beneficiando assim os EUA. A defesa das tarifas de Stephen Miran é indireta; eis que elas fazem parte de uma grande estratégia ostensiva.

“O presidente deixou claro que os Estados Unidos estão comprometidos em permanecer como provedor da moeda de reserva”, acrescentou Stephen Miran. Ele afirma que a hegemonia do dólar americano é “ótima” para todos; ademais, ele nega que “o domínio do dólar seja um problema”.

Embora isso “tenha alguns efeitos colaterais, que podem ser problemáticos”, Stephen Miran “gostaria de… minorar esses efeitos para que o domínio do dólar possa continuar por décadas, para sempre”.

Para Stephen Miran, esses efeitos colaterais são amplamente adversos para os Estados Unidos – ao fazer essa afirmação, ele ignora os benefícios obtidos pelos EUA. Os déficits comerciais crônicos dos EUA foram possíveis porque foram financiados; a contrapartida foi a crescente dívida pública dos EUA; ao mesmo tempo, permitiu que o dólar servisse como moeda de reserva global.

Assim, os déficits comerciais dos EUA têm sido sustentados desde a década de 1960; ou seja, eles não são “insustentáveis”, como ele alega. A indústria dos EUA foi “dizimada” pelas corporações transnacionais, não por uma conspiração estrangeira.

O texto guia produzido por Stephen Miran reconhece como verdadeiro o “dilema de Triffin”. Em 1960, o economista Robert Triffin alertou que o status do dólar como moeda de reserva global representava problemas e riscos para a política monetária dos EUA.

Ele invoca essa tese de Robert Triffin para sustentar que os EUA precisam importar mais do que exportam para fornecer liquidez ao mundo. Eis que os outros países precisam de dólares para realizar comércio internacional e para manter como reservas internacionais.

Stephen Miran adota a narrativa trumpiana de culpar apenas os outros. No entanto, os EUA esperavam se beneficiar dos contínuos superávits comerciais em Bretton Woods. Em 1944, opôs-se a acordos alternativos de pagamentos para impedir superávits comerciais excessivos.

Os déficits comerciais dos EUA cresceram desde a década de 1960 com a reconstrução do Norte Global após a Segunda Guerra Mundial e a “industrialização tardia” desigual no Sul Global.

Os supostos beneficiários do império devem pagar

O governo de Donald Trump quer comer o bolo e ainda tê-lo por inteiro. Pretende fortalecer o império dos EUA, minimizando os efeitos colaterais e os custos adversos da hegemonia tal como foram ventilados acima.

Stephen Miran quer que as nações estrangeiras “paguem a sua justa parte ” de cinco maneiras: (i) “os países devem aceitar tarifas sobre suas exportações para os EUA sem retaliação”. As tarifas são uma compensação; elas vão supostamente financiar uma provisão global de bens públicos fornecida pelos EUA (ou seja, a segurança global e o dinheiro mundial);[iii] (ii) eles deveriam comprar “mais produtos fabricados nos EUA”; (iii) eles devem “aumentar os gastos com defesa comprando armas dos EUA”; (iv) eles devem “investir e instalar fábricas na América”; (v) eles deveriam “simplesmente … nos ajudar a financiar bens públicos globais”, ou seja, a “ajuda externa” proporcionada pelos EUA.

Stephen Miran então enfatiza que Donald Trump “não tolerará mais o caronismo de outras nações”; nesse sentido, ele quer que haja um “melhor compartilhamento de tais encargos em nível global”. “Se outras nações quiserem se beneficiar do guarda-chuva geopolítico e financeiro dos EUA, elas precisam … pagam sua parte justa”, ou seja, o mundo deve “arcar com os custos” de manter o império dos EUA.

Dilemas de Trump 2.0

Donald Trump quer usar tarifas para forçar os países com superávits comerciais com os EUA a comprar mais dos EUA. Contudo, acabar com esses déficits minaria a hegemonia do dólar, a qual, paradoxalmente, Donald Trump quer obsessivamente preservar.

Stephen Miran quer que outros países convertam seus títulos do Tesouro dos EUA em títulos de 100 anos a taxas de juros muito baixas, subsidiando efetivamente os EUA no longo prazo. Ele também quer que as nações com superávits comerciais com os EUA – a serem eliminados – comprem mais títulos do Tesouro dos EUA de longo prazo.

Donald Trump ameaçou impor tarifas de 100% sobre os membros do BRICS e todos os países que promovem a desdolarização ou minam a hegemonia do dólar no sistema monetário internacional.

Durante seu primeiro mandato, Donald Trump queria fazer algo quase impossível, ou seja, aumentar as exportações, preservando um dólar forte!

Stephen Miran reconhece que a “raiz dos desequilíbrios econômicos está na persistente sobrevalorização do dólar que impede o equilíbrio do comércio internacional”. Mas ele também insiste que a “supervalorização do dólar é impulsionada pela demanda inelástica por ativos de reserva”.

Donald Trump agora espera resolver o problema do déficit comercial e do déficit fiscal dos EUA, cortando importações e aumentando a receita com tarifas mais altas. Ele também quer que o mundo continue usando dólares, apesar do orçamento dos EUA e dos déficits comerciais e das incertezas políticas.

Enquanto isso, a dívida oficial dos EUA, financiada pela venda de títulos do Tesouro, continua a crescer. Donald Trump tem que entregar seus cortes de impostos prometidos logo antes que suas medidas anteriores se tornem ineficazes. Donald Trump está caindo em desgraça com sua fanfarronice e pode ter que voltar ao status quo anterior, ao mesmo tempo que nega fazer esse movimento.

Como foi visto, apesar dos esforços de Stephen Miran, ele não conseguiu fornecer uma justificativa coerente para a retórica e para a política de Donald Trump. Contudo, descartar Donald Trump como “louco” ou “estúpido” obscurece o dilema do domínio dos EUA no pós-guerra.[iv]

*Jomo Kwame Sundaram é professor de economia na Universidade Islâmica Internacional da Malásia.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no portal Ideas.

Notas


[i] Norton, Ben – Trump advisor reveals tariff strategy: Force countries to pay tribute to maintain US empire. Endereço: https://geopoliticaleconomy.com/2025/04/10/trump-advisor-miran-tariff-pay-us-empire/?utm_source=substack&utm_medium=email

[ii] Miran, Stephen – A user’s guide to restructuring the global trading system. Hudson Bay Capital, 2024. Endereço: https://www.hudsonbaycapital.com/documents/FG/hudsonbay/research/638199_A_Users_Guide_to_Restructuring_the_Global_Trading_System.pdf?utm_source=substack&utm_medium=email

[iii] N. T.: Na verdade, os EUA gostariam que os outros países reduzissem os preços dos seus bens exportados que foram tarifados – ou que valorizem o câmbio –, arcando assim, implicitamente, com o custo das tarifas.

[iv] N. T.: O autor não torna implícito aqui o que seja em síntese esse dilema. Talvez ele possa ser expresso assim: para sair da crise de superacumulação dos anos 1970, mantendo desse modo ilesa a hegemonia mundial, os EUA tiveram que aceitar a desindustrialização e a ascensão da China como potência concorrente. É preciso lembrar aqui que a indústria é o motor do crescimento acelerado por causa de seus ligamentos para frente e para trás e de seu dinamismo na elevação da produtividade do trabalho. Quando o impulso de crescimento acaba, sobrevém a economia de serviços que é sempre mais lenta.

Contudo, parece que não é apenas isso: (a) os custos militares e não militares da hegemonia não podem ser sustentados sem incorrer num enorme déficit público. E ele precisa ser financiado, elevando assim a dívida pública; (b) Um dólar valorizado é necessário para financiar a dívida pública; ora, em contrapartida, é preciso que ocorram déficits do balanço em conta corrente.

Nessa perspectiva, o argumento de que manter a moeda de reserva mundial tem um custo para os EUA é apenas uma cilada que visa justificar a ofensiva econômica da potência hegemônica sobre o resto do seu império.


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