Por Francisco Fonseca*
A tentativa de
Bolsonaro de transformar a mobilização da turba em política de governo, sem
instituições intermediárias e com desprezo e tensão permanente às instituições,
pode prosperar? Mais ainda, quais os efeitos da pandemia perante esse
pandemônio?
Da
noite para o dia parece que tudo mudou no mundo: das crenças arraigadas em
economia política ao cotidiano dos indivíduos, entre inúmeras outras arenas da
vida social, política e econômica, em perspectiva macro e micro, tudo parece
estar fora do lugar. Um inimigo oculto, espraiado por todos os lugares, ameaça
a tudo e a (quase) todos. No Brasil, cujo pandemônio político/institucional
advém do processo de desestabilização fraudulenta do governo da presidente Dilma,
a corrosão institucional cresce em espiral, chegando ao paroxismo com o advento
do bolsonarismo.
Essa
confusão generalizada, produzida intencionalmente por Bolsonaro e seus
preceptores objetiva, como se sabe, derrogar ou mesmo emparedar as instituições
pela via da mobilização de grupos milicianos e do baixo clero militar,
associados ao grande capital, notadamente o rentista.
Para tanto, a comunicação direta, sem mediação das instituições, é elemento central. Nesse modelo pandemônico os grandes consensos da política e da ciência política caem por terra, pois:
(a) o grupo bolsonarista no poder não almeja maioria, e sim uma minoria estável e, sobretudo, fiel;
(b)
não possui articulação no Congresso Nacional, e parece importar-se pouco com
isso, uma vez que agenda econômica ultraliberal – consoante ao Congresso –
garante a “governabilidade” para as elites, o que implica pôr por terra o
“presidencialismo de coalizão”; não possui partido político e, embora a criação
do protofascista “Aliança” tenha fracassado bisonhamente – o que representa
derrota fragorosa, aparentemente confirmando a “tese do besouro” isto é, sua
imagem projetada na luz o faz aparentar um dragão, quando não passa de um
besouro –, isso parece pouco importante tendo em vista a personificação do
bolsonarismo;
(c)
o isolamento político/institucional é de tamanha grandeza que tensionar as
instituições e os poderes constituídos se torna exercício cotidiano de medição
de forças à espera da mobilização final (um possível golpe) das hordas
bolsonaristas, ou no mínimo a garantia de fidelidade da parte minoritária da
sociedade; o distanciamento da chamada “sociedade civil” é completo, em
contrapartida aos apoios bizarros, soturnos e obtusos de párias e escórias
culturais (olavismos), artísticos (reginas duartes) e políticos (grupos reacionários ungidos ao poder pela onda do
bolsonarismo);
(d)
a contenda com a grande mídia (com exceção das mídias inteiramente envolvidas
no esquema econômico/político de poder, casos da Record e SBT, e a recém-criada
CNN Brasil), como expressão das elites tradicionais, expressa o fosso com as
classes médias superiores e com as elites; o ignóbil embate com a China, opondo
nosso maior comprador a questiúnculas ideológicas estrategicamente instiladas,
cujo impacto nas elites exportadoras (agronegócio à frente) é fenomenal. A
lista é longa.
Ora,
essa forma de fazer política para uma minoria específica – na expectativa
futura de conquista de nova maioria eventual, eleitoral, mesmo que mínima –,
cuja mobilização da turba se transforma em política de governo, sem
instituições intermediárias e com desprezo e tensão permanente às instituições,
pode prosperar? Mais ainda, quais os efeitos da pandemia perante esse
pandemônio?
Essas
duas indagações se entrelaçam de forma complexa. Vejamos.
Bolsonaro,
um néscio de longa data, só está no poder pelo vazio institucional
intencionalmente provocado pelo consórcio golpista (Lavajato, elites econômicas,
grande mídia, setores do poder Judiciário, parte significativa do sistema
partidário e interferência dos EUA) e pelo conjunto de fraudes que lhe
permitiram se viabilizar eleitoralmente (suposta facada, fake news, caixa dois, pós-verdade).
Seu
“desgoverno”, do ponto de vista da racionalidade e das regras da política
“normal” (no sentido de estabilidade do modus
operandi e da representação política) se transforma no “novo normal”, em
que atentados ao decoro, crimes de responsabilidade em série e um mínimo de
razoabilidade tornam-se espécie de “terra em transe” da ultradireita. A
interdição ao debate leva ao entorpecimento e à inação da maioria que,
paradoxalmente, parece minoritária.
Nesse
sentido, tudo indica que o bolsonarismo é um besouro, como aludido. Em outras
palavras, seu poder possivelmente é muito menor do que aparenta ter. Parece que
esse “pagar para ver” comprobatório não tem sido intentado por nenhuma força
política relevante. Quanto aos militares, que estão no poder com o
bolsonarismo, parece reinar mais divisão do que propriamente diretriz uníssona,
o que expressa mais um conceito da política “normal” que está sendo ultrapassado:
a disciplina e unicidade militar.
Paralelamente
a essa pandemia ideológica, verdadeiro pandemônio, o coronavírus chegou
ceifando vidas e hegemonias. Nesse sentido, a aposta bolsonarista de se opor ao
confinamento geral – embora esquizofrênica e mesmo bipolar em termos
governamentais – descola a figura presidencial de seu governo, mantendo a
matilha mobilizada, objetivo central desse projeto político.
A
ideia é criar nova narrativa para a queda brutal do PIB, que se avizinha – e
produzirá derretimento de seu capital político –, mesmo que ao custo de se opor
à ciência, às autoridades médico / sanitárias internacionais e ao mais
elementar bom senso quanto à defesa da vida, em paralelo à mobilização
permanente, tal como nos regimes totalitários. O senso de ridículo e vexame,
inclusive internacionais, não é levado em conta nesse cálculo político, espécie
de “ética da convicção” ancorada em interesses materiais cristalizados. Mais
ainda, quanto mais isolado e minoritário, mas contramajoritário o será, pois
método de “governar”, em que Estado e mobilização política se confundem, o que
guarda semelhanças com regimes totalitários.
Nesse
diapasão, o coronavírus põe por terra os credos ultraliberais, cuja agenda –
tal como nos anos 1930 e no pós-guerra – perde inteiramente espaço, audição e
credibilidade. Isso significa que, se Bolsonaro foi ungido ao poder, no que
tange às elites empresariais, com o objetivo explícito de derrogar, por um lado,
o Estado de Bem Estar Social e a proteção ao trabalhador, e por outro lado o
Estado desenvolvimentista, o que implica ultraliberalismo radicalizado e no
menor tempo possível, essa agenda esgotou-se. Com ela esgota-se também a
serventia dos néscios protofascistas, até porque completamente isolado, o que
implica agarrar-se até a medula à “projeção do besouro na luz” – isto é, à
mobilização contramajoritária, com o pretexto de “salvar a economia” – que o mantenha como dragão, quando sua real
dimensão começa a aparecer de forma decrescente.
Os
panelaços promovidos todas as noites pelas classes médias, as mesmas que
bateram panela contra a presidente Dilma e o PT, assim como a recepção com
protestos e ovos das “carreatas contra o isolamento”, são a expressão simbólica
de que o apoio a Bolsonaro é frágil e decrescente. Sua capacidade de
mobilização “real” de grupos sociais existe, mas possivelmente é pequena
perante seus apoiadores virtuais. O fiasco da criação de seu novo partido é
claro termômetro dessa capacidade da mobilização real aquém do que aparente,
reitere-se.
Militares
de baixa patente teriam grande dificuldade de mobilização com vistas a um golpe
clássico de Estado se as cúpulas não aderissem. Ademais, golpes são dados se
precedidos de intensa articulação com grupos poderosos (o grande capital, think tanks, mídia, classes médias
superiores, e mesmo setores importantes do Estado, caso do Congresso Nacional,
entre outros). O bolsonarismo está distante de grande parte desses setores, tem
baixa capacidade de articulação e sua aventura é cada vez mais disfuncional ao
jogo das elites. O vice, Mourão, é cada vez mais palatável nesse cenário, mas a
decrepitude da agenda ultraliberal também diminui seu atrativo às elites.
Mesmo
em perspectiva internacional, o imperialismo estadunidense volta suas energias
ao combate à pandemia, que se espraia fortemente no país sem sistema público de
saúde, verdadeiro terceiro mundo social. Isso significa dizer que diminui a
capacidade de intervenção – direta e indireta – dos EUA nos inúmeros países em
que financiam golpes e desestabilizações, caso do Brasil.
O
coronavírus é, dessa forma, oportunidade estranha e paradoxal para o Brasil se
livrar da escória bolsonarista – espécie de vírus sócio/político – que assolou
o poder no Brasil. Contudo, a solução Mourão é péssima à democracia, uma vez
que dá sequência ao governo ilegal e ilegítimo; não restitui o pacto de 1988,
quebrado com o golpe de 2016; não refaz as instituições na perspectiva da
“política normal”; e mantém a agenda ultraliberal (plutocrática), mesmo que
abalroada.
A
solução Mourão é, dessa forma, solução das elites, pois ao retirar o néscio
/bizarro do poder, restará a elas se opor à agenda das esquerdas/progressistas,
sem poder aplicar a agenda ultraliberal em sua profundidade, como tem ocorrido
a partir de Temer.
Seja
como for, retirar Bolsonaro e sua insanidade calculada do poder é tarefa
urgente do STF e do Congresso Nacional por meio de “notícia crime”. É claro
que, fora do poder, continuará mobilizando suas bases pela via da comunicação
direta, intentando golpes “de baixo”: milícias e baixo clero militar. Pode
levar o Brasil a uma espécie de modelo colombiano. Uma vez mais será
necessário, à esquerda e aos progressistas, não apenas “pagar para ver”, como, sobretudo,
ter estratégias de antemão coordenadas, tais como:
(a)
pressionar as corporações detentoras das redes sociais quanto ao impedimento à
sua utilização perniciosa; criar elementos de contra hegemonia; estabelecer
frentes – nos mais diversos campos – em defesa do Estado de Direito e do Estado
de Bem-Estar Social e Trabalhista; (b) propor medidas econômicas e sociais
articuladas e urgentes; (c) ter planos de combate às extrema direitas, o que
envolve mecanismos de informação vigorosos; (d) cobrar reação das instituições
no contexto de um novo pacto democrático de governabilidade; entre inúmeros
outros.
Retirado
Bolsonaro do poder a batalha pela cassação da chapa no TSE dever ser a nova
agenda para se combater o pandemônio político/institucional, espécie de túnel escuro
em que não se vislumbrava saída. Nesse jogo de xadrez é necessário arriscar
para “abater o rei”, porém de forma calculada, medindo as relações de força e
adotando táticas e estratégias inteligentes e coordenadas. Nesse sentido, o
tensionamento às instituições – no sentido de retomar/garantir o Estado de
Direito Democrático –, paralelamente à articulação nos diversos níveis de ação
política, torna-se essencial. A batalha da comunicação ocupará lugar
privilegiado nesse cenário.
A
extrema direita tem dois caminhos visíveis: dar um golpe e governar por meio de
uma ditadura efetiva; projeto aparentemente distante, ou tornar-se
eleitoralmente viável. Como a agenda ultraliberal não ganha eleições, somente
fraudes e mobilizações constantes poderiam levá-la ao poder. Estando fora do
poder institucional esse poderio será diminuto, até porque em disputa com
outras alternativas à direita, a começar por Dória e Witzel. A terceira saída
seria a constituição orgânica de um poder paramilitar, à guisa do referido
modelo colombiano. Esse, contudo, poderia ser combatido pelo Estado nacional.
Por
fim, tudo parece confluir ao papel dos militares (as três armas), e mesmo ao imperialismo
estadunidense. Contudo, tal como no jogo de xadrez, há limites para o cálculo de
longo prazo, até porque o xadrez da política real é bem mais complexo e fluido.
Ainda assim, é possível nutrir-se da fragilidade estadunidense perante o
coronavírus e apostar na divisão das forças armadas no sentido de isolar os
golpistas e aventureiros bolsonaristas, disciplinando o baixo clero.
Dessa
forma, resta às esquerdas, aos progressistas e aos que zelam pela democracia
intentar o quanto antes a retirada de Bolsonaro do poder pela via da “notícia
crime” ao STF (os motivos são inúmeros e levariam à suspensão temporária de
Bolsonaro para posterior cassação) ou outra forma rápida do ponto de vista
institucional e em seguida lutar pela cassação da chapa Bolsonaro/Mourão.
Os
cálculos eleitorais não poderão ser sobrevalorizados, seja porque a
instabilidade será grande, seja pelo fato de que a luta política se dará em
vários âmbitos. Reitere-se que paradoxalmente a pandemia do coronavírus poderá via
a ser, dessa forma, o veículo pelo qual o pandemônio que assolou o poder no
Brasil possa ser vencido! Para além de ceifar milhares, senão milhões de vidas,
causando dor e tragédia em perspectiva mundial, representa fator novo em cada
realidade nacional, em paralelo ao ambiente global. No caso brasileiro, poderá
contribuir para enfraquecer – e quiça destruir – o bolsonarismo, o que
implicará um vírus dizimando outro!
*Francisco
Fonseca é professor de ciência política na FGV/Eaesp e na PUC-SP.
