O mundo no início de 2025

Imagem: Victor Moragriega
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Por MÁRIO MAESTRI*

O combate ao populismo de direita pelos partidos ditos democráticos e mesmo de esquerda europeus restringe-se a sua denúncia como fascista, nazista, racista etc., sem qualquer explicação das razões do fenômeno

O proletariadosurge no cenário político com a Confederação dos Iguais, em fins da Revolução Francesa. No século XIX, ele se constitui como classe socialmente determinante, avançando a sua construção organizacional, ideológica, política e programaticamente – Manifesto Comunista [1848], O Capital [1867], a I e II Internacionais etc. Em 1871, os trabalhadores conquistam o governo em Paris transitoriamente. Com a derrota da Comuna, abre-se período de refluxo revolucionário e de consolidação das organizações sindicais e políticas operárias – Alemanha, França, Inglaterra, etc.

Em 1905, a Primeira Revolução Russa é derrotada e, em 1917, o proletariado conquista o poder no imenso Império tsarista. O marxismo, o comunismo, o bolchevismo, os sovietes galvanizam mundialmente os trabalhadores. Espera-se que a revolução se espraie para a Europa desenvolvida, consolidando a Revolução Russa, sob o peso do atraso tsarista. De 1918 a 1924, ela é derrotada na Alemanha, Áustria, Bulgária, Hungria, Itália, Espanha, com o apoio da social-democracia.

Sob o refluxo revolucionário, vencem as contra-revoluções preventivas fascista, na Itália, em 1922, e nazista, na Alemanha, 1932. Na URSS, as ordens burocrática e burocrático-stalinista se impõem em meados dos anos 1920 e 1930. Com a liquidação do bolchevismo pelo stalinismo, a Internacional Comunista e suas secções abraçam o colaboracionismo. A Revolução Espanhola (1936-39) é liquidada e a revolução refluiu no mundo.

Novo impulso revolucionário

Como a Primeira, a Segunda Guerra [1939-1945] relançou a revolução. A Iugoslávia, a Albânia, a Grécia, parte da Itália foram libertadas por guerrilhas populares e comunistas. Avançando para Berlim, o Exército Vermelho ocupou enormes regiões da Europa do Leste, definidas como áreas de influência soviética, nos acordos entre os vencedores do conflito.

Com a ofensiva imperialista dos EUA [Guerra Fria, 1947], e sob a pressão de suas classes trabalhadoras, essas nações se transformaram em “democracias populares”, enfeudadas à URSS – Polônia, Hungria, Romênia, Tcheco-Eslováquia, Bulgária, Alemanha do Leste. O mesmo ocorreu com o norte do Vietnã e da Coreia, libertados por guerrilhas comunistas apoiadas pela URSS. Respeitando os acordos com os Estados imperialistas, Moscou impôs a entrega das armas na Itália, abandonou a insurreição grega, impugnou inutilmente a revolução iugoslava, etc.

Em 1949, os comunistas chineses libertaram a totalidade do imenso país, à exceção de Taiwan, defendido pela marinha dos EUA. Apesar da repressão imperialista, da traição social-democrata e do colaboracionismo ou contemporização stalinista, a revolução anticolonial, anti-imperialista e socialista espraiou-se na Ásia, África e Américas – Egito [1952], Argélia [1956], Cuba [1959-61], Iraque [1968], Vietnã [1974], Angola [1975], Moçambique [1975], Irã [1979], etc.

Matar ou morrer

Em 1968, a revolução desembarcou na Europa Ocidental: na França, o movimento operário ocupou o país, devolvido pelo PCF às classes dominantes; na Itália, o “outono quente” proletário foi combatido pelo PCI; em Portugal, em 1974, a revolta anti-colonial ameaçou transformar-se em revolução social.

Sob o impacto da guerra de libertação do Vietnã, movimentos pacifistas e revolucionários [hippies, negros, guerrilhas, etc.] estremeceram os USA.O operariado estadunidense manteve-se refratário às fraturas do consenso, limitando-as e permitindo seu esgotamento. [1960-70]. A produção capitalista mundial conheceu sua terceira crise cíclica, com o esgotamento do boom da acumulação de 1947-1973. Impunha-se ao mundo do trabalho a destruição da ordem capitalista e, a esta última, a destruição dos Estados operários deformados, do movimento revolucionário e reorganização do mundo segundo suas necessidades.

Crise de direção

Após 1917, a vanguarda revolucionária confluiu nas filas comunistas, mesmo quando pouco sabia sobre o marxismo. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, mortos na insurreição alemã de 1919, eram os principais dirigentes marxistas revolucionários fora da Rússia, que ombreavam com os dirigentes bolcheviques.

A ditadura burocrático-stalinista liquidou a direção da Revolução de 1917 e da Guerra Civil [1918-1923], assim como sua memória. Os militantes da Oposição de Esquerda foram assassinados na Rússia, França, Grécia, Iugoslávia, Vietnã, China, durante a II Guerra Mundial, pelos fascistas, direitistas, stalinistas.

Em 1938, a fundação da IV Internacional deu-se com trinta delegados e sem um quadro marxista referencial, fora León Trotsky. Com a morte de Trotsky, em 21 de agosto de 1940, praticamente se rompia a ligação com o passado, quanto à experiência política vivida. Grupos trotskistas participaram ativamente na resistência contra o fascismo, pagando alto custo por isso.

Após o conflito, a reorganização da IV deu-se sobretudo sob a direção de militantes em boa parte sem experiência substantiva. Em 1946, quando Ernest Mandel assumiu papel de liderança na IV, ele tinha 23 anos, assim como Livio Maitan, seu braço direito. As divergências nas filas da IV não alcançaram elucidação tendo a prática como o critério da verdade.

Bordiguismo, titoismo, maoismo e fidel-guevarismo

As demais dissidências de esquerda do stalinismo não prosperaram. Com a derrota na Espanha, o anarquismo e o POUM conheceram eclipse. O titoismo não superou o interesse inicial e assim por diante. Nos anos 1960, duas correntes obtiveram amplo alcance: o maoismo e o fidel-guevarismo.

O maoismo apoiou-se no prestígio da revolução chinesa, na crítica do revisionismo soviético, em versão camponesa da revolução socialista. Recuperou o stalinismo denunciado por Kruschev, em 1956. O maoismo repercutiu fortemente na Europa e no mundo, com a Revolução Cultural, 1966-1969, e inspirou guerrilhas camponesas.

O maoismo entrou em agonia com os acordos com o imperialismo, em 1971-2, em viés anti-soviético, seguidos do abandono do apoio a movimentos de libertação e pela oficialização da restauração capitalista, em dezembro de 1978. Por alguns anos, Enver Hoxha [1908-1985], da pequenina Albânia, tentou manter o elã maoista.

O fidel-guevarismo, com a proposta blanquista e pré-marxista de guerrilha vanguardista incondicional, lançado oficialmente na reunião da OLAS, em 1967, em Habana, conquistou importantes facções, sobretudo de jovens, da esquerda latino-americana para a aventura suicida, jamais autocriticada pela direção cubana. O bordiguismo segue hoje inativo como uma rica seita leninista.

Maré contra-revolucionária

A maré revolucionária dos anos 1950, 1960 e 1970 arrefeceu em fins dos anos 1970 e foi derrotada em fins dos anos 1980. A estagnação econômico-tecnológica dos países operários, que jamais planejaram supra-nacionalmente suas economias; o dinamismo tecnológico imperialista e a sua exploração dos trabalhadores e das nações alavancaram o tsunami que recuperou imensas áreas do globo perdidas pelo capital desde 1917.

Em 1989, ruiu o Muro de Berlim e, 1991, a URSS dissolveu-se. O impacto político-ideológico foi imenso. A contrarrevolução espalhou-se pelo mundo dito socialista e livre. Na derrota histórica contribuíram os golpes no Brasil [1964] e na Indonésia [1865]; o fracasso das revoluções de maio na França [1968], do Chile [1973], de Portugal [1976], do Afeganistão [1988-9], da Nicaragua [1990], de San Salvador [1992].

Naquele desastre, teve um papel importantíssimo a aliança EUA-China [1971-2] em um viés anti-URSS e a oficialização da restauração capitalista chinesa, em 1978. Até onde foi possível, a contrarrevolução mundial empreendeu a reorganização material e espiritual tendencial da vida social mundial, questionando a independência e a unidade nacional de nações que entravavam suas necessidades – URSS, Iugoslávia, Tcheco-Eslováquia, Iraque.

Saque generalizado

Radicalizou-se a apropriação das riquezas sociais pelo capital financeiro, sobretudo através do pagamento da dívida pública e privada, transformando os estados endividados em produtores de superavit, com privatizações; arrocho fiscal e salarial; corte em investimentos etc.

A expropriação econômica e financeira permanente ensejou crises mundiais setoriais muito duras – Grécia e Turquia, 1992; México, 1994-5; sudeste asiático, 1997-8; Rússia, 1998; Brasil,1999; Argentina, 2001-2, EUA-Mundial, 2008.

Governos liberais; partidos, sindicatos, organizações operárias, etc. convertidos ao social-liberalismo; organismos mundiais ─ FMI, Banco Mundial, OMC, OCDE, ONU, etc. — impulsionaram a flexibilização e terceirização do trabalho; a subjunção do trabalhador à empresa; uma classe trabalhadora mais fragmentada, heterogênea, instável.

Crise de subjetividade

A diminuição-destruição de ramos produtivos acompanhou a universalização das relações capitalistas em antigos e novos segmentos da produção e dos serviços: cultura, escola, informação, lazer, moradia, saúde, segurança, sexualidade, etc.

Os trabalhadores, produtores de mais-valia, núcleo da emancipação social, cresceram quantitativamente, deslocando-se do Ocidente para o Oriente – China, Índia, etc. Conheceram enorme regressão político-ideológica. A crise de subjetividade do mundo do trabalho, ou seja, o abandono da crença de seu programa como solução da crise social, é a mais dramática sequela dos sucessos sinalizados pela destruição da URSS.

Deprimiu-se o prestígio do racionalismo, do socialismo, do marxismo, dos trabalhadores, em prol do irracionalismo, do capitalismo, do consumismo, do individualismo, etc. Sindicalistas, políticos, intelectuais de esquerda aderiram à nova realidade, defendendo a morte da revolução, do socialismo, do trabalho; o caráter ontologicamente reformista do proletariado, etc. A derrota da URSS provaria a obsolescência do marxismo e do socialismo.

Morreu na casca do ovo

Após 1991, prometeu-se desenvolvimento pacífico e ininterrupto das condições de vida das populações sob um capitalismo eterno. A destruição-expropriação dos estados operários mergulhou na pobreza a milhões de populares, sem um relançamento da produção capitalista de magnitude do esperado. A euforia contra-revolucionária foi transitória.

Apesar do desenvolvimento técnico-científico, o desemprego, a guerra, o nacionalismo, o racismo, novas doenças, a fome espiritual e material, etc. tornaram-se o pão cotidiano de multidões através do mundo. A apologia capitalista abandonou a promessa de abundância universal pela defesa da violência, da competição, da miséria, etc. como atributos humanos naturais e necessários ao progresso social.

O século estadunidense

Em 1991, encerrava-se a ordem bipolar mundial – bloco soviético versus imperialista. Os USA tornaram-se potência mundial hegemônica. O imperialismo promoveu revoluções coloridas nas antigas democracias populares, incorporadas a seguir à Otan. Durante a Era Yeltsin [1991-1999], a Federação Russa, o coração da URSS esquartejada, se tornou um “Negócio da China”. A balcanização doce da Iugoslávia foi seguida pela campanha militar contra a Sérvia, em 1999. Em 1991 e 2003, isolado, o Iraque foi atacado.

A operação, preparada por mais de uma década de bloqueio, visava apoderar-se da segunda reserva mundial de petróleo; fragilizar a regulação de preço da OPEP e forçar a depreciação de seu preço; interromper a tendência à substituição do dólar como moeda internacional; fortalecer o controle de região rica em petróleo e água, com fronteiras com o Kuwait, Arábia Saudita, Jordânia, Síria, Turquia, Irã.

Ao saque do Iraque seguiu-se uma muito dura resistência popular armada. As concentrações mundiais de 15 de fevereiro de 2003, contra a intervenção no Iraque, com milhões de manifestantes, foi resposta pioneira unificada ao imperialismo, desde 1991. Em parte, o movimento se esgotou, devido à negativa “altermundista” de apoiar a resistência armada iraquiana.

Revoluções islâmicas

Em 2001, iniciava a intervenção estadunidense no Afeganistão. No mundo árabe, a luta contra a opressão imperialista e governos conservadores deu-se através de movimentos integralistas, obscurantistas e antissociais islâmicos, que expressaram a regressão do prestígio do marxismo e do socialismo. O imperialismo se serviu deles contra o pan-arabismo, o socialismo, a revolução – Afeganistão, Arábia Saudita, Egito, Paquistão, etc.

Nesses anos, na América Latina, movimentos sociais, alguns semi- insurrecionais – Argentina, Bolívia, etc. –, derrubaram governos pró-imperialistas e pró-capitalistas sem se proporem a conquista do poder, devido a inexistência de direção operária e, sobretudo, à assinalada crise subjetiva pós 1991.

A nova esquerda

No plano político e ideológico, a esquerda social-democrata e o socialismo reformista reduziram a luta anticapitalista e anti-imperialista à denúncia do neoliberalismo, proposta como face perversa de capitalismo reformável. Abraçaram propostas utópicas que legitimavam a exploração capitalista e imperialista — Taxa Tobin; políticas compensatórias; economia solidária; orçamento participativo, etc.

A falta de direção revolucionária ensejou movimentos de combate à guerra, ao racismo, à destruição da natureza, à dívida, etc., que convergiram no “movimento no-global” ou “altermundista”, dominado pela social-democracia de esquerda e pela Igreja, centralizados nos Fóruns Sociais Mundiais, desde 2001.

O “altermundismo” propunha um “outro mundo”, no capitalismo [“mudar o mundo, sem tomar o poder”]. Negava as necessárias organização partidária e conquista do poder; centralidade do trabalho; resistência armada. O “altermundismo” e os Fóruns Sociais refluíram devido à inocuidade.

Revolucionários do capital

Com o apoio imperialista, o movimento das ONGs defendeu e defende o apequenamento e substituição do Estado por organizações privadas da sociedade civil, financiadas com recursos públicos, para satisfação simbólica, midiática e limitada das necessidades da população – educação, saúde, lazer, trabalho, etc.

Em 1991, organizações reivindicando-se da revolução festejaram a destruição da URSS e dos estados operários e, a seguir, apoiaram as operações-ataques imperialistas à Iugoslávia, Cuba, Iraque, Síria, Venezuela, Nicaragua, etc. No Brasil, apoiaram ou desconheceram o golpe institucional de 2016.

Quando da globalização e deslocalização industrial, os democratas estadunidenses abandonaram o trabalhador manufatureiro como base eleitoral, substituído pelas novas classes médias globalizadas, promovendo políticas identitárias [sexo, gênero, raça] para elas, que negam a luta social e classista. Organizações reivindicando-se do marxismo abraçaram essas políticas, sempre sob retórica revolucionária.

Crise de 2008

Em 2008, encerrou-se abruptamente o ciclo de expansão da acumulação capitalista, superaquecido desde 2002 – quebra do banco Lehman Brothers –, devido ao hiato crescente entre o avanço da produção e a queda da capacidade mundial de consumo. Contradição superada-adiada através de rendas fictícias; gastos bélicos; dívida pública; endividamento familiar, etc.

Através do mundo, China inclusive, os bancos centrais irrigaram de capitais as indústrias e bancos, reduziram taxas de juro, etc., alavancando a retomada do crédito e da produção-acumulação de capitais. Financiaram com recursos públicos a retomada do capital financeiro e industrial privado.

Em um ano, a primeira onda depressiva foi superada – em 1929, foram necessários cinco anos. Vitaminadas pelos financiamentos estatais, a racionalização, a concentração e a centralização da produção aprofundaram a destruição de bens de produção e a exploração do trabalho. Pouco se fez quanto às razões estruturais da crise.

Com a expansão normal após a depressão [reposição de estoques, valorização do capital, etc.] soterrou-se a pressão popular pela regulamentação financeira e contra as privatizações. A retomada da expansão apoiou-se em base material mais estreita, incapaz de repetir o ciclo de acumulação anterior. A crise estrutural do capitalismo seguiu adiante, sem uma solução de médio e longo prazo.

Fim da unipolaridade

O imperialismoestadunidense apostou na globalização. As administrações Clinton [1993-2001] apoiaram o deslocamento industrial em direção de regiões de trabalho jugulado e mais barato e mercados amplos, com destaque para a China, México, Tailândia, Vietnã, etc. Mao Tsé-Tung avançara a aliança com os EUA, pondo fim às sanções ianques contra a China, em 1971-2, e o PC Chinês engolfara-se na restauração capitalista, em dezembro de 1978.

A abertura aos capitais internacionais e mobilização de capitais internos tornou a China a “fábrica do mundo”, super-explorando o trabalho e expropriando os bens estatais. Inicialmente, joint ventures, empresas estrangeiras e nacionais, públicas e privadas produziram produtos de baixa valor agregado, inundando com eles o mundo. Localizada na região mais dinâmica e populosa do mundo, a China manteve por 25 anos elevadas taxas de crescimento e de exploração.

Em dezembro de 2001, a China ingressou na Organização Mundial do Comércio, apoiada pelo governo democrata. O transbordamento produtivo de mercadorias e de capitais exigiu exteriorização da economia, faminta de matérias -primas que não possui, transformando a China em nação imperialista, no sentido leninista do termo. O que a levou a chocar-se com os USA, com quem procurou, sempre, contemporizar, devido a sua dependência intrínseca aos capitais e mercados internacionais.

Estranhamento inicial

Desde 2004, os investimentos chineses diretos externos cresceram aceleradamente, explodindo em 2014-16. “Um Cinturão, uma Rota” objetivou criar conexões diretas da produção-capitais chineses com os mercados mundiais. Todos os caminhos devem levar, agora, a Pequim, a nova Roma. A administração Obama procurou travar esse avanço avassalador, sem romper os pratos com a China — política do “Pivot to Asia”.

A administração Obama organizou golpes militares e eleitorais na Argentina, Equador, Paraguai, Honduras, Brasil, Síria, Líbia, Ucrânia, etc. Com eles, objetivava aprofundar o saque das riquezas, submeter seus governos e Estados a uma nova ordem, dificultar as inversões-aquisições chinesas. Era o imperialismo ianque em rota de colisão com o chinês.

Contemporizando com a China, a administração Obama empreendeu pressão crescente à Rússia, na busca do esfacelamento imposto à URSS, em 1991, para dominar a Eurásia e vergar a aliança Russia-China. Hillary Clinton, em 2016, ao ser derrotada por Donald Trump, preparava-se para se confrontar com a Rússia e com o Irã, na Síria, apoiada na Otan.

O primeiro governo Trump [2017-2021] definiu a China como a grande ameaça à hegemonia estadunidense, entrando em um forte confronto comercial com ela. Conflito que assume maior complexidade com a recomposição capitalista da Federação Russa e aliança defensiva com a China — os EUA avaliam que seriam derrotados em enfrentamento concomitante com as duas nações.

Janela de tempo

O mundo transformou-se em um supermercado dos EUA, que compram muito e produzem e vendem pouco, apoiando-se na hegemonia mundial do dólar. Entre as razões de sua regressão tendencial relativa estão o envelhecimento de suas indústrias e infraestruturas, enquanto investia em guerras sem fim. Com a deslocalização industrial, os EUA cederam-perderam centenas de milhares de indústrias.

Os Estados Unidos assentam sua hegemonia financeira no domínio do dólar como moeda de troca e refúgio internacional, apoiado em sua força militar e diplomática e não mais manufatureira. Seu crescente recurso à emissão, empréstimos e desvalorização do dólar, exporta sua inflação para o mundo e desvaloriza seus títulos da dívida pública.

Correndo contra o tempo, o imperialismo ianque serve-se de sua superioridade diplomática, financeira e militar em erosão para promover operações visando a desorganização da Federação Russa e da China, em aliança defensiva. O bloco imperialista ocidental, dirigido pelos EUA, decidiu atacar primeiro a Rússia, visto como mais frágil, e, a seguir, a China, o inimigo estratégico.

A russofobia histórica europeia, alimentada desde 1917, aconselhava igualmente privilegiar uma ofensiva contra a Federação Russa, muito próxima, do que contra a China, distante. Na Europa, toma força a campanha imperialista contra a China, entre a população do Velho Mundo.

A China está próxima, a Rússia também

Donald Trump [2017-2021], representante dos capitais ianques secundários voltados ao mercado interno, enfrentou o desafio chinês sobretudo em ótica comercial. Foi impedido de tentar separar a Rússia da China pelo Deep State ianque. Durante seu quadriênio, não lançou nenhuma guerra externa. A enorme pressão comercial sobre a China alcançou resultados, ainda que insuficientes. Eleito, J. Biden retomou a proposta de hostilização indireto à China, através da radicalização do cerceamento e ataque da Rússia.

Sem resposta aos seus pedidos de garantias de segurança nacional, a Rússia radicalizou a colaboração com a China e preparou-se para o ataque dos EUA e da Otan, na Ucrânia, desvelado com o golpe de Estado de 2014, verdadeiro início do atual conflito. Os EUA, a Otan, a União Europeia pretendiam desorganizar rapidamente a Federação Russa através da radicalização das sanções e isolando-a diplomaticamente e, portanto, de seus tradicionais mercados.

O projeto fracassou devido: à resiliência da economia russa, que se preparou ao conflito, ativamente, desde 2014; às relações econômicas mantidas sobretudo com a China, mas também com a Índia; à negativa de numerosas nações de aderirem ao cerco diplomático, com destaque para o Oriente e a África. Não se materializou, portanto, a esperada ampla crise econômica da Federação Russa, e, consequentemente, sua convulsão social e política, com a queda de Putin e dissolução de sua ordem institucional atual, que se esperava serem a antecâmara da explosão da Federação Russa. E os EUA-Otan não estavam preparados para um longo conflito, como o que se iniciou.

O esforço de autonomia relativa ao imperialismo de inúmeras nações se espraiou também ao Oriente Médio, onde a Arábia Saudita retomou as relações diplomáticas com o Irã. Aponta também nesse sentido a corrida de nações para integrarem o Brics+. É de suma gravidade para os USA a decisão, impulsionada pela China e Rússia, de comércio bilateral em moeda nacional, que Trump prometeu combater duramente.

A Ucrânia e os trabalhadores

O confronto entre o mundo do trabalho e do capital é o substrato da história contemporânea, que se expressa através de múltiplas mediações, não sempre muito claras. A sorte dos trabalhadores no mundo depende também da solução do conflito na Ucrânia. Uma derrota da Rússia será seguida do espraiar de ditadura imperialista euro-estadunidense na Eurásia, transformada em colônia, com a redução dos trabalhadores a situações terríveis.

A conquista da Eurásia e de suas terras férteis e matérias-primas sem fim é um velho projeto colonialista e imperialista europeu impulsionado desde o século 16, com as invasões da Rússia pela Polônia, 1610; pela Suécia, 1709; pela França, 1812; pela Alemanha, 1914 e, sobretudo, pela Alemanha nazista, 1941. O fracasso militar da Rússia consolidaria o tacão do imperialismo europeu e estadunidense sobre os trabalhadores europeus. E desequilibraria a correlação de forças em favor do imperialismo estadunidense e em desfavor do imperialismo chinês.

É uma sandice sem nome acreditar – e ainda mais propor – que a derrota russa abriria as portas para uma revolução proletária como em 1917. É necessário não esquecer que, naquele então, existia no Império tsarista um partido marxista revolucionário de massa, o proletariado europeu conhecia surto revolucionário e o mundo mergulhava em uma era revolucionária.

Um tempo precioso

O imperialismo ianque conta, para se impor, sobretudo com a violência. O chinês, no período atual, se expande economicamente, sem poder, ainda, impor pela força sua vontade ao mundo. Com o passar dos anos, assumirá as mesmas características do imperialismo ianque. Desde agora, o imperialismo chinês desempenha igual papel que o ocidental na exploração econômica dos trabalhadores e das nações, com destaque para o Brasil.

A derrota dos EUA-Otan seria uma derrota histórica do imperialismo e seus aliados. E ensejaria um período, transitório, de menor imposição imperialista direta sobre o mundo, com mais tempo para a necessária reorganização dos trabalhadores contra todas as formas de imperialismo e exploração. A vitória da Federação Russa fortalecerá certamente o poder da burguesia nativa sobre o país, ainda mais que inexiste uma esquerda capaz de apoiar a necessária defesa da independência nacional da Rússia, sem apoiar em forma irrestrita a Putin e o que ele representa.

Na urgência incontornável do combate à China, republicanos e democratas divergem apenas sobre os meios de realizá-lo. A atual hegemonia manufatureira do imperialismo chinês; seus avanços tecnológicos; sua crescente abrangência diplomática; seu rearmamento; a amplidão do seu ativismo econômico [Rota da Seda, Brics+], etc. estreitam a janela de tempo de que o bloco imperialista EUA, em regressão tendencial, dispõe para servir-se de sua superioridade militar, financeira, diplomática, etc. em erosão, para tentar retroceder-desorganizar ou mesmo destruir o Estado chinês.

A guerra começou em 2014

Em 2014, a Federação Russa respondeu ao golpe de Estado na Ucrânia, reincorporando a península da Crimeia e apoiando a revolta autonomista do Donbass, o que impediu o ingresso da Ucrânia na Otan. Com a negativa dos EUA-Otan de discutirem as garantias de segurança que exigia, a Federação Russa avançou a Operação Militar Especial, de fevereiro de 2022. Sem alternativa, a administração Biden [2021-2025] foi obrigada a se ocupar quase apenas do conflito europeu, e não igualmente da ofensiva contra a China, como desejava.

Donald Trump expressa sobretudo capitais estadunidense retardatários, não-globalizados. No plano militar, se propôs a superar o projeto do capital globalizado de confronto militar indireto com a Rússia e a China, para impor seu programa. Esboça um ativismo imperialista voltado para os interesses estadunidenses internos, protecionistas, mesmo em confronto com a Europa, América Latina, etc. – Groenlândia, Golfo do México, Panamá e por aí vai.

Atualmente, a gestão mundial do capital ocidental perdeu a unidade política e de ação que contava sob a administração democrata de Biden e as anteriores. E Donald Trump questiona iniciativas centrais do capital globalizado para relançar sua taxa de acumulação, que ferem os interesses que defende – transição energética, ecológica, agrícola forçada e impositivas, suportada pelos consumidores, etc. E o ataque trumpista se dá igualmente no plano ideológico, com a impugnação geral do wokismo. E o Segundo Governo Trump promete reorganizar as instituições estadunidenses, até onde possa fazer.

Pacto de convivência

Trata-se de uma situação de instabilidade da ordem estadunidense e ocidental que exige, se não uma superação, ao menos, um pacto de convivência, ainda mais que os interesses derrotados nas passadas eleições ianques são poderosíssimos. Em caso contrário, o ordenamento capitalista ocidental enfrentará, além das atuais dificuldades econômicas e financeiras, graves fatores políticos dissociativos.

A ofensiva militar contra a Federação Russa foi também um recurso do imperialismo para radicalizar o adiantado confisco da autonomia nacional das nações e dos povos membros da União Europeia. Sequestro em favor de um poder e de um governo supranacional autoritário, exercido através das instituições europeias-atlantistas-mundialistas, no sentido das necessidades do grande capital globalizado. O que já se dá, em forma muito ampla e crescente, na União Europeia.

A eleição de Donald Trump pôs fim ao apoio que o europeísmo recebia dos Estados Unidos, que se concluía no dito atlantismo. A Europa imperialista se transformou, hoje, na barricada do projeto globalista, contra os Estados Unidos. Ela se nega a seguir Donald Trump na busca do fim do conflito na Ucrânia e na concessão das medidas de segurança exigidas pela Federação Russa, que pacificariam a Europa. Sua política militarista apoia as forças político-econômicas democratas derrotadas nos USA. Entretanto, as fendas crescem no antigo bloco coeso euro-globalista – Hungria, Eslováquia, Georgia, Áustria, Romênia etc. E cresce a oposição popular a ele.

Resistir até o último ucraniano

A União Europeia e a Otan, sem os EUA, seguem propondo financiar o esforço militar que vem destruindo a Ucrânia e propõem extrapolar a militarização geral do continente, com retorno ao serviço militar obrigatório e gastos militares superando de muito os 2% propostos há alguns anos – chega-se a propor 5% do PIB de cada país! Essas medidas s ão justificadas devido a uma próxima guerra geral contra a Federação Russa, que pretenderia invadir a Europa, em 2030, 2032, 2035 …

Os investimentos na defesa da liberdade justificariam os sacrifícios de uma população europeia em contínuo empobrecimento. Praticamente sem exceção, todos os partidos ditos democráticos europeus – de direita, de centro, de esquerda – abraçam as propostas globalistas-europeístas, desdobramento das políticas liberais e sociais-liberais que vem implementando há longos anos. Na Alemanha, os verdes, no governo, babam sangue.

Em resposta a essa ofensiva globalista-europeísta, sem uma opção efetiva de esquerda, o voto das classes operárias e populares tem se deslocado em favor de partidos populistas de direita. Em geral, eles retomam e formatam as reivindicações populares abandonadas pelos partidos de esquerda e operários que abraçaram o social-liberalismo – contra a governança supra-nacional; proteção do mercado de trabalho nacional; defesa dos direitos democráticos; contra a política de austeridade social, contra os ataque às aposentadorias e à saude pública; pelo fim da guerra.

Política da avestruz

Na Alemanha e na França, o populismo de direita já é ou se prepara para ser a primeira força política. Ele tem crescido na Suíça, na Suécia, na Grécia, na Espanha e por aí vai. No combate à trincheira globalista europeia, Trump procura se apoiar no populismo de direita. Acolhe debaixo de sua asa à Meloni, presidente do conselho de ministros italiana, até há pouco incondicional de Biden; Elon Musk faz campanha pela Iniciativa pela Alemanha, o grande partido populista de direita daquele país, etc.

Em forma geral, o combate ao populismo de direita pelos partidos ditos democráticos e mesmo de esquerda europeus restringe-se a sua denúncia como fascista, nazista, racista etc., sem qualquer explicação das razões do fenômeno. E não se preocupam em voltar a interpretar as classes populares. Em verdade, os partidos democráticos e de esquerda perseveram nas políticas de austeridade, no belicismo desenfreado, nos ataques aos direitos democráticos da população.

Uma interpretação simplória, conservadora e escusatória abraçada pela esquerda colaboracionista e por grupos e organizações que se reivindicam do marxismo, não apenas na Europa. Em geral, explica-se a vitória de Donald Trump, nos EUA, de Javier Milei, na Argentina e o desespero da esquerda governista no Brasil, com a crescente rejeição do quinto governo petista, governando sempre para o capital, como resultado do avanço de uma terrível onda fascista que não se sabe de onde surgiu, a ser combatida com alianças autocidas cada vez mais estreitas com a dita direita democrática.

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).


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