a terra é redonda

O mal-estar da mídia mainstream

Por Flavio Aguiar*

Não dá para
esconder o relativo amargor com que a mídia mainstream
internacional vem recebendo as notícias que emanam da América Latina. Por vezes
este amargor vira má-vontade explícita: para esta mídia desde logo o foco das
notícias bolivianas foi a declaração oposicionista do candidato derrotado,
Carlos Mesa, de que houvera fraude na contagem, ao invés da vitória da
situação.

Também mereceram
destaque afirmações de diplomatas pró-Estados Unidos da Organização dos Estados
Americanos (OEA), colocando em dúvida o resultado da eleição ou ainda dizendo
que, embora Evo Morales tenha vencido por uma diferença maior do que 10% dos
votos em relação ao segundo colocado (Mesa), a margem de superação daquele
percentual fora tão pequena (menos de 1%) que seria recomendável a realização
de um segundo turno – mesmo que isto contrarie a lei eleitoral boliviana, que
garante a vitória de Evo no primeiro turno.

Há outras
contrariedades para esta hegemonia de preceitos neoliberais que detém a
hegemonia dentro desta mídia mainstream
internacional, que também impera nos Estados Unidos, é óbvio. A menina
sul-americana dos olhos dela sempre foi o Chile pós-Pinochet, apresentado como
o país mais bem sucedido na região, graças à implantação do credo derivado da
escola econômica ultraliberal dos “Chicago Boys”. Embora este aparente sucesso
não enganasse ninguém à esquerda desde há muito tempo, para aquele pensamento
hegemônico “de repente, não mais que de repente”, aquela imagem de uma Suíça
andina e hispano-hablante desmoronou.

O que emergiu,
para desgosto daqueles “bem pensantes”, foi a imagem de um país brutalmente
desigual, devastado por privatizações de tudo, com idosos miseráveis devido a
um sistema de aposentadorias privado e inócuo, embora lucrativo para as
finanças privadas, com preços abusivos no ensino público que endividam os
estudantes durante 10 ou 15 anos, e ainda às voltas com uma repressão policial
que lembra os tempos de Pinochet. Tudo isto se ergueu das chamas que engolfaram
o país – algumas delas provocadas por agentes repressores, segundo vídeos que
circulam na internet. Como apregoa um destes vídeos, a diferença entre hoje e 1973
é que cada cidadão carrega consigo uma câmara ou telefone que registra tudo –
inclusive policiais cheirando cocaína antes de partirem para a violência ou
outros, mesmo que disfarçados, se aprestando a tocar fogo em prédios públicos,
supermercados e bancos.

Já antes afundaram
o Equador do converso Lenin Moreno e o Peru, além de mais uma vez o Haiti. E no
ano passado este mesmo pensamento neoliberal teve de amargar a derrota de seu
candidato no México e a vitória do “populista” Lopez Obrador.

Entretanto o
mal-estar não acaba aí. Quatro anos atrás a vitória de Mauricio Macri na
Argentina fora saudada como “o fim do populismo”. Agora, esse “populismo” deve
voltar à tona, seja no primeiro ou no segundo turno, diante do rotundo fracasso
das políticas econômicas de Madri que devastaram o país, elevando o percentual
de pobres e miseráveis e minando até mesmo sua base de classe média.

Mais dois outros
problemas para esta mídia, embora de natureza diferente: na Venezuela, Guaidó
não conseguiu derrubar Maduro; no Brasil a condução de um ministro
ultraneoliberal ao poder, Paulo Guedes, cujo programa de “reformas” destinado a
arrasar o Estado brasileiro e o poder aquisitivo da maioria da população pode
agradar ao establishment financeiro
europeu, é contrabalançada por seu chefe e acompanhante Jair Bolsonaro, cujos
arroubos de extrema-direita, imbecis, misóginos, homofóbicos,
anti-meio-ambiente, etc., bem como os de sua família e de sua corte próxima,
escandalizam as almas mais conservadoras, desde que não de pendor fascista ou
de admiração por Trump e de suas também atrocidades políticas.

Há mais. Mesmo
na Europa os preceitos neoliberais, que chegaram a tomar conta dos partidos socialistas,
socialdemocratas ou verdes, que aplicaram seus preceitos sem dó nem piedade
sobre as classes trabalhadores aturdidas. começam a mostrar sinais de amplo
naufrágio. Uma das mais contundentes evidências deste fracasso é o que esta
acontecendo nos países do antigo Leste geopolítico europeu.

As manifestações
populares (chamadas de “revoluções”) que puseram fim aos regimes comunistas
depois da queda do Muro de Berlim e a desarticulação da antiga União Soviética
despertaram imagens de uma idílica emergência de democracias no melhor estilo
europeu ocidental naquela região. Esta “visão do paraíso” revelou-se um
patético engano. Ao invés dela, o que predominou foi a emergência e
consolidação de partidos despóticos e repressivos, como no caso da Hungria e da
Polônia, ou então de governantes ávidos pelas benesses dos investimentos da
União Europeia sem a contrapartida de uma melhoria substantiva na qualidade da
administração e na democratização do espaço público. Novos ricos empoderados se
apropriaram das maiores fatias de propriedades ou das finanças.

As desigualdades
aumentaram, a pobreza em muitos casos também. No caso talvez o mais grave, o da
Ucrânia, houve um quase desmembramento do país. O êxodo atingiu em cheio muito
deles, arrastando multidões (sobretudo de jovens) em direção ao Ocidente, que
parecia um paraíso ao alcance da mão, ou de uma passagem de trem, ônibus ou
avião. Este último fato levou a um “envelhecimento” da política, que ficou
oscilando entre um conservadorismo enrustido, por vezes catolicamente carola, e
um saudosismo dos tempos do antigo regime que, como é de costume, teve suas
mazelas diminuídas e suas benesses aumentadas nas visões decepcionadas com o
presente e desesperançadas em relação ao futuro.

Como se isso não
bastasse, a própria Europa ex-Ocidental passou a ser assediada por uma
extrema-direita xenófoba, galvanizando o sentimento de desamparo acentuado
depois da crise de 2008, instigado pelas vagas de refugiados; com direito ao
renascimento do velho antissemitismo de sempre, agora lado a lado com o
desprezo, o ressentimento e o temor em relação aos muçulmanos, e também aos
africanos.

Esse assalto da
extrema-direita, reforçada pela presença de Steve Bannon, do Cardeal Raymond
Burke e de suas campanhas que incluem até a tentativa de desestabilizar o Papa,
sofreu alguns contratempos recentemente. Matteo Salvini quis dar um passo além
das pernas e foi apeado do governo italiano; o Vox cresceu, mas foi contido na Espanha;
o AfD conseguiu projetar-se local e nacionalmente na Alemanha, mas ainda está
longe de derrubar a hegemonia dos partidos tradicionais. Esse avanço da direita
radical reforçou, porém, a tendência de quase todos os partidos a adernarem
para uma pauta mais conservadora ainda. Até os Verdes, que passaram a crescer
em vários países, voltaram a apresentar uma disfarçada queda de braço entre os
mais “vermelhos” e os mais “moderados”.

Enquanto isto,
dois poderosos fantasmas assombram este “Centrão” que professa disfarçada ou
abertamente os princípios neoliberais encarnados nas “políticas de
austeridade”. De um lado, há a possibilidade da reeleição de Donald Trump no
ano que vem, com sua política atrabiliária de macro-Bolsonaro, e que pressiona,
em suas guerras comerciais, tanto os adversários, como os aliados. Do outro, a
Rússia de Putin emergiu das cinzas da União Soviética, voltando a ser um global player e um global power – nada soft.
Sua investida no Oriente Médio é seu mais recente feito diplomático, garantido
por seu poderio militar e econômico renascente.

Diante de tudo
isto, a China sorri, com seu aspecto fantasmático e sua realista nova Rota da
Seda.

Por isto o clima
que reina nas praias, planícies e montanhas da União Europeia e dos arautos do
liberalismo que não abdica de seu pentecostalismo econômico e messiânico,
embora laico, também é, quem diria, “ninguém solta a mão de ninguém”…

*Flávio Aguiar é professor aposentado de literatura brasileira na USP.

O mal-estar da mídia mainstream – 25/10/2019 – 1/1
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