Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o romance de Eduardo Sens
Um linchamento ocorrido em Chapecó, Santa Catarina, em 1950, é o ponto de partida do romance O fogo do fogo do fogo. Poderia ser apenas um romance histórico baseado em fatos reais, mas Eduardo Sens consegue, de forma engenhosa, criar uma narrativa tensa, totalmente contemporânea, ao inventar um personagem frágil, gago e socialmente inadaptado, que resolve ir em busca do seu próprio passado.
Bartolomeu, um programador de computação que vive em Porto Alegre, recebe a notícia de que sua avó morreu, em Iraí, interior de Santa Catarina. Há três anos longe da família, que se resume à mãe e à avó, enceta a viagem de ônibus para a despedida. Narrado em primeira pessoa, sabemos logo que ele nunca conheceu o pai ou avô. É filho e neto de mulheres solteiras e estigmatizadas por todo o preconceito que ocorre nesse contexto.
Nos pequenos guardados da avó, a mãe lhe entrega um cartão postal, com uma mensagem dubiamente amorosa. O remetente é um padre, e Barto, como a mãe o chama, resolve ir atrás de sua origem. Com prática em pesquisa na internet, logo descobre que o padre Ebbert atuava em Chapecó, município a 80 km de Iraí, na década de 1950, e está diretamente envolvido com o bárbaro evento.
Até certo ponto, Eduardo Sens não está inventando. Promotor de justiça, foi o responsável pelo resgate e transcrição do processo do linchamento de Chapecó, que ele disponibiliza através de um QR Code inserido no livro.
Foi premiado em 2019 pelo romance De quando éramos iguais, pela Academia Catarinense de Letras, e é autor de literatura infantil, obras jurídicas e romances. Como sua colega paulista Maria Fernanda Elias Maglio, defensora pública e escritora premiada com o Jabuti em 2018, utiliza o material bruto com que trabalha para criar ficção de alto nível.
Em linguagem enxuta e condizente com a construção psicológica de Bartolomeu, a narrativa trabalha em planos temporais diferentes, e na segunda metade do livro páginas surge um elemento sobrenatural.
Quando fantasmas começam a seguir o protagonista, formando um cortejo de linchados e linchadores, onde nem sempre está bem claro quem é quem, Eduardo Sens insere sutilmente uma pista. Barto revela que na sua infância o único livro do qual se lembra na prateleira da pobre casa em que nasceu é um de Érico Veríssimo.
Quem conhece a obra do autor gaúcho, logo percebe que não se trata do épico O tempo e o vento, mas do alegórico Incidente em Antares, onde os mortos se levantam do cemitério para “fazer justiça”. De forma habilidosa, Eduardo Sens nos faz compartilhar dos delírios de Bartolomeu, em sua jornada palmilhada até Florianópolis, em busca dos autos do linchamento que teria sido causado pelo suposto padre-avô ao ter a igreja incendiada.
Além da originalidade do argumento, a forma com que o romance é escrito demonstra um autor consciente das ferramentas que utiliza, com as quais recupera um episódio nebuloso e especula sobre as possibilidades e limitações humanas perante crimes e tragédias que parecem, à distância, serem irracionais, mas cujas causas estão muito próximas de todos nós: intolerância, fanatismo religioso, preconceito e o maligno espírito de boiada, que tanto pode causar linchamentos quanto tentativas de golpe de Estado.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência

Eduardo Sens. O fogo do fogo do fogo. São Paulo, Editora Penalux, 2023. 228 págs. [https://amzn.to/44c9sqh]
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