O funeral do Papa Francisco

Missa das Exéquias em intenção de Sua Santidade o Papa Francisco/ Ricardo Stuckert/ PR/ Agência Brasil
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Por EMILIO CAFASSI*

O papa Francisco não desnudou a Igreja: apenas reforçou suas bainhas desfiadas, como quem prolonga a vida de uma vestimenta gasta e manchada, incapaz de abrigar o presente

1.

Na semana passada a atenção do mundo se concentrou em uma única cena: o funeral do Papa Francisco, o nome que o Sr. Bergoglio escolheu (qui sibi nomen imposuit, como estabelece o rito latino). Das redações dos grandes veículos de comunicação até as redações mais modestas, a informação estava subordinada a essa pompa fúnebre.

Na Argentina, onde o peso simbólico da origem foi implantado com força inusitada, como uma releitura emocionada do feito no Qatar, o acontecimento assumiu um caráter quase exclusivo: a agenda pública foi colocada em pausa cerimonial, relegando qualquer outra preocupação às margens do esquecimento.

A cerimônia reuniu uma diversidade raramente vista: sob o ritual de despedida, enquanto o incenso rodopiava no ar frio de Roma, figuras com perfis políticos e ideológicos tão díspares como Trump e Lula, Meloni e Petro, Macron e López Obrador, opostos reunidos pelo réquiem, reuniram-se como peregrinos de uma devoção temporariamente alugada. Os contrastes, longe de se esvaírem, pareciam brilhar no crepúsculo do luto, ensaiando um pacto efêmero entre os antagonismos da história. Como um único homem, morto, consegue conquistar o respeito de figuras tão irreconciliáveis?

Carlos Pagni, editorialista do jornal argentino La Nación, procurou ver nisso, a partir de uma perspectiva indulgente, o “valor exótico do encontro”, uma superação efêmera das fraturas ideológicas que separam a Argentina do mundo. Mas aquele cartão-postal, por trás de sua pátina de solenidade, escondia a carne viva da política: a luta pela visibilidade, o desejo insaciável por destaque. De Javier Milei a Cristina Fernández, cada uma fez seus próprios cálculos, medindo gestos, presença e a projeção de sua sombra na corrida incessante pelo poder.

Não foi a fraternidade que silenciou velhos rancores, mas o frio pragmatismo de saber que estavam diante de um público global. Mesmo na morte, Jorge Mario Bergoglio ofereceu uma plataforma tentadora demais para passar despercebida. E assim, sob o disfarce de uma falsa unidade, os mesmos velhos antagonistas se encontraram diante do mundo, não para curar feridas, mas para perpetuar, sob novas máscaras, a desgastada dramaturgia do poder.

A história argentina, com sua surpreendente capacidade de redimir os poderosos, aperfeiçoou a arte da absolvição. Quando Jorge Mario Bergoglio foi entronizado como papa, uma bula papal tácita, não escrita, mas eficaz, circulou entre as fileiras do kirchnerismo: a do perdão instantâneo, do esquecimento tático, da conversão repentina de um cardeal questionado, segundo Horacio Verbitsky – talvez seu denunciante mais sistemático dentro do partido governante – por seu papel durante a ditadura, como portador imaculado da paz do Vaticano.

Ele foi proclamado “argentino e peronista”, como se a identidade argentina dispensasse indulgências e o peronismo servisse como um sacramento redentor. Hoje, com Javier Milei, algo semelhante está acontecendo: o herege de ontem, a quem ele chamava de “o tolo de Roma, representante do mal na terra”, é vestido por seus próprios detratores com as vestes de um estadista, sob a lógica pragmática do alinhamento circunstancial.

O oportunismo político se disfarça de fé, e a fidelidade se torna uma transação. Assim como toda revisão crítica do passado de Bergoglio foi suspensa para facilitar o milagre geopolítico do papado, os escrúpulos agora estão suspensos diante de um presidente que denegriu os direitos humanos, a educação pública e a memória histórica. A história recente nos lembra que, na Argentina, tribunais e inquisidores não são necessários para a canonização: basta que alguém assuma o centro do palco para que o milagre das pedras transformadas em rosários aconteça.

2.

Entretanto, não foram apenas os mais altos escalões do poder que responderam ao chamado de Roma. Uma multidão anônima, fervorosa e diversa também se reuniu na Praça de São Pedro e nas naves da basílica, como em uma cerimônia antiga onde a emoção coletiva sufoca toda memória crítica. Não é novidade: a morte, assim como a coroação, convoca as multidões aos velhos teatros da submissão.

Em muitas latitudes, súditos de monarquias ocidentais – embora não exclusivamente – ainda celebram acriticamente a pompa e os luxos obscenos de uma linhagem parasitária, forjada nas sombras da Idade Média, que encontra nesses rituais um espelho no qual se reconhece e se perpetua. A Igreja, a seu modo, prolonga esta fábula de majestades e tronos, onde a mirra procura perfumar a podridão dos privilégios e os enfeites cobrem descaradamente as fissuras de um poder que se crê eterno.

No funeral de Jorge Mario Bergoglio, como em toda liturgia de dominação, a magnificência foi encenada não para honrar a humildade evangélica – se é que ela existiu – mas para lembrar aos humildes seu lugar. Talvez até contra a vontade do falecido Papa Francisco, agora despojado não apenas de seu nome original, mas também de sua persistente hostilidade aos movimentos progressistas, como o que exerceu contra os governos kirchneristas do início do século XX em seu próprio país.

Na narrativa triunfante da modernidade, a secularização prometia libertar as consciências do antigo jugo teológico, deslocando o sagrado para o íntimo e relegando as igrejas ao papel de relíquias morais sem poder efetivo. Mas essa promessa era uma armadilha, e a armadilha se tornou uma estrutura. A Igreja Católica – aquela máquina púrpura que abençoou impérios, cometeu e encobriu crimes e pregou a pobreza em palácios de mármore e ouro – não foi superada pela modernidade: ela a atravessou, deformou-a e absorveu-a.

O Vaticano, o núcleo pétreo de uma hierarquia que prega o amor enquanto exclui corpos, decisões e desejos, permanece entronizado no coração político do Ocidente. Sob o pontificado do Papa Francisco, houve gestos, mas não fraturas. Eles beijaram os pés, mas não tiraram os sapatos. Portas foram abertas, mas ninguém as cruzou. A mensagem se tornou um símbolo, e o símbolo, mero consolo.

Enquanto isso, o poder real permanece intacto. O dedo de um conclave cuidadosamente escolhido definirá um futuro não muito diferente do presente sombrio. A modernidade, sonhada como horizonte racional e emancipatório, ainda convive com a superstição institucionalizada do perdão sem reparação ou restituição, da inclusão sem justiça, da pobreza sem renúncia. Onde o mundo se proclamava secular, a Igreja oferecia ritual e espetáculo; onde a razão deveria minar os dogmas, a liturgia triunfou.

A morte de Francisco nos obriga a fazer um balanço: o maior triunfo da Igreja não foi resistir à secularização, mas sim se misturar à modernidade sem abrir mão de um único dogma, rito ou privilégio, nem uma única pedra de sua opulenta arquitetura.

Esta análise não pretende ignorar outras grandes religiões como o judaísmo e o islamismo, que, assim como a Igreja Católica, são – em suas estruturas – misóginas, patriarcais, disciplinares, violentas e objetificantes. Refiro-me às suas estruturas burocráticas e aos valores com os quais hierarquias, exegetas — e às vezes exércitos — buscam disciplinar e controlar seus fiéis. Tento reler Karl Marx com a maior heterodoxia possível, mas ainda não encontro falhas em sua afirmação: a religião continua sendo o “ópio do povo”.

3.

Confesso que, além de todas as reservas que aqui expresso, tive simpatia por ele. Talvez por essa raiz compartilhada que se reconhece sem pensar: ele falava minha língua com o mesmo sotaque portenho. Ele dizia “pibe” e “laboro” até entre cardeais, e não escondia sua paixão pelo futebol. Assim como meu pai, eu recitava de cor as gloriosas formações do San Lorenzo, como se o céu também pudesse ser organizado em desenhos táticos e discussões sobre uma linha de três com um líbero ou os tradicionais dois zagueiros com laterais.

Havia nele um traço do bairro, um eco de uma refeição de domingo que persistia mesmo no cenário excessivo do Vaticano. Embora vivesse num espaço saturado de mármore e ouro, exibia gestos de sobriedade que comoviam: os seus sapatos pretos sem adornos, a sua renúncia a certos símbolos litúrgicos, que, no entanto, nunca desativaram o esplendor estrutural que o rodeava.

Ainda mais porque adotou um discurso ligeiramente progressista, sempre preferível ao ferrenho anticomunismo do Sr. Wojtyla ou à formação juvenil nazista do Sr. Ratzinger, cuja defesa parcial poderia se basear em sua formação filosófica, que o levou a debater até mesmo com Jürgen Habermas, diferentemente do rudimentarismo de seus antecessores.

Em tempos em que a suntuosidade é a norma e o privilégio é ostentado sem pudor, os gestos de austeridade adquirem uma densidade simbólica extraordinária. Tanto o Papa Francisco quanto José Mujica foram reconhecidos por essa rara coerência que nasce da simplicidade: a renúncia ao excesso, a palavra sem eufemismos, a aparência despojada. Em ambos os casos, esses gestos lhes conferiam uma autoridade moral difícil de desafiar, devido ao contraste que ofereciam à obscenidade cotidiana das elites.

Mas essa excepcionalidade contém um paradoxo: que sapatos gastos ou uma casa sem luxos sejam vistos como revolucionários diz mais sobre a estrutura que os cerca do que sobre os próprios homens. A diferença, no entanto, não é pequena: Mujica ainda limpa sua fazenda, cozinha sua comida, lava sua louça. Francisco, por outro lado, habitava um ambiente brutalmente luxuoso, de onde cultivava uma imagem de simplicidade que nunca desmantelava os mecanismos que a tornavam exceção. Ambos renunciaram a privilégios visíveis, mas nenhum deles quebrou as estruturas que os tornavam tão escandalosamente eloquentes.

Talvez seu papado possa ser resumido como o de um alfaiate paciente, dedicado a consertar as batinas surradas de uma instituição que se recusa a jogar seus trapos velhos no fogo. Francisco não rasgava costuras nem desenhava novas vestes: ele consertava, arrumava e escondia fios soltos com gestos sóbrios, enquanto o veludo dourado do poder se desgastava sob o peso dos séculos.

Como costureiro com alma institucional, ela sabia onde aplicar o ponto sem que o corte ficasse perceptível, sem alterar o formato do vestido. Mas nem o linho nem o ouro podem ser renovados com uma agulha fina: eles se deterioram, racham e são comidos pelas traças. E embora seus pontos fossem celebrados – talvez por sua consistência e não pelos resultados – a verdade é que o traje continua o mesmo: pomposo, cerimonial, sem reformas.

O papa Francisco não desnudou a Igreja: apenas reforçou suas bainhas desfiadas, como quem prolonga a vida de uma vestimenta gasta e manchada, incapaz de abrigar o presente.

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Artur Scavone.


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