O peso do anel

Imagem: kwnos Iv
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Por GUILHERME DEFINA*

O papado de Leão XIV consolida o Vaticano como guardião do dogma, confirmando que a transformação da Igreja, se vier, nascerá das ruas – não do trono de Pedro

1.

Diz-se, com certa solenidade, que todo novo papa inaugura um ciclo. Há quem veja nisso o sopro do Espírito Santo, há quem veja o giro das engrenagens do Vaticano. Mas há ciclos que já nascem encerrados, envoltos não em expectativa, mas em reconhecimento tácito da continuidade, da repetição litúrgica de um rito que, embora envolva fumaça branca e aclamações de multidão, é menos uma abertura que uma recondução ao centro imóvel da tradição.

Foi o que muitos perceberam em 8 de maio de 2025, quando o cardeal Robert Francis Prevost emergiu da Capela Sistina como Leão XIV – o primeiro pontífice estadunidense da história. O nome, já em si, era revelador: evocação régia, talvez inconsciente eco absolutista, que soava menos como promessa de ruptura e mais como reverência à autoridade sólida e sem arestas.

O passaporte norte-americano do novo papa provocou reações imediatas, torções de cenho em muitos setores. A pergunta não era só geopolítica, mas simbólica: estaria o trono de Pedro sendo ocupado por mais um operador da ordem ocidental? Estaria a Santa Sé, guardiã de mistérios e tradições seculares, abrindo-se enfim à hegemonia cultural da potência que há séculos influencia o mundo católico por vias indiretas – via doações, diplomacia, universidades, ou mesmo pela força difusa de seu imaginário moral?

A desconfiança inicial foi atenuada, contudo, pela descoberta da trajetória pessoal de Prevost: décadas de missão no Peru, envolvimento com comunidades pobres, escuta atenta aos marginalizados, e um perfil pastoral marcado por equilíbrio entre firmeza doutrinária e afeto evangélico. As visitas a campos de imigrantes, sua fluência no espanhol latino-americano, sua presença discreta em fóruns inter-religiosos – tudo isso compôs uma figura ao mesmo tempo palatável ao colégio cardinalício e inspiradora para os que ansiavam por continuidade em relação aos gestos “bergoglianos”.

As primeiras palavras do novo pontífice também indicavam uma intenção conciliadora. Falou-se de paz, de diálogo, de compromisso com os mais frágeis. Um papa do “acolhimento”, disseram alguns. A esperança reacendeu-se – compulsiva, quase ritualizada, como se cada novo rosto branco no balcão da Basílica fosse a encarnação de uma promessa adiada, de uma Igreja que enfim daria o passo necessário em direção aos que dela se afastaram ou foram expulsos. Mas a esperança, como tantas vezes na história eclesiástica, durou pouco.

2.

A recente declaração de Leão XIV, reiterando que a família se funda na “união estável entre um homem e uma mulher”, caiu como um véu pesado sobre essa expectativa. Não houve surpresa, é verdade: o catecismo da Igreja Católica é explícito, e nenhum dos gestos prévios do novo papa indicava inclinações heréticas ou mesmo revolucionárias.

Ainda assim, a fala soou como um fechamento – mais simbólico do que doutrinário, mas ainda assim profundamente eficaz. Não foi a doutrina que falou, mas o gesto de reafirmá-la no momento em que muitos esperavam outra coisa. Foi um lembrete – um lembrete melancólico, talvez cínico, de que a Igreja, por sua própria natureza institucional, existe antes para preservar do que para transformar.

Essa constatação – que em outros contextos pareceria trivial – adquire força existencial quando projetada sobre o imaginário popular acerca do papa. A figura do pontífice continua cercada de expectativas messiânicas, mesmo entre os mais críticos. E é aí que emerge a verdadeira pergunta, que não é teológica, mas existencial e quase antropológica: ainda vale a pena esperar algo de um novo papa? Ou, dito com menos delicadeza, é possível esperar qualquer coisa da própria figura do papa?

 Mais do que um indivíduo, o papa encarna a figura do zelador do templo – aquele cuja função é conservar os alicerces, administrar os espaços sagrados e proteger os dogmas do desgaste do tempo. A imagem do pastor universal, aberta e afetiva, convive mal com as engrenagens da cúria, com as exigências do direito canônico, com as pressões de facções internas que disputam a alma da Igreja há séculos. O papado é, antes de tudo, uma função de equilíbrio.

Nesse sentido, Francisco foi – e talvez ainda seja – a exceção que confirma a regra. Suas encíclicas ousadas, sua retórica pastoral, sua teologia da misericórdia, seus gestos de aproximação com o mundo laico e pluralista, tudo isso desenhou uma figura em tensão permanente entre tradição e profecia. Mas mesmo ele, em seus silêncios sobre abusos, em sua cautela institucional, em seus limites autoimpostos, mostrou o quão árduo é mover milímetros dentro do Vaticano. Não por fraqueza pessoal, mas pela natureza mesma do sistema eclesiástico que encarna.

3.

Leão XIV, ao que tudo indica, não se propõe a prolongar essa tensão. É antes um retorno polido ao centro estático da doutrina. Sua diplomacia refinada, seu chamado à paz – de tonalidade moral e ecumênica –, seu repúdio ao aborto e sua defesa da “família natural” constituem uma reconciliação com o modelo tradicional de liderança pontifícia. Não há agressividade. Não há choque. Mas também não há novidade. E talvez seja exatamente isso que mais decepciona: não uma recaída conservadora, mas a previsibilidade da repetição.

O novo papa não frustrou por ser retrógrado – ele frustrou por ser previsível. Por confirmar, com cortesia e autoridade, aquilo que tantos já sabiam, mas preferiam ignorar: que a figura do papa é, acima de tudo, a de um guardião. Guardião da ortodoxia, do rito, da estabilidade institucional. E por isso mesmo, suas palavras, por mais cuidadosas e elegantes, soam duras aos ouvidos de quem esperava acolhimento. Ele não exclui – mas também não convida. Estende a mão – mas dentro de limites estritos. Sua Igreja permanece aberta, mas apenas até o limiar onde começa o dogma.

Francisco, com todos os seus paradoxos, encarnava o drama de uma instituição dividida entre o peso do passado e os clamores do presente. Era possível ver nele uma figura trágica, no sentido clássico: alguém que, mesmo com intenções proféticas, era arrastado pelas correntes profundas da estrutura a que servia.

Já Leão XIV parece dispensar o drama: escolhe a harmonia, a previsibilidade, o gesto suave, o silêncio confortável. Mas essa harmonia tem um custo. E o custo é o silenciamento de muitos. De todos aqueles que já compreenderam, após tantas tentativas e esperanças frustradas, que o papa não é um profeta – é um gestor do sagrado. Não um pastor das periferias, mas o guardião do centro.

Resta, então, uma última questão – e talvez a mais difícil de todas: ainda faz sentido esperar algo de quem cuida do templo? Ou é chegada a hora de, enfim, desviar os olhos da cúpula e voltar à praça? A praça onde a fé, silenciosamente, sem bulas, sem encíclicas, sem anéis de ouro, já começou há muito a se reinventar.

Onde mulheres lideram comunidades, onde casais do mesmo sexo rezam juntos, onde migrantes constroem liturgias híbridas, onde o Evangelho é lido em chave de resistência. Talvez ali esteja o novo rosto da Igreja – não no trono petrino, mas na mesa compartilhada. E talvez seja tempo de aceitar que a revolução, se vier, não virá do alto.

*Guilherme Defina é mestrando em ciência política pela Unicamp.


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