O inferno na Terra

Marina Gusmão, Galhos e Frutos
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Por ALFREDO SAAD-FILHO & FERNANDA FEIL*

Um balanço das respostas do Brasil à pandemia.

O Brasil teve uma das piores políticas de controle da Covid-19 do mundo, impulsionadas pelas ações do presidente Jair Bolsonaro. As escolhas políticas do presidente criaram uma tragédia incomparável no país, com implicações potencialmente catastróficas para o mundo. O número de mortes no Brasil vem aumentando incansavelmente, atingindo 4,25 mil em 8 de abril, o maior número de mortes diárias na Terra. Até 20 de maio de 2021, o total de mortes registradas no país passou de 422 mil – correspondendo ao segundo maior total no mundo, atrás apenas dos EUA e da Índia. A situação se deteriorou consideravelmente desde o surgimento de novas e mais contagiosas variantes e novas linhagens do vírus. Só no estado do Amazonas, já foram sequenciados mais de 250 genomas (Iépe, 2021).

O sistema de saúde entrou em colapso em várias cidades, onde o fornecimento de oxigênio é escasso, os leitos de UTI estão totalmente ocupados, falta todo tipo de equipamento e medicamentos, e os profissionais de saúde estão exaustos. Alguns relatos mostram pacientes tendo que ser amarrados para serem entubados por falta de anestésicos. Centenas de pessoas morreram em carrinhos, no chão dos hospitais ou em casa, mesmo quando suas famílias conseguiram adquirir os indispensáveis tubos de oxigênio no mercado paralelo.

Três fatores convergiram para criar este inferno na Terra. Em primeiro lugar, o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta, e desigualdades profundas e sobrepostas criaram intensas vulnerabilidades entre segmentos desfavorecidos da população. Essas vulnerabilidades tornaram-se mais profundas desde o golpe parlamentar/judicial que atingiu a presidenta Dilma Rousseff, em 2016. A pandemia evidencia as vicissitudes de uma sociedade altamente desigual; por exemplo, a Covid-19 afeta as comunidades negras e pobres e os desempregados mais do que o resto da população.

Em segundo lugar, o Brasil sempre sofreu com limitações políticas e institucionais agudas, que também pioraram drasticamente desde o golpe. Os dois governos desde 2016 patrocinaram uma sequência de reformas neoliberais que aumentaram a precariedade do trabalho, pioraram a seguridade social e deixaram os serviços públicos dramaticamente subfinanciados. Essas reformas foram sustentadas pela Emenda Constitucional 55, que congelou os gastos não financeiros do governo federal em termos reais por 20 anos. O novo regime fiscal legitimou cortes brutais de financiamento e a canibalização das instituições do Estado em nome de uma regra fiscal arbitrária. No contexto das reformas neoliberais, o Sistema Universal de Saúde (SUS) brasileiro tem sido degradado nos últimos anos por razões financeiras e políticas.

Em terceiro lugar, o presidente Jair Bolsonaro sistematicamente minimizou os riscos da Covid-19, bloqueou qualquer resposta coordenada centralmente, e atacou dramaticamente prefeitos e governadores quando tentaram impor bloqueios, regras de distanciamento social, uso de máscaras ou quando tentaram adquirir vacinas. Isso inevitavelmente levou a uma colcha de retalhos de regras através do país, inevitavelmente inconsistentes, que Bolsonaro tem usado como argumento contra qualquer forma de restrição. Bolsonaro também obrigou seus ministros da Saúde (quatro no ano desde o incício da pandemia) a se concentrarem em curas falsas (por exemplo, ivermectina e hidroxicloroquina), ao mesmo tempo em que deixava o sistema de saúde implodir.

A única medida significativa para proteger os pobres foi iniciada pelos partidos de esquerda no Congresso, oferecendo o auxílio emergencial de R$ 600 por mês para quase 60 milhões de famílias por cinco meses, e depois prorrogado por quatro meses no valor de R$ 300. Bolsonaro e seu ministro da Fazenda, o envelhecido (e ainda ineficaz) ex-Chicago Boy Paulo Guedes, rejeitaram-no como excessivo. A esquerda forçou a votação no Congresso, e a medida passou como parte de um “Orçamento de Guerra” excedendo as restrições constitucionais. Inteligentemente, Bolsonaro aproveitou o momento, e apresentou a renda como “sua” subvenção, juntamente com outras medidas expansionistas, incluindo novas linhas de crédito para pequenas e médias empresas, o que elevou significativamente sua popularidade. No entanto, com o início do novo ano fiscal o programa de apoio à renda se encerrou, e só foi substituído em abril de 2021 por uma subvenção muito menor de R$ 250 por mês por três meses, condicionada a reformas neoliberais mais profundas da administração pública e mais cortes fiscais em outros lugares.

O comportamento de Bolsonaro pode ser explicado de duas formas. Primeiro, uma abordagem de necropolítica, na qual a Covid-19 é tomada como um fato da natureza que só afeta os fracos e os deficientes. Isso é factualmente errado, mas a política de ressentimentos, rivalidades, conspirações e fake news é típica da atual geração de líderes autoritários, que muitas vezes criam notícias falsas ou deliberadamente fazem declarações mentirosas para criar conflitos, desviar a atenção de assuntos politicamente inconvenientes, ou bloquear políticas alternativas. Em segundo lugar, Bolsonaro afirmou que há uma escolha inevitável entre a proteção da saúde pública por meio de lockdowns, e a proteção da atividade econômica, e que ele defende essa última. No entanto, essa escolha não existe: a experiência internacional mostra que as economias que enfrentaram o coronavírus mais decisivamente tiveram tanto o menor número de mortes quanto as menores contrações da atividade econômica (China, Coréia do Sul, Taiwan, Vietnã). Por outro lado, aquelas que buscaram evitar bloqueios acabaram sofrendo os maiores números de mortes e as piores contrações economicas (Brasil, Itália, Reino Unido, EUA).

A negligência de Bolsonaro com a pandemia também permitiu que o governo se lançasse, praticamente despercebido, uma série de iniciativas que retiraram proteções ao trabalho e ao meio-ambiente, e abriram terras indígenas para a agricultura e a mineração. A pandemia também desviou a atenção de sucessivos escândalos de corrupção envolvendo a família do presidente.

Em resumo, Bolsonaro tem responsabilidade direta pela tragédia brasileira, mas isso é improvável que se deva apenas à sua incompetência, estupidez ou psicopatia, ou à perversidadede seus apoiadores, embora estes sejam fatores contribuintes. Mais importante, porém, é que o presidente promoveu a disseminação da Covid-19 a fim de polarizar a atmosfera política em seu próprio benefício, radicalizar seus apoiadores, e facilitar a implantação de seu programa destrutivo de governo. Enquanto isso, a população foi deixada exposta ao coronavírus, a maior autoridade do país espalha sistematicamente informações falsas e enganosas, e o governo federal se recusa a adotar políticas eficazes de controle da pandemia. O resultado tem sido o acúmulo dramático do número de mortes, uma brutal contração econômica, e o crescente caos social e político. Enquanto isso, as reformas neoliberais, o desmantelamento do Estado e a destruição do meio ambiente permanecem no topo da agenda do governo.

*Alfredo Saad Filho é professor no Departamento de Desenvolvimento Internacional do King’s College London. Autor, entre outros livros, de O valor de Marx (Unicamp).

*Fernanda Feil é doutoranda em economia na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Versão adaptada pelos autores de artigo publicado no portal The Conversation.

 

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