O neoliberalismo é neofascismo?

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARCOS SILVA*

Aparentemente, Liberalismo e Fascismo são antípodas, situação cômoda para ocultar seu berço em comum: o Capitalismo

O Brasil e outros países do mundo contemporâneo experimentam, no final da segunda década do século XXI, governos de extrema violência contra pobres e múltiplos grupos que sofrem diferentes estigmas sociais, governos que agem para aprofundar pobreza e estigmatizações, em benefício de grandes fortunas e elites administrativas privilegiadas.Essas experiências abrangem de EEUU a Belarus, passando por Filipinas e Líbia. O uso de jaulas para encarcerar crianças, filhas de imigrantes ilegais, nos EEUU sob o governo Trump, é um claro exemplo dessas políticas.

Alguns analistas de tal universo o caracterizam como Neofascismo. Outros preferem a designação Neoliberalismo.

O prefixo “neo” é enganoso ao sugerir uma revivescência pura e simples de algo pré-existente. Por ser História, todavia,“nada será como antes”, como ensinam o refrão e o título de um bela canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Ao mesmo tempo, nas mudanças, há continuidades mescladas a metamorfoses, tragédias tornadas farsas, conforme a clássica formulação de Karl Marx, no livro O 18 brumário de Luís Bonaparte. E as experiências sociais do passado deixam tópicos em aberto, que os pósteros poderão retomar, de acordo com os debates de Walter Benjamin sobre projetos revolucionários (e talvez também se apliquem a conservadores momentaneamente encurralados), no ensaio “Sobre o conceito de história”.

Nenhum Neofascismo reprisará integralmente a Itália de Mussolini ou a Alemanha de Hitler, mas qualquer um poderá ter como programa destruir sindicatos e outros organismos associativos, além de escolher – para eliminar – inimigos visíveis, apelar para o extermínio generalizado de qualquer vestígio de dignidade social. Nenhum Neoliberalismo será lição prática de Adam Smith, mas sempre poderá apelar para a mão do Sagrado Mercado e desprezar o espaço público, jogando os direitos sociais no lixo.

O Neoliberalismo é uma versão de si que o Capitalismo encenou para destruir direitos sociais e desqualificar sujeitos na cena pública. Aparentemente, Liberalismo e Fascismo são antípodas, situação cômoda para ocultar seu berço em comum: o Capitalismo. Os fascistas atacavam tópicos liberais, o que não impedia indiferença, ou até simpatia, de algumas de suas lideranças em países com forte presença liberal no debate político, como EEUU e Reino Unido.

Governantes e o alto escalão administrativos desses diferentes países não hesitaram em se declararem neoliberais, raramente alguns deles se definem como neofascistas, mesmo quando reproduzem quase literalmente textos e posturas públicas claramente inspirados ou mesmo copiados da Itália mussolinista ou da Alemanha hitlerista, como se observa no governo Bolsonaro, Brasil. Há uma fina limpeza em evocar raízes liberais, ao contrário da memória escandalosamente criminosa do Nazifascismo. Margareth Thatcher e Ronald Reagan anunciavam profissões de fé neoliberais e estiveram solenemente presentes nos funerais de João Paulo II, personagem que foi claro exemplo de acirrado anticomunismo no período em que foi papa (1978/2005).

Esse desembaraço na alegada filiação liberal de políticos, associado à vergonha com ser associado em Nazifascismo, é sintomático. Analistas devem mimetizar a suposta identidade neoliberal de tais mulheres e homens?

Tal problema merece ser associado à forte tradição da cultura histórica (além de escritos de historiadores, ficção, monumentos, memória social) a considerar o Nazifascismo um assunto encerrado em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial. Certamente, setores dessa cultura histórica abordaram perturbadoras continuidades do Nazifascismo: sem pretensão de arrolamento, são exemplos esparsos o romance A peste, de Albert Camus (1947), a peça teatral Os sequestrados de Altona, de Jean-Paul Sartre (1959),e os filmes O homem do prego, de Sidney Lumet (1965), e Pocilga, de Pier Paolo Pasolini (1969). No plano do ensaísmo histórico-filosófico, A personalidade autoritária, de Theodor Adorno et al. (1950), e O que resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben (1998), apontam questões atinentes a perturbadoras continuidades do nazifascismo.

*Marcos Silva é professor do Departamento de História da FFLCH-USP.

 

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O que significa dialética do esclarecimento?cultura maleta 19/09/2024 Por GILLIAN ROSE: Considerações sobre o livro de Max Horkheimer e Theodor Adorno
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • UERJ afunda em um Rio de crisesUERJ 29/09/2024 Por RONALD VIZZONI GARCIA: A Universidade Estadual do Rio de Janeiro é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras
  • América do Sul — uma estrela cadenteJosé Luís Fiori 23/09/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A América do Sul se apresenta hoje sem unidade e sem qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de fortalecer seus pequenos países e orientar a inserção coletiva dentro da nova ordem mundial
  • A ditadura do esquecimento compulsóriosombra escadas 28/09/2024 Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU: Pobres de direita se identificam com o funk ostentação de figuras medíocres como Pablo Marçal, sonhando com o consumo conspícuo que os exclui
  • Fredric Jamesoncultura templo rochoso vermelho 28/09/2024 Por TERRY EAGLETON: Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Uma carreira de Estado para o SUSPaulo Capel Narvai 28/09/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: O presidente Lula vem reafirmando que não quer “fazer mais do mesmo” e que seu governo precisa “ir além”. Seremos, finalmente, capazes de sair da mesmice e ir além. Conseguiremos dar esse passo adiante na Carreira-SUS?
  • Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?Elenira Vilela 2024 30/09/2024 Por ELENIRA VILELA: Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão
  • Hassan NasrallahPORTA VELHA 01/10/2024 Por TARIQ ALI: Nasrallah entendeu Israel melhor do que a maioria. Seu sucessor terá que aprender rápido

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES