Por RICARDO IANNACE & OSCAR NESTAREZ
A análise do conto “O lodo”, de Murilo Rubião, recupera o relato de um paranoico (“O caso Schreber”), investigado por Sigmund Freud, bem como a produção cinematográfica de Helvécio Ratton e a pintura de Rembrandt
1.
“O lodo”, narrativa de Murilo Rubião (1916-1991), insere-se em O convidado (1974). Ela traz à baila, curiosamente, uma figuração do “estranho” rarefeita no conjunto da obra desse autor que é, no Brasil, o expoente da vertente do fantástico. Isso porque a intriga admite um aceno considerável a dominantes da literatura suprarrealista do século XIX, no contrafluxo do projeto ficcional do contista mineiro a quem o agenciamento do insólito expressa parentesco com a prosa do Novecentos de Franz Kafka, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, isto é, desassociada dos pilares constitutivos da tradição oitocentista.
Galateu – o personagem central – é atuário na Companhia de Seguros Gerais. A trama, em terceira pessoa, revela a desventura do protagonista acometido por um estado de depressão. Após a primeira e única entrevista terapêutica com o doutor Pink, torna-se vítima da perseguição do psiquiatra, que não economiza ações para convencer o paciente da necessidade do retorno à clínica. O analista enseja dissuadi-lo da recusa às sessões semanais no consultório: “– Você não compreende que o seu inconsciente é todo lodo?” (RUBIÃO, 1998, p. 237). O médico, inclusive, nega-se a receber o cheque ao término do atendimento, asseverando que o montante do embolso deva ser efetuado mês a mês.
De imediato, as respostas de Galateu transmitem rispidez e humor: “– É bom pegar o dinheiro agora, caso contrário darei melhor destino a ele: mulheres” (Rubião, 1998, p. 236). Age com indiferença aos futuros chamados, pois tanto o doutor Pink quanto a secretária da clínica não desistem de contatá-lo. Certo dia chega-lhe uma intimação judicial, onerando-o pelo não pagamento das consultas correspondentes às tardes em que o profissional esteve ocioso, à sua espera, defronte ao divã.
Um sentimento híbrido de repulsa e humilhação irrompe no sujeito sobre quem recai a chancela da inadimplência, que, sem êxito, quando assistido por um advogado, e, a posteriori, malsucedido ante a sentença desfavorável do juiz, precisará abdicar de bens pessoais para a quitação da dívida acidentalmente contraída.
Em contiguidade à má sorte do personagem, uma fatalidade de latitude sobrenatural eclode: Galateu, ao desvencilhar-se de sono agitado, induzido por “dose elevada de barbitúricos”, constata no espelho do banheiro que seu mamilo esquerdo desaparecera. “No lugar despontaria uma ferida sangrenta, aberta em pétalas escarlates.” (Rubião, 1998, p. 238). A “coisa pegajosa”, que ele apalpa antes de se levantar da cama, dera indícios durante o pesadelo, deixando o protagonista em dúvida se a dor no peito seria verídica ou de refração onírica. No sonho, uma “faca penetrava-lhe a carne, escarafunchava os tecidos, à procura de um segredo” (Rubião, 1998, p. 238). Epsila – a irmã – e o doutor Pink assistem à cena tétrica.
Desde então, intensificam-se os tormentos de Galateu, que se afasta do trabalho. A ferida desaparece temporariamente: um farmacêutico prescreve uma pomada que a princípio é eficaz; depois, a chaga e a dor ressurgem, e o boticário, em domicílio, aplica-lhe injeções de morfina.
A irmã e o sobrinho Zeus (a criança apresenta retardamento mental) passam – à revelia do doente – a ocupar a moradia. Epsila proíbe a entrada do farmacêutico na residência e dispensa a empregada da casa. Todavia, demonstra simpatia pelo doutor Pink, com quem fala amiúde ao telefone. Sempre ávido por notícias, ele reclama a oportunidade de visitar o enfermo, que, a contragosto, do outro lado da linha, responde com monossílabos ao psiquiatra.
Por fim, muito debilitado, sem forças para resistir (uma baba de sangue escorre pelos cantos da boca), admite a entrada do analista no aposento empestado, haja vista o mau cheiro da secreção presa à ferida.
Assim termina a história: “Um quarto de hora depois, aparecia o doutor Pink. Circunspecto, abriu o paletó do pijama de Galateu e com o bisturi, retirado da valise, limpou as pétalas da ferida. Epsila, a um sinal do médico, aproximou-se e ambos se debruçaram sobre o corpo do moribundo, enquanto este esboçava imperceptível gesto de asco” (Rubião, 1998, p. 244).
2.
O duplo, como manifestação sígnica, está presente nesse conto. Não por acaso, os passos do protagonista são vigiados pelo terapeuta à saída da agência de seguros, quando o funcionário se dirige ao carro; neste princípio de noite, sua fala é firme, porém nula em convencimento: “– A brincadeira está indo longe demais. O senhor não considera falta de ética aliciar clientes? Devo esclarecer, em definitivo, que as minhas ocupações não me permitem preencher os seus horários vagos.” (Rubião, 1998, p. 236-7).
Permanece eclíptico o porquê do encurralamento a esse homem; some-se a isso, no enredo, a alusão a um sigilo pretérito que, se descoberto, comprometeria a reputação do atuário.
Há sempre, nessa tessitura de pátina sinistra, uma sombra rondante. Tudo aponta para identidadesespelhadas e obscuras: o doutor Pink, em sua tresloucada busca pelo outro, exprime um comportamento singular (a atitude do homem especializado no tratamento de distúrbios mentais é, ironicamente, a que traduz compulsão). De Galateu radiam vultos masculinos de proporção repugnante: ora, a perniciosidade do médico, desmerecendo protocolos (“– Até agora só entendi que o senhor confunde medicina com catecismo.” – é a fala do protagonista); ora, demais contatos malfadados (com advogado, juiz, farmacêutico e criança de laço sanguíneo), a cinzelarem a derrocada do anti-herói.
“O lodo” aponta para deslocamentos. O leitor acompanha essa pressão a que Galateu é submetido – a investida do psiquiatra contra o analisando – e é convidado a intuir que a ferida materializa um desvio de raiz libidinosa (verte do peito o limo que alegoriza a falta moral do passado). Se, de fato, uma experiência de foro íntimo se reverbera metaforizada, parece enquadrada e plausível esta proposição de Clément Rosset em direção ao estatuto do verossímil. Quanto ao “real”, diz o filósofo, “se ele insiste e teima em ser percebido, sempre poderá se mostrar em outro lugar.” (Rosset, 2008, p. 14).
Nesse sentido, o corpo, nessa narrativa, expurga um feito desonroso por meio de lesão purulenta, que desponta e recua. No tocante à intimidade do personagem, a narrativa franqueia encontros clandestinos entre o protagonista e a esposa do chefe, bem como seu desafeto pela irmã e sua repugnância pelo sobrinho, que alcunha de “mentecapto” (o celibatário irrita-se ao ser chamado de pai pelo menino). Em suma e acima de tudo, a trama silencia. E vestígios otimizam o enigma que envolve a úlcera supurada de Galateu.
No respeitante à categoria do duplo, convém recuperar esta inferência de Otto Rank, publicada no seu estudo psicanalítico de 1925: “Em uma porção de casos, isso [o duplo] se confunde com uma autêntica mania de perseguição, ou mesmo é substituído por ela, que então é representada como um consumado sistema delirante paranoico.” (Rank, 2014, posição 540]. O vienense apoia-se, para a formulação dessa sua assertiva, em postulados de Sigmund Freud: no clássico Das Unheimliche (1919), que em português recebeu as traduções de “O Estranho”, “O Inquietante” e “O Infamiliar”, e em “Psychoanalytishe Bemerkungen Über Einen Autobiographisch Beschriebenen Fall Von Paranoia (Dementia Paranoides) [“Observações Psicanalíticas sobre um Caso de Paranoia (Dementia Paranoides) Relatado em Autobiografia (‘O Caso Schreber’, 2011)”].
Um parêntese: em decorrência da necessidade de um recorte epistemológico no campo árido da psicanálise, a leitura de “O lodo” aqui empreendida se aterá – sumária e exclusivamente – às páginas freudianas pautadas pelo testemunho escrito do jurista Daniel Paul Schreber, cuja experiência desconcertante culminou em Memórias de um doente dos nervos (1903) — obra de referência no continuum da investigação psicótica e com vistas à qual o pensador austríaco compôs seu ensaio.
Schreber, um advogado de alto prestígio no tribunal de justiça em que atuava, após sofrer derrota em eleições parlamentares, é, em 1884, internado pela primeira vez na clínica do professor Flechsig com diagnóstico de hipocondria (afora as crises de delírio e as duas tentativas de suicídio, ele desenvolvera a ideia fixa de que emagrecia). Junte-se a isso o desgosto profundo por não ter sido pai – a esposa sofrera mais de um aborto.
Passados alguns anos, quando restabelecido psicologicamente e agraciado com promoção na carreira forense, dá-se a recaída: além de sonhos desestabilizadores que anunciavam o retorno de sua doença, teve, “no início de uma manhã, num estado entre o sono e a vigília, ‘a ideia de que deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito’, uma ideia que ele, em plena consciência, teria rejeitado com indignação.” (Freud, 2010, p. 18). À época, o jurista contava com 51 anos – fase crítica da virilidade, assinala Freud, conhecida como climatério.
Devido ao agravamento do quadro clínico, Schreber volta a ser internado – ideias hipocondríacas acentuam-se; diz o paciente que seu cérebro amolece, convencendo-se de que morreria em breve. Ele xinga várias pessoas, vendo-as como perseguidores, “sobretudo seu ex-médico, que chamou de ‘assassino de alma’.” (Idem, p. 19). Nas especulações de Freud, ganham realce as ocorrências segundo as quais esse delirante alega que uma “missão redentora” determina sua “transformação em mulher”, tendo a “sensação de que já penetravam em massa no seu corpo ‘nervos femininos’, a partir dos quais nascerão novos homens, por fecundação direta de Deus.” (Idem, p. 24).
Ou seja: metamorfosear-se em mulher (emasculação) correspondia preliminarmente a um delírio “de perseguição sexual” que “foi posteriormente transformado, para o paciente, em delírio de grandeza religiosa. O perseguidor era inicialmente o prof. Flechsig, o médico que o tratava, depois substituído pelo próprio Deus.” (Idem, p. 25). Vale lembrar que Schreber, em sua autobiografia, ao sublinhar os tais nervos inerentes ao corpo de mulher que se lhe impõem, confia atenção à volúpia feminina nos seios que desabrocham.
Freud não ignora, no registro das memórias do juiz-presidente, a recuperação das imagens do irmão e do pai (o renomado cirurgião Daniel Gottlob Moritz Schreber), apreendendo-as como um “processo de transferência”, de início, imbuído de certa simpatia do paciente para o professor Flechsig; avante, contudo – sintetiza o psiquiatra austríaco –, assiste-se a uma manifestação de homossexualidade passiva “que tomava por objeto a pessoa do médico. (…) O indivíduo ansiado tornou-se o perseguidor, o conteúdo da fantasia de desejo tornou-se o conteúdo da perseguição.” (Idem, p. 64).
3.
Salvaguardadas as singularidades de cada relato, os “fantasmas” que desestabilizam Galateu parecem encontrar ecos no caso paranoico de Schreber. Embora, em “O lodo”, seja sutil a referência a um comportamento hipocondríaco, o protagonista se identifica como depressivo e faz uso de sedativos para dormir; a ideia de perseguição (concreta ou ilusória) está veementemente inscrita no conto.
Acrescentem-se a isso outros elementos que permanecem registrados nas memórias clínicas do juiz alemão e respingam no texto de Murilo Rubião: de chofre, a relação enviesada, oblíqua, entre terapeuta e analisando (este repudia o especialista); a sugestiva homoafetividade do psiquiatra de “O lodo” (de mais a mais, o homem que denota obsessão pelo outro se chama Pink); Galateu e a autoafirmação de sua masculinidade (é amante da esposa do patrão e diz ao médico que seu dinheiro seria bem gasto com mulheres); as feridas (cujo contorno imita “pétalas escarlates”) deflagram nos mamilos do protagonista, isto é, em região do corpo identitariamente feminina.
A obra é adaptada para o cinema pelo diretor Helvécio Ratton; chega às telas em abril de 2023. O drama, filmado em Belo Horizonte (MG), busca fidelidade ao texto muriliano. Entretanto, entre as particularidades do longa-metragem, está o fato de o personagem central, na interpretação de Eduardo Moreira, chamar-se Manfredo, e de o ator Renato Parara, que incorpora o dr. Pink, insinuar a homossexualidade – haja vista um ou outro trejeito delicado e o vestuário pomposo.
Diferentemente do conto, o longa-metragem induz à revelação do segredo do protagonista; trata-se do incesto praticado na juventude, redundando na gravidez de Epsila e no nascimento da criança com perturbação mental — fruto da cópula entre irmãos. Na película, tem-se a cena da nudez da moça: corpo viçoso, escultural, exibido à luz do dia e à entrada de um quarto vazio, à esquerda de corredor cuja parede frontal estampa um crucifixo.
O lance se oferece como uma recapitulação (a Epsila de ontem contrasta com a de hoje: o tempo teria esculpido marcas fundas, intensas, nessa mulher). E a cruz de madeira dependurada aparece como signo polissêmico: advertência litúrgica de pecado, culpa, castigo, além de figurar como analogia às narrativas de Murilo Rubião que se abrem, copiosa e tradicionalmente, com uma epígrafe bíblica.
Na produção de Helvécio Ratton, a fachada do edifício luxuoso da clínica do dr. Pink é, de modo excêntrico, preenchida por versículos extraídos das Escrituras Sagradas. Em resumo, o contista mineiro faz-se reverenciado graças ao resgate de dominantes da sua literatura. A rotina envolta à burocracia do mundo do trabalho e ao compasso da residência também vem a lume: a ida ao escritório, os encargos, a chegada em casa, o jantar, a dormida – e sobre a mesinha de cabeceira, no quarto, revistas masculinas Playboy.
4.
O fardo na obra de Murilo Rubião avulta de maneira eminente. Nessa perspectiva, “O ex-mágico da taberna minhota” (O ex-mágico [1947]) é emblemático: tanto a repetição de façanhas pirotécnicas quanto a labuta reiterativa no seio da repartição pública entediam o personagem e levam-no à tentativa malograda de suicídio. Dá-se que, nesse e em outros entrechos, o ciclo de tarefas maçantes logra uma compleição hiperbólica.
Nesse grupo de intrigas, há enredos cujo tônus do exagero rubrica a verve insólita do ficcionista. “O edifício” (Os dragões e outros contos [1965]) ilustra essa empresa. Um arranha-céu cresce desgovernadamente: construtores hasteiam as plataformas que ultrapassam o octingentésimo andar e, às cegas, ignoram a ordem de trégua imposta pelo engenheiro-chefe, que, tomado pela fúria, “[…] desmandava-se em violentos insultos. Mas estes vinham vazados em tão bom estilo, que ninguém se irritava. E, risonhos, os obreiros retornavam ao serviço, enquanto o edifício continuava a ganhar altura.” (Rubião, 1998, p. 167).
Em travessia paradoxal, a nascente do desdobramento jorra de uma redação sintética (o autor persegue a concisão – seus textos são enxutos e reescritos com tenacidade no encalço do apuro gramatical), e esse feito, por exemplo, pode ser averiguado em “Bárbara” (O ex-mágico [1947]): a personagem engorda desmesuradamente, ganhando peso na proporção dos pedidos estapafúrdios que faz ao cônjuge (um baobá, um transatlântico, uma estrela); o mesmo a aferir de “Teleco, o coelhinho” (Os dragões e outros contos [1965]), mamífero travesso e dotado da surpreendente capacidade de transmutar-se, metamorfoseando-se conforme a sua conveniência (modifica-se em cavalo, canguru, pavão e incontáveis animais); e “Aglaia” (O convidado [1974], em que a protagonista engravida e, em abundância, dá à luz dezenas e dezenas de crianças, mesmo sem consumar a relação sexual com o marido.
Se, nessas escrituras, imperam o transbordamento, a multiplicação, em “O homem do boné cinzento” (O ex-mágico [1947]) incide a contração, ao invés da dilatação – subtração, e não adição. Anatólio emagrece, definha inexplicavelmente, até atingir a transparência: “Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins.” (Rubião, 1998, p. 74). Decerto, essa ironia e esse sarcasmo, a admitir que a retórica do fantástico e do realismo maravilhoso se fricciona com extravagância, dinamizam a fatura do escritor vinculado ao insólito do século XX.
Acontece que “O lodo” segue uma via autônoma, díspar – aliás, a trama não foi reeditada. Talvez Murilo Rubião antipatizasse com o conto. O que lhe teria desagradado? O enunciado ou a enunciação? Ou ambos? Sem dúvida, o fantástico que codifica essa narrativa encontra ressonância no Oitocentos, o que a singulariza em relação a outras intrigas do autor.
Interpreta-se o termo fantástico, neste caso, não como categoria ou modo, consoante David Roas e Remo Ceserani (acepção de maior amplitude que abarca outros gêneros, os quais se servem de estratégias do implausível); em “O lodo”, a expressão do fantástico aponta para o gênero, conforme determinado pela seminal definição de Tzvetan Todorov. Isto é, os estruturantes e os tópicos do conto de Murilo Rubião colocam-no em diálogo direto com algumas narrativas do século XIX que serviram de corpus para Todorov formular sua Introdução à literatura fantástica.
A pièce de resistance do ensaio é Manuscrito encontrado em Saragoça (1810), romance escrito em francês pelo polonês Jan Potocki; nessa prosa, a hesitação – resposta-chave apontada por Tzvetan Todorov para que se estabeleçam o efeito e o gênero fantástico – entre a explicação lógica e o impossível se faz preponderante nas aventuras vividas pelo jovem Alphonse em uma cordilheira na Espanha.
Postula o teórico franco-búlgaro que, na obra de Potocki, o extraordinário se manifesta sem jamais deslizar para o estranho ou o maravilhoso – gêneros, segundo ele, avizinhados do fantástico. Com a mesma concepção, Tzvetan Todorov confia leitura a textos de Villiers de L’Isle Adam, Jacques Cazotte, Gerard de Nerval, Prosper Mérimée, Guy de Maupassant e E.T.A. Hoffmann, entre outros, sempre buscando (e encontrando) esta prevalência da dúvida nas tramas ambíguas de tais ficcionistas – obras que a posteridade, amparada nos próprios preceitos todorovianos, fez pertencê-las ao fantástico oitocentista.
Afigura-se, pois, como marca distintiva dessa lavra a excedência da subjetividade (ressonância do romantismo coetâneo ao gênero), que coloca em xeque a percepção da realidade. Delírios, paixões inebriantes, sonhos que atravessam a vigília, transtornos psíquicos e consumo de psicotrópicos são alguns catalisadores do fantástico em narrativas emblemáticas como A Vênus de Ille, Aurélia e O diabo apaixonado.
Ora, semelhantes elementos são perceptíveis na jornada de Galateu, tanto em termos intradiegéticos (o protagonista passa a desconfiar de tudo que o cerca) quanto no que se refere a destinatários intratextuais: nós, leitores, a quem as dúvidas também acompanham até o final da leitura.
O caráter lacunar e elusivo da tessitura muriliana acentua este efeito fantástico, sem prescindir da atrição inerente ao conflito do ordinário com o impossível: Galateu reage à irrupção do fantasmagórico em sua vida, metaforizado pela substituição de um mamilo por uma ferida (veja-se: ferida com parecença de “pétalas”, o que poderia ser comparada à vulva, em seus lábios maiores e menores, com secreções lubrificantes).
Por outro lado, a condição psíquica da personagem, aparentemente frágil – motivo pelo qual se potencializa a fabulação inerente ao assédio do dr. Pink –, borra os contornos de suas percepções: torna-o uma testemunha pouco confiável daquilo que lhe sucede.
No âmbito temático, as diferentes figurações do duplo em “O lodo” também aproximam o conto da cepa oitocentista do fantástico. Em uma dimensão mais abstrata, as sombras que permeiam a ruína de Galateu sem jamais abandoná-lo remontam à inexplicável entidade que batiza a novela O Horla, de Guy de Maupassant; já em um plano concreto, o doutor Pink, em sua obsessão pelo protagonista, evoca a figura especular de William Wilson (1839), de Edgar Allan Poe, a corroborar a decaída do narrador e protagonista.
Há ainda, entre os contos de Edgar Allan Poe e Murilo Rubião, um relevante paralelo: tanto Galateu quanto William Wilson são personagens de moral e caráter problemáticos. São, por essas distorções e cada um à sua maneira, monstruosos. Suas respectivas duplicações se exprimem apenas para reforçar tal fato, trazendo, à luz, o lodo que os constitui e com o qual ambos não são capazes de viver.
5.
Sombrio, sinistro – esses apanágios condizentes com a manifestação estético-literária aqui revisitada plasmam, indubitavelmente, o epílogo de “O lodo”. Galateu, estirado na cama, em situação deplorável, com sua chaga à mostra (espectro de contemplação), admite lembrar um dos retratos mais célebres da história da arte: A lição de anatomia do dr. Nicolaes Tulp, óleo sobre tela do holandês Rembrandt van Rijn, datado de 1632.

Óleo sobre tela, 169,5 x 216,5 cm
Haia, Mauritshuis
Fonte: SCHNEIDER, 1997, p. 163.
Essa pintura emblemática do barroco europeu, em que a técnica do claro-escuro prepondera, inscreve – como bem registra o título do quadro – um ensinamento no campo da fisiologia. Lê-se em compêndios que o cadáver examinado pelo mestre anatomista era de um criminoso executado. Cabe sublinhar que recai sobre o professor uma claridade diferenciada – ela é tênue e legitima o prestígio desse profissional para quem se dividem os olhos dos discípulos. Um deles anota; os demais se inclinam para melhor compreender o procedimento do mestre que disseca, com uma tesoura, um ventre anônimo.
Em outras palavras: “A formalidade oficial de que se reveste a lição ministrada pelo Doutor Tulp advém do fato de ser ele a única personagem que usa chapéu, destacando a luz magistralmente sobre sua pessoa, em certos pontos significativos, como as mãos, o rosto e o colarinho.” (Sánchez, 2007, p. 25). O espaço fechado (seja o estúdio, seja o dormitório) encerra o foco de atenção que incide na matéria física e mórbida, ou melhor, no corpo horizontalmente exposto, a inspirar aproximações.
Porque o sonho premonitório de Galateu, segundo o qual uma lâmina lhe penetrava “a carne, escarafunchava os tecidos”, sendo esse instrumento (fálico?) cortante e introduzido pelas mãos de um homem (o médico) e assistido por uma mulher (Epsila) que teria, na juventude, copulado com o irmão, tudo, enfim, endossaria a conversação com O caso Schreber.
Em suma: um desejo reprimido se faz refletido na perseguição e na dominação física de certa autoridade do sexo masculino… Um painel cuja remissão, ironicamente, é à ciência na sua insígnia de certezas; um painel, pois, cuja remissão, ironicamente, é à sombra e à fenda em estado e contexto psicopatológicos.[i]
*Ricardo Iannace é professor de comunicação e semiótica na Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico (Edusp). [https://amzn.to/3sXgz77]
*Oscar Nestarez é escritor e tradutor. Pós-doutor em literatura pela Universidade de Alcalá (Espanha). Autor, entre outros livros, de Bile negra (Pyro).
Referências
CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.
FREUD, Sigmund. “O inquietante”. In: Obras completas, v. 14. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
_____. “Observações Psicanalíticas sobre um Caso de Paranoia (Dementia Paranoides) Relatado em Autobiografia (“O Caso Schreber”, 2011). In: Obras completas, v. 10. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
RANK, Otto. O duplo. Um estudo psicanalítico. Trad. Erica S. L. F. Schultz et. al. Porto Alegre: Dublinense, Edição digital: 2014.
ROAS, David. A ameaça do fantástico. Aproximações teóricas. Trad. Julián Fuks. São Paulo: Unesp, 2014.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Trad. José Thomaz Brum. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008.
RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. São Paulo: Ática, 1998.
SÁNCHEZ, Laura García. Rembrandt. Trad. Mathias de Abreu Lima Filho. Coleção gênios da arte. Barueri-SP: Girassol; Madri: Susaeta Ediciones, 2007.
SCHNEIDER, Norbert. A arte do retrato. Obras-primas da pintura retratista europeia (1420-1670). Trad. Teresa Curvello. Lisboa/London: Taschen, 1997.
SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Todavia, 2021.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
Nota
[i] Este texto foi originalmente publicado com o título “O caso Galateu e a anatomia do duplo em “O lodo”, de Murilo Rubião”, na Revista USP, São Paulo, no. 142, p. 163-172, jul./ago./set. 2024.
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