O novo monarca absoluto de Washington

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por FLÁVIO AGUIAR*

Os ataques de Donald Trump podem levar Europa a um naufrágio geopolítico

Comecemos pelo começo. A Europa é tida e lida como o berço das chamadas cultura e civilização ocidentais, desde os tempos da Grécia e da Roma antigas.

Um dos derivados contemporâneos destes conceitos foi o Bloco Ocidental, criado depois do fim da Segunda Guerra Mundial, liderado pelos Estados Unidos e constituído por seus aliados na Europa Ocidental, o Canadá, e, na sua franja distante, por países como Austrália, Nova Zelândia, a China nacionalista (Taiwan) e, de certo modo, até pelo ex-inimigo Japão.

O bloco ocidental confrontava o mundo comunista, formado pela hoje extinta União Soviética (URSS) e seus satélites no Leste europeu, a República Popular da China, o Vietnã do Norte, que acabou incorporando seu co-irmão do Sul em 1975, Cuba a partir de 1959, mais alguns países comunistas, como a hoje também extinta Iugoslávia, a Romênia e a Albânia, que não eram satélites da URSS. Os demais países, na América Latina, na África, na Ásia e na Oceania, eram “áreas em disputa”, com forças políticas pendendo para um ou outro lado.

Este bloco ocidental tinha e tem um braço armado, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que confrontava o Pacto de Varsóvia, liderado pela URSS. Com a extinção desta, em 1991, o bloco ocidental ampliou sua influência para o Leste europeu.

A OTAN estendeu o alcance de sua ação, tornando-se uma espécie de força policial atuante em conflitos como nos Bálcãs Europeus, no Norte da África e até no Oriente Médio. Por fim, passou a ter por alvo a Federação Russa, que herdou da URSS o maior arsenal nuclear mundial.

Emergência da União Europeia

Economicamente, o Bloco passou a enfrentar também o crescente poderio da China Comunista e sua influência em escala mundial. Paralelamente, a Europa viu a emergência e ampliação da União Europeia, sob a liderança de países da Europa ocidental, como Alemanha, França e Itália, uma promessa de paz e prosperidade num continente martirizado e destruído por duas guerras mundiais no século XX.

O cartão de visitas do bloco ocidental compreendia o regime capitalista, a democracia eleitoral, a liberdade cultural e nos costumes sociais, e muitas vezes a proteção econômica da social-democracia europeia. É verdade que nem sempre este cartão correspondia à realidade, dado que os Estados Unidos e seus aliados seguidamente patrocinaram, apoiaram ou conviveram comodamente com ditaduras sanguinárias na América Latina, na África, na Ásia e na Oceania.

Mais recentemente, os Estados Unidos e seus aliados se empenharam no apoio ao governo da Ucrânia contra a invasão russa.

Mas o encontro da sexta-feira no Salão Oval foi a demonstração de como o Bloco está mudando sua natureza, para dizer o mínimo. Ele não tem mais uma liderança; tem um patrão, Donald Trump, assessorado por um feitor, JD Vance. Dedo em riste, o patrão dita o que os seus ex-aliados, hoje súditos, devem ou não pensar, sentir e fazer. A estes cabe abaixar as orelhas e obedecer às ordens.

Surpresa? Nem tanto. Afinal, aquele patrão vem se comportando como os antigos reis europeus ao tempo das grandes navegações. Quer anexar territórios, comprando-os ou ocupando-os, nomear e renomear acidentes geográficos, criar balneários de luxo em terras devastadas por seus auxiliares, como em Gaza, e agora obter concessões comerciais e econômicas explorando as terras raras da Ucrânia como pagamento pelos serviços militares a ela prestados.

Quanto a Volodymyr Zelensky, ficou pendurado no pincel da guerra que está destruindo seu país, com as promessas de apoio por parte de uma União Europeia enfraquecida, acossada por sua extrema direita insuflada por uma das big techs, a de Elon Musk, que apoiam o novo monarca absoluto de Washington. Uma União que se vê ameaçada de afogar-se no redemoinho da irrelevância geopolítica.

Este é o novo “design” projetado pelo monarca absoluto da Casa Branca para o antigo bloco ocidental, que pode transformar-se em algo parecido com o cercadinho onde um hoje ex-presidente também autoritário fazia prédicas para seus fãs e crentes.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

Publicado originalmente na seção “O Mundo Agora”, da Rádio França Internacional (Brasil).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES