Por RENATO ORTIZ*
O encontro com o judeu negro revela como a tradição e a identidade são paisagens subjetivas, desafiando as fronteiras rígidas da história, da raça e da própria crença
1.
Um encontro bizarro. Sentado no café, na mesa logo atrás de mim, está um homem vestido de terno preto, chapéu preto de abas e um grande xale bege sobre os ombros. Penso: um rabino. Há muitas sinagogas no bairro, é comum ver os religiosos, vestidos a caráter, transitando nas calçadas com suas roupas escuras e os cabelos encaracolados sob o chapéu.
Mas raramente os vejo no shopping, nas lojas ou na praça de alimentação, parecem não se interessar pelas coisas terrenas da vida profana. As mesas estavam muito próximas umas das outras e afastei a cadeira para não o importunar. Para minha surpresa ele virou-se para mim e puxou conversa, achava que eu era judeu, disse-lhe que não.
A partir daí o diálogo deriva para um fluxo incessante no qual me deixo envolver. Ele diz: “quem estava no colo de Maria”, depois da negativa anterior supôs que eu era católico; não esperou pela resposta, a pergunta era retórica, e acrescentou: “Iavéh”. “Mas Iavéh é anterior a Maria, mais de mil anos”, retruquei.
Sorrindo, sem se constranger, ele emendou: “Parece que você sabe das coisas”. A conversa continua sem sobressaltos. Pergunto se ele é rabino, mesmo intuindo que isso não fosse verdadeiro. “Estudo para, mas não posso ser, sou negro”.
Conta que é descendente desses negros judeus que habitavam o Oriente Médio na Antiguidade. Pensei que se referia aos etíopes falashas duramente discriminados em Israel (há toda uma controvérsia teológica se eles seriam merecedores da herança judaica).
Existem várias teorias, ou melhor, fabulações, sobre a origem desses povos que respeitavam o Shabat, rezavam em sinagogas, se alimentavam de comidas kosher, mas que se dedicavam também à prática de sacrifícios de animais.
Seriam oriundos do êxodo do Egito quando um grupo seguiu para o sul em vez de atravessar o deserto de Sinai; ou da destruição do Reino do Norte de Israel pelos assírios (722 a.C.), quando algumas tribos levadas ao cativeiro teriam se separado do ramo principal dos hebreus e se perderam no tempo; talvez, afirma-se ainda, sua ascendência remontaria à existência de uma poderosa nação guerreira proveniente do Egito.
2.
Entretanto, meu interlocutor tinha outra interpretação dos fatos, dizia: “há mais de 8.000 anos, antes dos judeus brancos há mais de 5.000 anos”. Havia algo de excessivo em sua datação histórica: Abraão é de 1700 a.C., Moisés de 1500 a.C. (são datas especulativas). De novo ele se surpreende com minha observação, sem deixar de fluir seu pensamento. “Que cor tinha Moisés?”. “Não sei”.
Os historiadores dizem que muitos personagens da Bíblia são figuras literárias; há em relação a eles um certo agnosticismo, não se pode afirmar com certeza sua existência ou inexistência real. A rigor, isso é pouco relevante, as religiões e os mitos não exigem que seus heróis sejam personagens historicamente autênticos. “Mas ele não era branco, era semita, mestiço”, retruca. “Provavelmente”, concordei.
Certamente os judeus da Antiguidade não eram semelhantes àqueles que hoje conhecemos, mas não é fácil discernir o semblante dessas figuras ancestrais. O judaísmo, como o islamismo e o cristianismo primitivo, em sua luta contra a idolatria pagã, prescrevia a interdição das imagens, isto é, da representação icônica das divindades (o termo técnico para isso é aniconismo). A identificação fiel dos protagonistas míticos se perde assim na opacidade da memória religiosa.
Perguntei então se ele sempre tinha sido judeu, afinal era brasileiro, seus pais não teriam tido outra religião. Sem hesitar disse: “sempre fui judeu”. “Outro dia li que uma dessas celebridades da mídia dizia que todo negro deveria ser macumbeiro. Meus ancestrais sempre foram judeus”. “Você tem razão”, emendei, “um negro pode ter a religião que quiser, ser pianista, artista, pintor, desde que, é claro, tenha oportunidade para isso”.
Ficou satisfeito com a resposta e insistiu em pagar o café. Não era necessário, mas aceitei de bom grado. Ao se levantar da cadeira pegou uma sacola cheia de livros. Pedi para ver. Ele me mostrou, eram obras religiosas editadas em hebreu e português, tradução bilíngue. Folheei as páginas com interesse e admiração.
Sabia que deveria ler as linhas em hebreu da direita para a esquerda, entretanto, em meu analfabetismo, os olhos se estancaram, apenas sorriram; foram ainda invadidos pela falsa sensação de antiguidade, como se as letras diante deles os remetessem à origem dos tempos. Por fim nos despedimos, apertamos as mãos e ele me agradeceu: “obrigado por não ter chamado nem a polícia nem os seguranças por causa de um judeu negro”.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]
Publicado originalmente no blog da BVPS.
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