Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES*
Como Machado de Assis antecipou em 1897 o dilema contemporâneo de Francisco: “defesa do dogma sem agitação da guerra” diante de “fatos estabelecidos” que não podem ser desterrados do mundo
Em 24 de janeiro de 1897, Machado de Assis escreve uma crônica sobre a morte do arcebispo do Rio de Janeiro e começa com uma referência ao Papa: “Anteontem, quando os sinos começaram a tocar a finados, um amigo disse-me: “Um dos dous morreu, o arcebispo ou a papa.” Não foi o papa. Aquele velhinho transparente, com perto de noventa anos as costas, além do governo do mundo católico, continua a enterrar os seus cardeais. Agora mesmo, por telegrama impresso ontem, sabe-se que morreu mais um cardeal, com o qual sobem a cento e dezoito os que se tem ido da vida, enquanto Leão XIII fica a espera da hora que ainda 1he não bateu. Outro amigo meu, que já vira duas vezes o velho pontífice, acaba de escrever-me que o viu ainda uma vez, em dezembro, na cerimonia da imposição do chapéu a alguns novos cardeais. Descreve a forma da cerimonia, cheio de admiração e de fé, – uma fé sincera e singela, flor dos seus jovens anos. Ouvira uma missa ao papa, e, posto enfraquecido pela idade, este 1he pareceu resistir a ação do tempo”.[i]
Leão XIII foi um dos papas mais idosos que o mundo conheceu, tendo “reinado” por quase 30 anos.[ii] Chama atenção o fato de que a fé de seu amigo, descrita por ele como “sincera e singela” é considerada a “flor de seus jovens anos”. Seria a fé para o velho Machado de Assis uma coisa da juventude, dessas que o tempo se encarrega de levar embora? Mais adiante ele nos diz algo de assustadoramente atual sobre o velhíssimo papa, que, em alguma medida, pode ser relacionado ao nosso recém-falecido Francisco:
Também a luta para o arcebispo D. João não era a mesma; não havia a crise dos primeiros tempos em que se distinguiu. Era a luta de todos os dias, que a imprensa católica naturalmente mantém contra princípios e institutos que 1he são adversos, sem por isso concitar os fiéis a desobediência e a destruição. Leão XIII é o modelo dessa defesa do dogma sem a agitação da guerra, tolerando o que uns chamam calamidade dos tempos, outros conquistas do espírito civil, mas que, sendo fatos estabelecidos, não há modo visível de os desterrar deste mundo. Quem esperará que a Igreja reconheça nenhum outro matrimônio, além do católico? Mas quem quererá que recuse a benção aos que se casam civilmente? Não é só o imposto que se dá a César, ou não é só o imposto em dinheiro; é também a obediência as suas leis. A Igreja protestará, mas viverá.[iii]
A referência à “luta”, na primeira frase, diz respeito às lembranças do narrador que se lembra do arcebispo como um lutador, ou seja, alguém que se insere politicamente nas grandes questões do tempo e do lugar. E emenda o narrador: Leão XIII é o exemplo da “defesa do dogma sem a agitação da guerra”, o que o leva a ser julgado por uns como tolerante à “calamidade dos tempos” e por outro como alguém que aceitou as “conquistas do espírito civil”.
O mundo contemporâneo é realmente mais antigo do que parece: não é exatamente essa a mesma oscilação em relação a Francisco? Uns o veem como um apóstata que abraçou a pecaminosidade do mundo e outros como um modernizador que abraçou a realidade. E, na sequência da mesma frase, a coisa é colocada exatamente nestes termos, lembrando ainda o tino materialista do jovem cronista: o espírito civil ou a calamidade dos tempos ao qual o papa teria se curvado não é mais do que “fatos estabelecidos” que simplesmente não podem ser desterrados do mundo.
A mesma questão sobre a Quanta Cura volta: sendo o Estado moderno um fato que não pode ser desterrado do mundo, como vão receber os bispos uma encíclica que nega como erro tudo o que estrutura o Estado em que eles mesmos vivem? Vão se engalfinhar com o Estado, ao qual, na verdade, estão ligados por laços econômicos e sociais? Resta a solução de Leão XIII: defesa do dogma sem incitação à guerra. É o contrário, ao que parece, de seu predecessor: defesa do dogma inclusive por meio da guerra.

A atualidade da crônica fica evidente logo na frase seguinte (ou talvez seja a nossa caducidade que salte aos olhos): quem vai esperar que a Igreja reconheça um matrimônio que não aquele por ela performado? Essa disputa eles perderam: o matrimônio é uma instituição hoje da vida civil. Mas o teor do problema continua: quem espera que a Igreja de fato reconheça o casamento entre pessoas do mesmo sexo? Quem esperará que ela reconheça pessoas transsexuais? Quem esperará que ela admita o divórcio? E a emenda do narrador parece ter sido escrita por Francisco: mas quem quererá que ela recuse sua bênção aos que se casam civilmente? Quem quererá que ela recuse sua bênção aos homossexuais que se casam? Quem quererá que ela recuse sua bênção aos transsexuais que são vitimados cotidianamente neste mundo? Quem quererá que ela não dê sua bênção aos divorciados?
O cronista bem sabe que os que dizem que o papa tolera a calamidade dos tempos são os que não querem, mas o bom senso dos tempos os irá desautorizando. Mas vejam que a solução de Francisco, numa entrevista ao programa 60 minutos que viralizou, é exatamente a do nosso velho Machado de Assis: “Não, o que eu permiti não foi abençoar a união. Isso não pode ser feito, porque este não é o sacramento. Eu não posso, o Senhor fez dessa maneira. Mas abençoar cada pessoa, sim. A benção é para todos. Para todos. Abençoar uma união de tipo homossexual vai contra o Direito dado por Deus, contra a Lei da Igreja, mas abençoar cada pessoa: por que não? A benção é para todos”.[iv]
A Igreja nunca aceitará o casamento homossexual em si, mas a benção às pessoas separadamente é para todos. A universalidade do amor de Deus é o que parecia o mover e, por isso, insistia que a mensagem do cristianismo é católica no sentido etimológico do termo. Ele dá uma boa volta na impossibilidade que eu havia apontado em relação à condenação explícita de São Paulo. Mantenho a condenação abstrata, mas acolho as pessoas e permito a presença de padres que abençoam uniões homoafetivas.
No cotidiano, como ninguém acredita na sacralidade dos sacramentos, o casamento homossexual está decretado pelo papa: ele permite que uma autoridade religiosa esteja presente e dê sua benção a cada pessoa individualmente. Parece que ele foi procurar algum detalhe para dar o drible na ortodoxia. Frei Betto disse, recentemente, que, na prática, isso significa mesmo a aprovação da união, uma vez que os ministros do sacramento, no caso do matrimônio, são os próprios noivos. São eles que se casam, servindo o padre apenas como “testemunha qualificada”[v].
Dito isso, lembremo-nos de que a sabedoria do velho Machado de Assis ainda está por aqui rondando a face da terra. A união de pessoas do mesmo sexo é um fato que não pode ser desterrado e a decisão da Igreja não veio antes de alguns protestos, apesar dos quais ela sobreviverá pela sabedoria de adaptação. E não se precisa ir tão longe: alguns anos antes, o próprio Vaticano havia negado essa tal benção, que havia sido pedida pelos bispos da Alemanha que, como todos sabem, estão numa relação muito complicada com o papado, chegando a ponto de se falar em cisma com o Vaticano[vi].
Notem a ironia da história: a possibilidade de cisma não é porque o papa é progressista demais, mas porque ele teria sido progressista de menos. Bom, no que se refere ao problema das bençãos, o Vaticano as negou num primeiro momento e os bispos da Alemanha, como a dinâmica da vida não pode ser desterrada, simplesmente resolveram desobedecer ao papa[vii]. Isso em 2021, porque, em 2023, apenas dois anos depois, lá vem o Vaticano e solta a famosa Fiducia Suplicans, e libera as famigeradas bênçãos, curvando-se aos fatos em vez de tentar fazer os fatos se curvarem a ele. A coisa foi logo recebida com felicidade na Alemanha[viii] e no resto do mundo ocidental-liberal. O drible na ortodoxia parece ser o papa tentando encontrar a solução para um problema real com o qual se defrontou.
No fundo, a Igreja deve a obediência às leis terrenas, entendidas não apenas como as leis positivas, como também às mentalidades e à moralidade que as instaura. Ela protestará, mas, como diz o velho Machado, sobreviverá.
Finalmente, Dom Casmurro
Ainda na mesma crônica em que está comentando a morte do arcebispo do Rio, o narrador, falando sobre a morte de outro ocupante desta mesma posição, D. Manuel do Monte Rodrigues, de que ele diz o seguinte: “A boca cheia de riso, como Frei Luís de Sousa refere de S. Bartolomeu dos Mártires, os olhos pequenos, com a pouca luz restante, coados pelos vidros grossos dos óculos de ouro, a benção pronta, a mão já tremula, o corpo já curvado, descia da sege episcopal, todo vestido de paz e sossego. Uma figura daquelas, na imaginação da criança, facilmente se liga a idéia da imortalidade. Um dia, porém, D. Manuel morreu. A terra, credor que não perdoa, e apenas reformará algumas letras, veio pedir-lhe a restituição do empréstimo. D. Manuel entregou-lho, aumentado dos juros de uma vida de virtudes e trabalhos”.[ix]
À ideia da imortalidade que ligava o jovem narrador à figura do arcebispo logo vem o primeiro golpe da maturidade: ele morre. Mas o que me interessa nesse ponto é o tipo de metáfora que é usada: a terra é um credor que apenas reforma algumas letras, vindo, finalmente, cobrar o tempo emprestado. A morte como a cobrança final, em relação à qual o bom arcebispo entrega os juros de vida de virtudes e trabalhos. As metáforas de tipo contábil são as mais recorrentes no Dom Casmurro no que se refere à vida religiosa e, por isso, constituem um fio condutor importante da narrativa[x].
O entrecho talvez seja um dos mais religiosos de nosso bruxo e, com certeza, um dos mais econômicos e contábeis. Basta que nos lembremos, quanto a isso, na contabilidade como má infinitude que são aquelas orações e mais orações que o Bentinho meio beato meio adolescente eternamente excitado oferece pra Deus em troca de não ter que ir ao seminário.
De fato, a relação com Deus é construída a partir do ponto de vista contábil, o que joga a questão religiosa, de uma vez, no campo dos interesses, ou seja, dentro de um mundo sem Deus. A Igreja como parte da vida política não é nenhuma novidade, como já no início o bom José Dias lembra a todos: “E depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o Padre Feijó governou o império…”.[xi]
A carreira religiosa do rapaz é entendida como caminho que pode levá-lo a ocupar posições de importância no mundo secular. Ser padre não é se afastar do mundo, pelo contrário, é encontrar uma forma de entrar nele. Daí que, na sua despedida, o tio Comes o dê a instrução prática: “Anda lá, rapaz, volta-me papa!”[xii]. Se Igreja é partido político e possibilidade de proeminência, o ser papa é o ponto mais alto a que se pode chegar.
E o voltar papa é lembrado pelo narrador num momento posterior com uma condescendência irônica em relação a si próprio: “Não fosse ele [o sexo feminino], e este livro seria talvez uma simples prática paroquial, se eu fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encíclica, se papa, como me recomendara tio Cosme: ‘Anda lá, meu rapaz, volta-me papa!’ Ah! por que não cumpri esse desejo? Depois de Napoleão, tenente e imperador, todos os destinos estão neste século”[xiii].
Compara-se a Napoleão, líder da modernização burguesa das relações sociais na Europa, símbolo máximo da possibilidade de ascensão social que o novo mundo instaura, e ao papa, representante do mundo velho que está sendo destruído (ma non troppo) pelo mesmo movimento de que Napoleão é uma espécie de guia. Ele barateia não o papa, que ganha na verdade em prestígio ao se aproximar de Napoleão, mas o próprio movimento do século, porque passa a supor a Igreja como uma estrutura do tipo do exército revolucionário francês. Ela, com certeza, é uma estrutura muito mais eficaz, mas pertence a um mundo outro, definitivamente ido. Isso, claro, para além do autoelogio despropositado, mas tão típico.
A atividade religiosa como prestígio social também aparece na figura do protonotário apostólico, título que o padreco que ensina latim ao jovem Santiago consegue do próprio papa: “Esta distinção do papa dera-lhe grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o título com admiração; era a primeira vez que ele soava aos nossos ouvidos, acostumados a cônegos, monsenhores, bispos, núncios, e internúncios; mas que era protonotário apostólico? O Padre Cabral explicou que não era propriamente o cargo da cúria, mas as honras dele. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de voltarete, e repetia: – Protonotário apostólico!’.[xiv]
O trecho é delicioso, porque coloca em evidência um hábito que ainda podemos encontrar nessa nova religiosidade conservadora que grassa por aí: o gosto pelo título como ostentação e prestígio social. E o papa, em última instância, é o ponto máximo: é ele quem confere a pequena honra que faz a felicidade dos imbecis de província, uma vez que ele é a quintessência do prestígio encarnado numa liturgia engrandecedora de sua figura.
O teor de mentira provinciana do entrecho é nítido, porque, a rigor, o velho padre Cabral trata logo de aumentar a importância do título: não é a cúria, mas as honras. Bom, por óbvio, não eram ainda as honras da cúria, mas o desejo pequeno pela distinção social, pelo gosto do título inusitado, pelo gosto de um título qualquer. O título qualquer faz a festa do grupinho de brasileiros que, não sendo nada na vida, admiram-se com qualquer baixeza que lhes vem à frente.
Há, portanto, dois elementos vinculados ao papa nesse início: de um lado, a carreira religiosa é um trampolim para o poder real, uma vez que a sociedade oitocentista estava estruturada de modo religioso; segundo, ela pode ser também prestígio desprovido de poder real, o que também vale numa sociedade mergulhada na mais profunda mediocridade.
Já indo para a discussão específica do papa, José Dias, nessa cena, tenta puxar uma conversa sobre “os primeiros atos políticos de Pio IX, grandes esperanças da Itália”. O esperto José Dias revela-se um bom conservador na defesa de um papa que era exatamente a desesperança da Itália em nome de seus Estados Papais. É esse mesmo José Dias quem proporá, a determinada altura, que Bentinho use como solução para seu imbróglio religioso-contábil uma visita ao papa que, por seu poder evangélico de desatar no céu e na terra, poderia liberar o adolescente interessado em casar com a vizinha da promessa-dívida contraída pela mãe. O que ele quer, todos sabemos, é ir conhecer a Europa e passar um tempo descansando em Roma às custas da família Santiago.
Mas sua justificativa é piedosa e ele constrói uma imagem que revela bem o caráter litúrgico e prestigioso da visita ao papa: “Levaremos cartas do internúncio e do bispo, cartas para o nosso ministro, cartas de capuchinhos… Bem sei a objeção que se pode opor a esta ideia; dirão que é dado pedir a dispensa cá de longe; mas, além do mais que não digo, basta refletir que é muito mais solene e bonito ver entrar no Vaticano, e prostrar-se aos pés do papa o próprio objeto do favor, o levita prometido, que vai pedir para sua mãe terníssima e dulcíssima a dispensa de Deus. Considere o quadro, você beijando o pé ao príncipe dos apóstolos; Sua Santidade, com o sorriso evangélico, inclina-se, interroga, ouve, absolve e abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recomenda ao santíssimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o que você amar na Terra seja igualmente amado no Céu…”.[xv]
A visita é solene e o que José Dias entrevê é um quadro em que o jovem se coloca aos pés de Sua Santidade para pedir a intercessão. Para além do caráter imaginativo da cabeça do agregado, temos mais uma vez a exacerbação litúrgica que faz parte não apenas de nossa mentalidade pequena de brasileiros para os quais a religião não mais é do que o ritual desprovido de sentido prático, como a natureza especificamente teatral do próprio papado como instituição.
Mas a cena precisa ser vista em seu objetivo: desatar uma promessa feita na terra também no céu. O papa é uma espécie de alfandega de Deus. Ela não é um líder religioso, mas alguém com quem se contrai dívidas e que tem o poder de perdoá-las quando achar adequado. A teatralidade serve para referendar a autoridade conferida pelo próprio Deus à figura de seu representante. Se Deus é visto no romance como um credor com o qual temos que lidar, o papa está no meio da disputa humana para fazer valer sua vontade de credor universal.
Não é aleatório que, no capítulo seguinte, Escobar vá propor a solução do substituto, também econômico-financeira, para um problema visto no romance mais como de ordem contábil do que religioso. Se a religiosidade é uma espécie de contabilidade divina, o papa é o contador-mor, o responsável pelas tabelas do céu. Sendo assim, ele não possui nenhuma função realmente transcendente, e a redução de sua participação à teatralidade litúrgica é apenas a confirmação.
Francisco uma última vez
Este texto parecerá azedo para ter sido escrito quando da morte de um papa mais ou menos querido por todos. A verdade é que Machado de Assis era pouco receptivo à própria fé, quem dirá à sua institucionalização partidária na forma de uma Igreja. É que o século XIX era muito mais progressista do que o nosso e encarava os problemas mais de frente, dando nome aos bois e encarando as disputas no que elas tinham de significativo e consequente.
A Igreja era, como continua a ser, o inimigo da secularização do Estado e da cultura, das liberdades e do fim das opressões. A única coisa que restava (e que nos resta) a fazer era (é) ser contra ela. Apoiar a Igreja, seja no seu modelo atual, seja uma Igreja mais democratizada e descentralizada é se alinhar com o atraso. E Machado, nesse contexto, era especialmente consequente. Compare-se com Eça de Queirós e se verá a diferença. O português era anticlerical, mas não chegava às raias da negação da própria fé como nosso Machadinho.
O que encantava em Francisco era exatamente o fato de que ele, na sua prática, incorporava um ideal de Igreja que, em última instância, teria como objetivo o seu próprio fim como instituição ou, pelo menos, uma alteração significativa na forma como a instituição funciona, de maneira a alterar-lhe a significação, isto é, o lado em o partido se posiciona. Isso, claro, numa leitura otimista, porque, ao fim e ao cabo, ele ainda era papa.
O que encantava nele não era exatamente seu papel institucional ou as altas políticas que ele tentou levar a cabo para democratizar (sinodalizar) a Igreja, mas o fato de que se comportava como um líder religioso que inspirava autoridade. E essa autoridade não vinha do fato de que ele ocupava uma posição de poder, mas da maneira como ele se portava. A autoridade moral não era do cargo, já mais do que desmoralizado pelos escândalos de pedofilia e de fraude bancária, mas da figura dele.
Foi o ter se caracterizado como “Bispo de Roma” naquela primeira aparição, foi o não ter usado as vestes suntuosas que cabem aos papas, foi o ter pedido à multidão que rezasse por ele no lugar de se imaginar o todo-poderoso que dispensa sua benção sobre os fiéis necessitados de salvação. Foi o ter sido enterrado de forma mais simples, com seus sapatos gastos, num túmulo sem luxuosidades. Isso foi o que lhe deu autoridade moral para dizer contra o genocídio em Gaza e ser escutado. Isso foi o que lhe deu autoridade moral para espalhar sua mensagem de esperança e fé na humanidade e empolgar multidões.
Foi Francisco-papa e não o papa Francisco quem encantou. No fundo, foi o ter continuado a ser um jesuíta quando elevado à posição máxima de sua Igreja que o tornou uma liderança espiritual como poucas. Foi o sempre se lembrar, como nos instrui Santo Inácio nos Exercícios Espirituais, de que não passa de um pobre pecador que o aproximou de todos. Foi o ter se imaginado apenas mais um soldado de Cristo do que o representante privilegiado de Deus na terra que fez dele a figura carinhosa que era.
São Domingos de Gusmão, o fundador da Ordem dos Pregadores, os Dominicanos (dos quais Frei Betto faz parte), reza a lenda que teria iniciado sua atividade como pregador junto a grupo de hereges do sul da França chamados de cátaros. Os monges cistercienses que teriam ido tentar convertê-los de volta ao catolicismo fracassaram na missão e, reza a lenda (é lenda mesmo, estou falando de hagiografia) que São Domingos teria notado que o motivo do fracasso não era a inabilidade dos monges de provar seus argumentos, mas o fato de que a vida que levavam, as vestes suntuosas principalmente, não se comunicava com o modo de vida austero daqueles hereges.
Daí a ideia de fundar uma Ordem de Pregadores que fosse mendicante, ou seja, que submetesse seus membros a uma vida severa que servisse como exemplo, como origem de uma autoridade moral que tornava seus argumentos intelectualmente elaboradíssimos[xvi] algo que valesse a pena escutar. Foi fazendo assim, reza a hagiografia, que ele teria conseguido converter os cátaros. Pregação sem autoridade moral é conversa fiada. Francisco está junto desse grupo de pregadores que foi capaz de se fazer ouvir não só pela razão das palavras, mas por elas virem de alguém que merecia ser ouvido.
Figuras desse tipo fazem falta num mundo em que a expressão “autoridade moral” parece ter perdido completamente o sentido. Em qualquer campo da atividade humana elas fazem falta e parecemos mergulhados num mar de hipocrisia e pouca-vergonha. O pastor coach e o frei de redes sociais (os padres Amaros do nosso mundo) são só um exemplo da lama em que temos nos chafurdado num campo que deveria inspirar um mínimo de introspecção e autoanálise. Imagine-se nos outros, em que o exame de consciência não apenas é dispensado como abertamente desaconselhado.
As figuras que possuem autoridade moral, além de normalmente estarem do lado certo da história, correm por fora das instituições das quais fazem parte. Pelo menos, de suas linhas dominantes. Isso pode sempre ser visto de duas formas: primeiro, negativamente, como um sopro de vida numa instituição que deveria era acabar de uma vez por todas; segundo, positivamente, como um reposicionamento de uma instituição que não está nosso alcance vencer na disputa política e ideológica. As duas coisas são verdades. Bom mesmo será um papa que acabe com o papado. Mas até chegarmos lá que os papas que estão no poder não sejam um Pio IX da vida, mas um Francisco, pastor com cheiro de ovelha.
*Filipe de Freitas Gonçalves é doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Para ler o primeiro artigo da série, clique em https://aterraeredonda.com.br/o-papa-na-obra-de-machado-de-assis/
Para ler o segundo artigo da série, clique em https://aterraeredonda.com.br/o-papa-na-obra-de-machado-de-assis-parte-2/
Notas
[i]Machado de Assis, A Semana, 24 de janeiro de 1897. In: OCMA, v. 4, p. 1272.
[ii]Viveu tanto o velho papa que foi o primeiro a ser registrado, já bem idoso, em vídeo. A gravação pode ser conferida aqui: Raríssimo Vídeo do Papa Leão XIII. Acesso em 26 de abril de 2025.
[iii]Machado de Assis, A Semana, 24 de janeiro de 1897. In: OCMA, v. 4, p. 1273.
[iv]Disponível em: Pope Francis clarifies his stance on blessing same-sex couples | 60 Minutes .
[v]Disponível em: Caminhos da igreja católica e da religiosidade depois do Papa Francisco. Acesso em 25 de abril de 2025.
[vi]A situação transcende e muito a questão do casamento homossexual. Sobre isso, ver: Vatican finally reins in German bishops over ‘schismatic’ synodal agenda – Catholic Herald . Acesso em 25 de abril de 2025.
[vii]Ver: German priests defy Vatican to bless gay couples . Acesso em 25 de abril de 2025.
[viii]Ver: German Bishops: Blessings of Same-Sex Couples Should Be Done With ‘Appreciation’| National Catholic Register . Acesso em 25 de abril de 2025.
[ix]Machado de Assis, A Semana, 24 de janeiro de 1897. In: OCMA, v. 4, p. 1272.
[x]O assunto já foi estudado com mais atenção num artigo de Bluma Waddington Villar (Um caloteiro devoto: a contabilidade moral em Dom Casmurro. In: João Cezar de Castro Rocha. À roda de Machado de Assis: ficção, crônica e crítica. Chapecó: Argos, 2006, p. 179-230), além de ter sido comentado também por John Gledson em seu clássico estudo sobre a obra (Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro. Tradução de Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, 2019).
[xi]Machado de Assis, Dom Casmurro. In: OCMA, v. 1, p. 908.
[xii]Machado de Assis, Dom Casmurro. In: OCMA, v. 1, p. 960.
[xiii]Machado de Assis, Dom Casmurro. In: OCMA, v. 1, p. 972
[xiv]Machado de Assis, Dom Casmurro. In: OCMA, v. 1, p. 943.
[xv]Machado de Assis, Dom Casmurro. In: OCMA, v. 1, p. 1001. O trecho em que José Dias e Pádua disputam a vara numa procissão do santíssimo também é exemplar quanto ao significado puramente litúrgico (exterior) da sua concepção de religiosidade. Participar numa determinada posição na procissão era uma questão de prestígio social e não de participação concreta na vida da comunidade. Tanto é assim que, quando surge outa vara que poderia ser levada por Pádua, José Dias o constrange a ceder a honra ao jovem Bentinho que o acompanhava. Não se imagine que para Pádua a questão era menos de prestígio do que para José Dias. O narrador nos informa: “A distinção especial do pálio vinha de cobrir o vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com que entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto que cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o administrador regres sava ao antigo cargo…” (Machado de Assis, Dom Casmurro. In: OCMA, v. 1, p. 936). A liturgia serve, portanto, como espaço para a manifestação dos pequenos egos, dos interesses inconfessáveis e daquela “sede de nomeada” de que fala o Brás Cubas.
[xvi]Os dominicanos foram importantes cientistas no início da modernidade e merecem ser reconhecidos por isso. Basta lembrar que Giordano Bruno era um deles. Ou, ainda antes, que São Tomás de Aquino também era um dominicano e que sua argumentação sobre a racionalidade da fé era um exemplo de sistematização teológica. Eles encarnam bem o carisma do estudo levado a sério proposto por São Domingos. O outro lado da história é que os dominicanos, exatamente por terem em seu carisma a preservação da fé pelo estudo rigoroso, foram em larguíssima medida responsáveis pela Inquisição depois de Trento. Que não se esqueça que foram os dominicanos, na tradicional disputado do século XVII, que levaram o Pe. António Vieira para a mesma “cadeirinha de Galileu Galilei”.
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