O governo nas cordas

Foto: Sebastian Voortman
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por LUIS FELIPE MIGUEL*

Considerações sobre o pacote de medidas econômicas.

Parece consenso que o anúncio do pacote de medidas econômicas pelo ministro Fernando Haddad foi uma trapalhada. Os petistas tentam fazer alarde com o aumento da isenção do imposto de renda para R$ 5 mil, como se fosse uma medida revolucionária, mas a verdade é que não cola.

Foi uma pequena tentativa de dourar uma pílula muito amarga – e, além disso, o comando do Congresso já avisou que não vai fazer a medida passar assim tão fácil.

É um pequeno aceno a uma camada que Fernando Haddad chama de “classe média” – remediados que se viram no fio da navalha. A classe média propriamente dita foi excluída, já que a tabela vai reonerar quem recebe acima de R$ 7,5 mil. E os mais pobres perdem com a restrição ao abono salarial (maldade quase gratuita, com impacto fiscal insignificante), redução do salário mínimo e novas regras para o BPC.

O pequeno imposto a ser cobrado dos ricos, se (e esse é um grande “se”) a medida for aprovada no Congresso, é muito pouco para instaurar um regime de taxação progressiva.

O governo Lula rendeu-se à pressão do capital e caminha na direção do austericídio.

Ao reduzir o reajuste real do salário mínimo, reforça a superexploração da força de trabalho e a vulnerabilidade dos aposentados. Caso a regra anunciada por Fernando Haddad estivesse em vigor desde o primeiro mandato de Lula, o salário mínimo hoje estaria em volta de R$ 1 mil – uma perda de quase 30%.

E combater fraudes sempre é bem-vindo, mas as novas regras do BPC penalizam muitas famílias, aquelas que têm mais de uma pessoa em situação de dependência (idoso ou com deficiência).

Parece que a ideia de crescimento com estímulo ao mercado interno, um pilar da política econômica lulista, foi abandonada. Parece que o compromisso de combater a pobreza extrema foi desinflado.

Fernando Haddad e, por conseguinte, Lula abraçaram o fiscalismo e o discurso da redução do Estado, praticamente sem resistência.

A reação do “mercado” mostrou que ainda é pouco. Mas Fernando Haddad já se encontrou com os banqueiros e sinalizou que está disposto a ceder ainda mais.

A alta do dólar foi aquele combo gostoso: pressionar por mais cortes, desgastar um governo que não é considerado plenamente confiável e ainda ganhar na especulação.

Roberto Campos Neto, um bolsonarista desavergonhado, não fez nada para conter o câmbio. Triste foi ver Gabriel Galípolo, seu sucessor indicado por Lula, aplaudindo a inação do Banco Central.

Como o governo vai manter o discurso contra os juros altos com Gabriel Galípolo comandando o Banco Central? Vai ficar claro que é só teatrinho.

Não é só o ajuste. Lula sancionou sem vetos a lei que “disciplina” a farra das emendas parlamentares, aceitando, sem luta, o sequestro do orçamento público pela elite política predatória – logo, a imobilização de seu próprio governo.

Também não é capaz de dar um passo para emparedar o golpismo militar, mesmo em seu momento de maior fragilidade. Preferiu aproveitar a oportunidade para incluir no pacote a redução de alguns privilégios imorais do oficialato, julgando que agora a resistência fardada seria menor. Um recado claro: ajudem no “ajuste” e a gente deixa quieto o golpismo de vocês.

Vão dizer que “com esse Congresso não dá”, que “a correlação de forças é negativa”. Verdade. Mas cadê a lendária capacidade de articulação política de Lula? Cadê sua habilidade para encontrar brechas e construir consensos?

Vemos um governo nas cordas. O pior: sem qualquer ânimo para reagir e esboçar uma defesa de sua base social. Sua liderança está cindida entre um presidente envelhecido, que não está sabendo se posicionar diante de circunstâncias bem diversas daquelas de seus primeiros mandatos, e um ministro da Fazenda que se rendeu completamente à ortodoxia fiscalista.

Com o PT entre rendido e acuado e o PSOL boulista transformado em ala externa do PT, falta uma oposição à esquerda que pelo menos aumente o ônus da adoção de medidas antipovo.

Teria sido melhor eleger Simone Tebet. Pelo menos a gente tinha esperança de que a CUT buscasse alguma mobilização, em vez de se limitar a lançar uma nota anódina.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica). [https://amzn.to/45NRwS2].

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES