Por PEDRO DE ALCANTARA FIGUEIRA*
O que há de realmente novo atualmente é que a tecnologia dominante na China trabalha no ritmo da eliminação das classes. Por conseguinte, essa tecnologia não serve ao capital
1.
Para tornar a América grande de novo, aconselhamos a adoção do método chinês. A China tem demonstrado que tudo é possível. Nos ocorre, portanto, a pergunta: por que, então, nos mantemos na idade da pedra lascada em termos de desenvolvimento social?
Na verdade, forças retrógradas se unem com o único objetivo de impedir o acesso livre às modernas forças produtivas. Temos aí um processo interno de luta que atualmente se encontra disseminado por toda a sociedade humana. Podemos dizer que não há manifestação pessoal ou coletiva que não se abebere nessa fonte.
Vivemos, como todas as épocas de grandes transformações sociais, um conflito que não deixa de fora nada, nem ninguém. São épocas que deixam na memória grandes feitos e repugnantes manifestações. Dessas últimas temos um elenco interminável nas ditaduras latino-americanas. O anticomunismo, marca registrada dessas manifestações, se armou de um arsenal de argumentos que justifica todos os tipos de violência, inclusive guerras. O genocídio, convertido em arma política pelo nazifascismo, voltou com toda força como recurso bélico do império americano.
Para justificar a sua barbárie contra a gigantesca transformação que se anuncia em todo o horizonte histórico, o capitalismo, em sua fase crítica, ou seja, este último século, engendrou uma fábula anticomunista que corretamente é denominada ideologia.
A mentirada em que ela se sustenta foi bem sucedida até recentemente, ou seja, até o último quartel do século XX. A nova forma social que toma corpo na China e o agravamento do declínio capitalista, vêm reduzindo os efeitos deletérios outrora eficazes por contribuir para o retardamento do processo de transformação.
Estamos entrando numa fase em que a decadência do velho modo de produção, do velho sistema civilizacional dá mostras diárias de sua incapacidade de recuperação. É preciso atentar para o processo de alterações profundas nas leis que garantiram, até aproximadamente os anos vinte do século XX, a robustez desse sistema que, agora, mostra sua total impotência diante de um concorrente recém-nascido.
O que esse concorrente revela é que aquelas leis, potentes até recentemente em termos históricos, perderam a sua validade, e que todas as tentativas de acioná-las têm demonstrado que seus resultados contrariam seus antigos objetivos, ou seja, reproduzirem-se segundo uma taxa de lucro condizente com o capital posto na produção.
2.
Chegado a este ponto, é bom que fique claro que um processo de decadência de tamanha magnitude muito pouco tem a ver com erros políticos, com incompetência de governantes e autoridades. O que temos que entender nesse particular é que os governantes, isto sim, têm a sua existência garantida e moldada pelas leis que dão sustentação a uma forma determinada de organização das sociedades.
Até as duas primeiras décadas do século XX, as leis que regeram o universo capitalista encontravam-se em ascensão. Ascensão, evidentemente, marcada por permanentes convulsões que faziam crer que sua existência não se livraria de prestar contas à história, o mesmo que acontecera com dois outros sistemas, o escravismo clássico e o feudalismo. Aliás, foi o sistema que agora se encontra em sua etapa final que derrotou o feudalismo. Não podemos esquecer que, em sua vitória final, ele carimbou a sua glória nos termos liberté, égalité e fraternité.
Esta nova sociedade que garantia sua existência tanto na Europa quanto na América revelava que a existência da pobreza, também ela recém-criada, não contrariava o progresso social. Muito pelo contrário, ela, a pobreza, o sustentava. Encorpa-se, então, a sociedade burguesa, assim denominada porque são os capitalistas, isto é, a burguesia, cujos interesses moldam a sua forma de ser.
As convulsões que têm vivido essa sociedade nos últimos tempos encontraram soluções que correspondem exatamente à sua impossibilidade de dar sequência à velha pujança que atingiram num certo momento. É a partir daí que essa forma social entra em decadência. Já a partir da metade do século XIX vão se avolumando as tentativas de conter a sua pujança dentro dos limites da sociedade burguesa. Diante do quadro de decadência atual, é de se crer que essas tentativas não são mais capazes de funcionar a tal ponto que impeçam a gigantesca transformação que se anuncia em todas as manifestações políticas da sociedade.
É precisamente neste ponto que a luta que se trava na sociedade entre forças historicamente antagônicas adquire uma dimensão jamais vivida em épocas anteriores.
3.
Sem querer entrar propriamente nas controvérsias a respeito de como se deve classificar socialmente a China, mas considerando que está faltando história nas tentativas de explicar o fenômeno chinês, considero necessário estabelecer qual o grau de desenvolvimento das forças produtivas disponíveis em situações históricas determinadas.
Penso que é aí que devemos olhar o que está acontecendo no mundo inteiro. Em se tratando especialmente da China, o que vemos não é outra coisa senão uma luta gigantesca contra os múltiplos impedimentos interpostos ao avanço das forças produtivas. Novas forças produtivas se concretizam criando um desenvolvimento tecnológico que guarda certa semelhança com a Revolução Industrial e o que significou em termos sociais a produção industrial, com máquinas.
É precisamente a vitória dessas forças produtivas revolucionárias sobre todas as tentativas de impedir o desenvolvimento econômico que permite pensar numa classificação política da sociedade chinesa. Como essa luta se concentra preferencialmente na eliminação de todas as formas que conservam as mais variadas manifestações da sociedade de classes, por certo que o socialismo se apresenta como solução histórica.
Em recente artigo – “Declínio do império americano” –, postado no site A Terra é Redonda, dizíamos, em oposição ao que pensam os economistas a respeito do processo de produção, que de uma fábrica saem, junto com as utilidades, também as classes sociais.
Pois bem, em se tratando da China, temos um fenômeno um pouco diferente. Pensemos na fabricação de chips. Acompanhando os milhares de chips que saem de uma indústria na China, vem, em embalagem especial, o “sonho de consumo” de grande parte da humanidade: o fim das classes sociais.
O que há de realmente novo atualmente é que a tecnologia dominante na China trabalha no ritmo da eliminação das classes. Por conseguinte, essa tecnologia não serve ao capital.
Encontra-se aqui precisamente o nó da questão histórica atual, ou seja, diante de um mundo cujos problemas não se resolvem senão alterando as leis que o regeram até recentemente, a transformação converteu-se na única solução possível.
Frente ao que a China tem demonstrado como a possibilidade de um progresso infinito, os impedimentos interpostos a uma nova ordem social acenam para o perigo de uma ideologia que tenha na apologia da barbárie seus princípios políticos. É o que está se manifestando no genocídio como prática política do império, e interpretada como normalidade pelo Estado de Israel, que, como afirmou o general israelense Yair Golan, lhe lembrava a Alemanha de 1933, ou seja, a Alemanha de Hitler.[i]
*Pedro de Alcantara Figueira é doutor em história pela Unesp. Autor, entre outros livros, de Ensaios de história (UFMS).
Nota
[i] Em longo artigo publicado pelo jornal O Globo em 05.05.2016, intitulado “Alto Militar Israelense diz ver sinais da Alemanha nazista em seu país”, se lê afirmações contundentes de uma atualidade impressionante: “Se há algo que me preocupa nas comemorações da Shoah é ver esses processos nauseantes que ocorreram na Europa em geral, e em particular na Alemanha, há 70, 80, 90 anos, e ver vestígios disso entre nós em 2016 — afirmou em um discurso no início das comemorações. — Afinal, não há nada mais simples e mais fácil do que odiar o estrangeiro (…) despertar medo e intimidação (…) e se tornar um monstro, esquecer os seus princípios e ser feliz consigo mesmo”.
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