Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES*
Alguém imagina que uma Ong brasileira pudesse, direto de Washington, recepcionar denúncias de assédio sexual de algum Secretário de Estado de EUA?
Dedico este ensaio a Silvio Almeida e a Alysson Mascaro; e a todas e todos cancelados pela diversidade do mesmo, a saber, a da cegueira relativamente à interface da tragédia sem fim do massacre dos palestinos com a guerra de espectro completo do sistema imperialista euro-norte-americano contra a América Latina, a África, a Ásia, a Oceania, contra a classe trabalhadora mundial; e a mim também porque me cancelaram por ter como lugar de fala irrecusável a soberania nacional-popular.
“Má GENTE, de má paz; deles, quero distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou, idade é qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. Quero falar alto. Lopes nenhum me venha. Que às dentadas escorraço. Para trás, o que passei, foi arremedando e esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem.”
(João Guimarães Rosa, “Esses Lopes”, 1985, p. 55)
O mito unipolar e o cancelamento da diversidade multipolar
Em Origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), Friedrich Engels argumentou que no último período da pré-história, ao mesmo tempo da criação de gados, do processamento do metal, da tecelagem e das atividades agrícolas, os valores de troca se sobrepuseram aos valores de uso e, nesse contexto, tanto as mulheres quanto a mão-de-obra passaram a ser compradas, como “posse privada das famílias e foram rapidamente multiplicadas, essas riquezas representaram um duro golpe para a sociedade fundada sobre o casamento do par e a gens de direito materno” (Engels,2019, p.73).
Adviria, a partir daí, a sociedade da patrilinearidade, em que a descendência passaria a ser referenciada pela linha da gens do homem, ocupando o lugar da matrilinearidade, em que reprodução da sociedade, seu porvir comunitário, era baseada na linhagem feminina, de mãe para filhas.
E qual seria a diferença de uma sociedade matrilinear para um patrilinear? Recorro, para interagir com esta pergunta, à psicanálise de Jacques Lacan. No seu O Seminário, livro 23: o sinthoma, disse o seguinte “[…] A-mulher da qual se trata não é um outro nome de Deus e é por isso que, como eu disse muitas vezes, ela não existe” (LACAN, 2007, p.14). O psicanalista francês retomou a questão da perplexidade freudiana sobre a mulher (como compreendê-la?) para reformulá-la na interface com conceito de inconsciente de forma aparentemente inusitada: “ela não existe”; e não existir não é uma ofensa e tampouco uma maneira cínica de ser misógino. É, pelo contrário, uma potente humildade, fora de qualquer tipo de afirmação de si sem respaldo científico-histórico, o que a rigor ocorre quando se acata o sistema de aparência da apologética do mundo existente; ou, dizendo de outro modo: quando as relações sociais de produção são vividas como se fossem uma espécie de segunda natureza e não o resultado de um processo histórico real e em movimento contínuo.
E pode uma humildade ser potente? Sei que estou, como canta Tom Zé numa canção sua[i], confundindo ao invés de explicar, mas é de propósito. A mulher de que tratou Jacques Lacan é a da matrilinearidade, podendo ser representada pelo conjunto vazio: Ø⊂A, isto é, o vazio, representado por sua notação matemática Ø, está contido em A, está, assim, em todos os lados, no sujeito, em quaisquer, sendo a sua essência inessencial ou a sua inessência essencial, sob a forma de passado, esses vazios não contados de vidas sem ser; de presente, com seus múltiplos vazios; e, sobretudo de futuro, uma vez que a vida é daqui para frente e é a partir do vazio do advir que tudo pode ser diverso de o que tem sido, resgatando a potência ascendente do trabalho criativo e vital dos vazios anteriores, compreendidos como existências inexistentes, porque ocultadas, porque impedidas, porque violentadas, porque não expressadas, como as existências dos latino-americanos, dos africanos, dos asiáticos, da superexplorada classe trabalhadora mundial; dos palestinos, das gentes e ecossistemas da Maioria Global destruídos pela presunção e arrogância das existências da ordem das coisas advindas das relações sociais de produção improdutivas do unipolar e patrilinear sistema imperialista ocidental liderado por EUA.
E a confusão persiste, bem sei; e para confundi-la, quero dizer, esclarecê-la, cito novamente o psicanalista francês, desta vez de O Seminário – Livro 19... ou o pior (2011), considerando o fragmento que segue: “Portanto, é a partir desse existe um, é com referência a essa exceção, que todos os outros podem funcionar. Só que, vejam, compreendendo muito bem que podemos escrever a rejeição da função, ɸx negada, ou seja, não é verdade que isso se castre. É esse o mito. Mas o que os espertinhos não perceberam que isso é correlato à existência e que formula o existe desse não é verdade da castração” (Lacan, 2012, p.35). Por mais complicado que pareça, Lacan estava a dizer que o vazio está em tudo e tudo (as existências da patrilinearidade) começa pelo número 1, razão por que repetia constantemente: existe o um (1). Ocorre que o 1 não é a origem, não é o que vem primeiro, pois é antecedido pelo zero, que assinala, como zero que é, que a origem não existe. O um (1) é o conjunto das partes do vazio – ele é, assim, também, o não-existente no vazio que há em si, no número 1 e em tudo que existe. O símbolo (Phi) ɸ, a decima primeira letra do alfabeto grego, pressupõe a união entre o Um (1) e o zero, com o Um (1) cortando ao meio o zero. A questão posta, entretanto, é: no começo era o zero, porque o zero está contido em tudo – é transversal, razão pela qual Lacan disse na citação acima: “Não é verdade que isso se castre. E esse é o mito”.
Quer dizer, o mito é pensar que o Um (1) seja tudo que existe, a origem, o meio e o fim; o mito é acreditar que a castração, esse vazio em tudo, não exista, não possa (te)ser. O mito é “que formula o existe desse não é verdade da castração” (Lacan, 2012, p.35); mito que invisibiliza a potência ascendente comum ( o zero está em tudo) do trabalho da diversidade das gens da matrilinearidade; mito, para repeti-lo (impõe-se pela repetição de si), que é a razão de ser da violência de gênero e, por extensão, do racismo e também da superexploração da classe trabalhadora e da natureza – mito que representa uma longa tradição do oprimido, ancorada no cancelamento negacionista da matrilinearidade ou da ciência revolucionária da igualdade em diferença de tudo que houve, há e haverá, como vazio que se faz universalmente presente na sociedade e na natureza; mito, enfim e em começo, que tem sido dominante na história oligárquica (há um) do Ocidente, desembocando no contemporâneo no cancelamento de tudo que seja multipolar; o Sul Global.
Cultura das diversidades democráticas
Há em potência e ato, no contexto apresentado, duas culturas: i) a da matrilinearidade ou universalidade da castração que se faz marcar no corpo feminino (conjunto vazio; não ter um falo, não ser o 1 sem o vazio) como cifra de “a origem não existe” e, não existindo, no mundo, é a igualdade entre os seres, a ciência, a política, a filosofia, a arte que realmente importa, posto que é sempre a presunção de uma origem exclusiva (há 1) o motivo de base das desigualdades ;ii) e a cultura do mito de só “existe Um (1)”, na pressuposição de que seja tudo que exista, cancelando o “a mulher não existe” – a mulher, sim, que está em tudo que há, que existe, poque é o zero à esquerda da cultura da universalidade científica que importa, a que subtrai o um, as marcas, as existências que se impõem como as únicas possíveis – a do homem , significante de o um (1), e a sua patrilinearidade de filho para filho, pois ao subtrair-se e, assim, desmarcar-se configura o movimento sem fim da universalidade do vazio, princípio aberto de uma ética ancorada na consciência humilde e potente da interindependência ou interindependência entre os seres, que jamais são existência em si. São como outras e outros, com as outras e outros, planetariamente.
Ser com outrem sendo outrem não significa cancelar o “há um”; significa dialética entre o vazio que há no “há um” e o próprio “há um”, e dois, e três, e quatro… compartilhando a castração comum, vivos e mortais que são os seres – e isso é democracia, compreendida na sua potência ascendente do governo dos comuns, a decidir no vazio a solidariedade e cooperação entre as existências sem famílias e sem Estado das propriedades privadas da cultura da patrilinearidade. Diversamente da cultura democrática, existe a cultura da demagogia, assim perspectivada, em seu estilo próprio, por Lacan no seguinte trecho de O Seminário – Livro 19… ou o pior: “Mas eu lhes pergunto na situação da cultura em que nos encontramos: de quem somos irmãos?” (LACAN, 2012, p. 226), para, ato contínuo, sugerir que o Um como cultura dos irmãos, assim interpreto, é a cultura demagógica dos filhos da patrilinearidade, dissimulando não terem origem, isto é, não terem pai, ao mesmo tempo que ocupam o lugar deste multiplicando o cancelamento da cultura dos vazios que habita os seres, de modo matrilinear; e substituindo-a pela cultura do “há um”, “há dois”, “há três”, “há quatro”…, produzindo, assim, diversidades a serviço de um invisível e divinizado pai. Com isso é possível afirmar a existência de duas formas de diversidade; a da cultura da matrilinearidade e da patrilinearidade, com o nome, na civilização do capital, de profusão sem fim de mercadorias fetichizadas; e o fetiche, bem entendido, é o culto ao pai, a Deus, ao cancelamento da igualdade; culto de quem não vê longe, os vazios de existir, fechando-se com a apologética de suas próprias existências, como se fossem tudo que há (um); o mito.
Em O Seminário 23 – o sinthoma, analisando a produção ficcional do escritor irlandês James Joyce, sobretudo a personagem Stephen do romance Ulisses (1922), em tom sarcástico disse: “Retornemos a Stephen, cujo nome também começa por um S. Stephen é Joyce na medida em que decifra seu próprio enigma. Ele não via longe porque crê em todos os seus sintomas. É muito impressionante” (Lacan, 2007, p. 67). E, nesse contexto, quais são os sintomas? Em termos de Jacques Lacan é: a cultura do Um como conjunto das partes do vazio impõe-se como se fosse tudo que existe e pode existir, na pressuposição de que em si não haja o zero, o que engendra este sintoma patriarcal, como a de Stephen: “Ele não via longe”(Lacan, 2007, p. 67), porque tende a ver a si mesmo, suas próprias particularidades e identidades, ao iludir-se com o Um sem o vazio, o S, significante que remete, também e talvez antes de tudo, ao falo, ao pênis– e tudo ocorre sob o signo de um imaginário típico das crianças da patrilinearidade, enfeitiçadas com a identidade do um (1), como se fora tudo que existe, representada por este enredo metafísico: “O menino aponta o dedo (justo o dedo, esse Um) para a xoxota da menina e diz: Não tem pinto!” Logo, não existe, estando castrada!
Ora, se “A-mulher da qual se trata não é um outro nome de Deus” (LACAN, 2007, p.14), é possível inferir a respeito: i) que a cultura de sua castração é universalmente humana, além de estar na natureza e na sociedade, sendo a cultura da diversidade democrática; ii) que a cultura do sintoma, o de Stephen, esse S de significante, ressoa outro nome de Deus, pressupondo a cultura dos não-castrados e da demagogia – o fascismo, o nazismo, o machismo, o racismo, são, assim, sintomas de uma cultura de quem estupra, mata, brutaliza para fugir da cifra do real (o zero), evitando a todo custo o vazio que habita os seres. N’ O Seminário: Livro 20, mais ainda (1985) dirá, considerando o contexto em pauta: “O que é isso? – senão o que a importância da masturbação em nossa prática sublinha suficientemente, o gozo do idiota” (LACAN, 109, 1985), o que, ampliando o foco, pode ser interpretado como: acreditar no seu sintoma, isto é, nas suas marcas, nas suas identidades essencilizadas ( sem vazios, sem castrações) diz respeito ao universo de uma cultura do gozo dos idiotas, independentemente de quem, na diversidade demagógica, demarca-se nessa cultura; homens, mulheres, homoafetividades, etnias; identidades.
Os dois semblantes que fingem não ser da cultura do cancelamento de EUA
Designo, aqui, o vazio como potência ascendente do trabalho comum da alteridade, categoria que deve ser analisada como a instância da castração em contraponto a uma identidade sintomática, por, como Stephen de Joyce, acreditar-se plena, embora seja preciso afirmar filosoficamente o seguinte: nem toda identidade se goza como idiota, desde que se permita e se faça ser também alteridade. Ambas, alteridade e identidade, para dialogar com Hegel de A ciência da lógica, constituem uma “unidade do ser e do não ser – ou seja, em forma mais refletida, da unidade do ser diferente e do ser não diferente – ou da identidade da identidade e da não identidade” (Hegel, 2011, p.219), ainda que, no que diz respeito à filosofia idealista do filósofo alemão, unidade signifique, no limite, unidade entre o objeto e o subjetivo (o sujeito), no plano do saber absoluto, do puro ser; e ainda assim, mesmo em Hegel, o não ser ( a castração) está contido no ser, esse vazio que o impulsiona dialeticamente para o salto ontológico da transformação da quantidade em qualidade.
Para haver dialética, pois, a alteridade (o ser da castração) deve ser o ser fazendo-se identidade, para, de seu vazio ou de sua alteridade, ser identidade de identidade e a um tempo alteridade de alteridade, na unidade da contradição não rumo ao saber absoluto, à moda de Hegel, mas sim ao comunismo dos povos, que jamais existirá enquanto tal, estilo “agora sim, está aqui a sociedade comunista!”, perspectiva, à sua maneira, compreendida por Jacques Lacan, se se considera o subtítulo do O Seminário – Livro 18, por um discurso que não fosse o semblante, por mim aqui interpretado como um discurso que não fosse o semblante da patrilinearidade ou de “há um (1)”, argumento que me faz retomar novamente ao Seminário – Livro 19…ou o pior, no qual é possível ler : “Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele” (Lacan, 2011, p.227). A citação apresentada é precedida, no parágrafo anterior do livro, da seguinte frase que apresentarei incompleta, para, após, fazer uma pergunta a respeito: “Em tudo isto, não lhes falei em absoluto do pai…”(Lacan, 2011, p. 227). De que pai, o da patrilinearidade, o do patriarcado? Sim, diria, sendo, para retomar o psicanalista francês, o pai “que unia […] que não pode deixar de se basear tudo o que há de universal. E quando voltamos à raiz do corpo, se revalorizarmos a palavra irmão, ela voltará a todo pano para o nível dos bons sentimentos” (Lacan, 2007, p. 227).
Em interface com Luiz Alberto Moniz Bandeira de A segunda guerra fria (2013), tenho pesquisado, escrito e defendido que o período de hegemonia estadunidense divide-se em duas fases de eterno retorno à raiz do corpo do filho e da filha, concebidos como sintomas do pai Ocidente colonial e imperialista europeu, sobretudo o pai britânico, embora dissimule demagogicamente ser um sem pai, o que significa, interagindo com Lacan, que o semblante supostamente sem semblante da hegemonia ianque constitui-se como a última palavra sobre o racismo e a violência de gênero contra os povos da Maioria Global, sob a forma de excepcionalismo identitário desprovido de alteridade, afirmando aos quatro cantos do mundo os seus, na suposta esquerda, sintomas com cada sopro pneumático e divino de “eu sou negro”, ao estilo da Terra prometida estadunidense, e assim “eu sou mulher”, “eu sou diversidades identitárias”, incluindo no mesmo semblante a cara escarrada do pai, com o retorno, à direita, do fascismo, do nazismo, do sionismo cristão, ao instalar-se, como sintoma, do messianismo do Antigo Testamento, com diferença de que o primeiro lado se expresse como super girl e o segundo como super brother – e ambos como filhas e filhos do big brother num mundo em que a diversidade está fundamentada na raiz de seus respectivos corpos, demagogicamente, como cultura dos irmãos sem o pai, tornado, o pai, onipresente, entretanto, nos seus séquitos de séquitos de séquitos; nas diversidades da patrilinearidade unipolar.
A primeira fase ou o primeiro semblante demagógico (supõe não existir mais o semblante) da diversidade da patrilinearidade despótica de EUA é o da primeira Guerra Fria contra o eixo socialista, contra a URSS, contra a primeira versão/emergência do mundo multipolar, com epicentro na Conferência de Bandung de abril de 1955, realizada na Indonésia, com a participação de 29 países africanos e asiáticos, o que pode e é designado como o primeiro despertar do Sul Global. Para se contrapor ao levantamento dos povos, os Estados Unidos, via indústria cultural, simularam demagogicamente um mundo sem semblante, sem pai, sem patriarcado, dos brothers, inventando a juventude transviada, com seu Maio de 68 na França, com o seu Festival de Woodstock em 1969, com o irracionalismo anarquista instalado na raiz do corpo psicodélico e sem limites do “eu sou um jovem ao estilo ianque de ser”, argumento que me faz retomar Engels de A origem da família, da propriedade privada e do Estado, considerando o seguinte trecho relativo ao étimo da palavra família: “Famulus designa o escravo doméstico e família é o conjunto de escravos que pertencem a um homem” (Engels, 2011, p.76), salientando que esse ‘um homem”, na era dos brothers ianques traduz-se como o “big brother”, o irmão de todos os irmãos ou o filho da última palavra da patrilinearidade ocidental, que finge demagogicamente não ser o pai Ocidente, sendo-o mais ainda o da propriedade privada e do Estado ultraimperialista do imperialismo dos imperialismos precedentes, incluindo o japonês.
Como última fase do capitalismo, se o imperialismo, em diálogo com Edward Said de Cultura e imperialismo, designa “a prática, a teoria e as atitudes de um centro metropolitano dominante governando um território distante” (Said, 2011, p. 42), o imperialismo estadunidense, por mim chamado de ultraimperialismo, diferentemente do europeu, constituiu-se a partir da Segunda Guerra Mundial como unipolar, abolindo na prática o Governo dos territórios distantes, seja porque conseguiu sobrepujar seus concorrentes europeus, seja porque emergiu numa fase em que a acumulação capitalista tornou-se de fato mundial, seja ainda e em consequência, (inclusive em função do monopólio da indústria cultural) porque transformou a família, a propriedade privada e o Estado em portas giratórias de sua patrilinearidade planetária, com a pretensão objetiva de fazer do mundo o seu famulus.
No interior do semblante de um suposto não semblante da primeira Guerra Fria ianque contra a Maioria Global, a palavra de ordem de seu inconsciente patriarcal foi esta: cancelar a esquerda revolucionária, lançando-a no limbo da história na pressuposição de que fosse anacrônica, patriarcal, adulta, para não dizer velha, vetusta. Surge, nesse contexto, a Nova Esquerda e, no Brasil, o PT e os partidos ditos de esquerda dos céus dos princípios que vão protagonizar o cancelamento da guerra de classes, do socialismo e sobretudo da URSS, doravante descrita como totalitária, comparável ao III Reich, com Stalin a ser execrado como um ditador monstruoso que liderou a vitória contra o nazismo porque era como Hitler, isto é, como pais dos pais do semblante patriarcal, na era da horda demagógica dos filhos e das filhas do liberalismo de “eu sou o princípio, o meio e o fim” da última palavra sobre o racismo neocolonial unipolar, encarnando-a na raiz do corpo por meio da mais cínica e atroz publicidade de liberdade sem o reino das necessidades, nos festivais, nas discotecas, no consumo de drogas, na juventude transviada, nas danças anarquistas, estilo Rock and Roll, mimetizando identidades em rebelião contra o pai, especialmente, na prática, contra o pai que unia os povos sob a forma de revoluções anticoloniais e socialistas.
Entretanto, o enredo metafísico não acabou aí, na vitória, ainda que parcial, contra os processos emancipatórios dos povos do mundo, porque, depois de cumprida a sua tarefa, a de derrotar a URSS e as guerras de classe pós-capitalistas anticoloniais, a primeira Guerra Fria se transformou na segunda Guerra Fria dos brothers. Se antes, no interior da primeira cultura do cancelamento ianque, a raiz do corpo da juventude transviada e rebelde era o próprio “há um”, valendo por tudo e se, nesse contexto, pressupunha encontros, festivais, identidades integradas de modo irracional, mas integradas, a segunda cultura do cancelamento estadunidense contra a Maioria Global, como uma bomba atômica, desintegra no próprio ato de dizer “eu sou”, multiplicando lugares de fala, essa nova instância do gozo dos idiotas.
A cultura universal da função falo patriarcal, como a última palavra do racismo e do machismo, avança em busca de algo pior, porque doravante tudo que não for o lugar de fala, esse sintoma, essa idiotia, deve ser terminantemente cancelado. E não se enganem porque o lugar de fala não está apenas na prática sionista da esquerda em gozo dolarizado; é parte também fundamental da extrema direita – todos gozam o pai que se apresenta como big brother, com seus bons sentimentos supostamente inclusivos (é gente boa, dizem!), enquanto as bombas são lançadas no lombo dos povos, esses palestinos!
A fake esquerda da diversidade dos sintomas, capturada pela demagogia da inclusão no falo da oligarquia dolarizada e a genérica diversidade do cristianismo sionista cancelam, pelo simples fato de existirem como existem, como as girls e como os brothers, a Maioria Global, inclusive e sobretudo quando se odeiam, quando se xingam e se enfrentam. E o que é cancelado na prática, em nome do lugar de fala, não é o hétero e nem o suposto branco, que se empoderam no neofascismo, mas, sim, e sobretudo, a esquerda anti-imperialista, a soberania nacional, a humanidade multipolar.
O atual semblante estilo brother e girl da cultura do cancelamento estadunidense adquire uma dimensão multitudinária, valendo para o passado (para qualquer época pois qualquer morto pode ser cancelado), para o presente e para o futuro, havendo duas políticas imanentes de cancelamento: i) a silenciosa, que ocorre automaticamente com a simples existência da patrilinearidade da diversidade dos lugares de fala. Investiguem, a propósito, a quantidade de pesquisa no âmbito das Pós-Graduações que tenha como objeto de estudo os clássicos do pensamento social brasileiro; procure se informar, no campo da literatura, sobre Mestrados, Doutorados e Pós-Doutorados sobre Carlos Drummond de Andrade, sobre João Cabral de Melo Neto, sobre Graciliano Ramos, Francisco Julião, Lima Barreto, Cecília Meireles, Augusto Boal e assim por diante. Todos estão cancelados com, inclusive, alegações implicadas com a raiz dos corpos supostamente não castrados, do tipo: o autor x, com sua obra y não contemplou tal ou qual “eu sou identitário. Foi machista, foi racista…” Todos estão cancelados porque a soberania nacional, a memória teórica, a arte comprometida com a emancipação nacional, popular e dos povos não detêm lugares de fala; não são o super brother nem super girl; não são a diversidade cultural brasileira, porque a única diversidade que conta é a do “há um” não castrado da confissão identitária recusando terminantemente o “zero à esquerda” da diversidade multipolar, dos povos.
Além do cancelamento invisibilizado, cotidiano, imanente ao semblante parricida estadunidense, existe o da guerra direta e de espectro completo contra: ii) as bruxas marxistas e antianques, quando não apenas contra as bruxas que, por um motivo ou outro, passaram a ocupar o lugar de fala da soberania nacional ou que resistam à demagogia instalada dos brothers e das girls. No momento em que a cultura do gozo da idiotia dos lugares de fala se torna hegemônica, o ultraimperialismo aciona os seus cavalos de Troia, a sua soldadesca a acreditar, piamente, em seus sintomas, agindo por conta própria a serviço, ciente ou não, do big brother. É nesse contexto, como um Deus ex machina, que as Ongs, mídias, fundações e agências, Universidades entram em cena, infiltrando-se nas instituições do Estado-alvo, com poder de fogo para multiplicar os lugares de fala, usados como armas contra (pasmem!) as alteridades que não se transformaram em identidades, como falos da cultura do big brother de Hollywood e CIA. Os casos do ex-ministro Sílvio Almeida e do jurista Alysson Mascaro são exemplares a propósito. Quem ou quais pessoas instalaram ou contrataram, no topo da superestrutura de Estado brasileiro, uma Ong norte-americana como Me Too, supostamente especialista em ser caixa de ressonância de denúncias de assédio sexual? Não há Ministério Público e outras repartições institucionais públicas, inclusive ouvidorias, que cumprem esse papel?
O mais escandaloso de tudo isto é a sua naturalização. Alguém imagina que uma Ong brasileira pudesse, direto de Washington, recepcionar denúncias de assédio sexual de algum Secretário de Estado de EUA? A coisa é surrealista e inaceitável por si mesma e só se acata sem contestação porque a cultura dos lugares de fala é a da total imunidade para os filhos e filhas do big brother ianque, esses empoderados do dollar diplomacy. O caso de Alysson Mascaro é, também, curioso, para não dizer terrorismo ilusionista. O Intercept Brasil (não por acaso Me Too é Me Too Brasil, igualmente) vendeu no início uma imagem de esquerda identitária, projetando inclusive, como um novela da Rede Globo, um romance homoafetivo entre o seu CEO e um brasileiro. Cumpriu o papel de bater em cachorro morto (já tinham realizado a função deles) ao revelarem detalhes da quadrilha antinacional da operação Lava a Jato. Instalou-se, digamos, com o objetivo de ser “do Brasil”. Estava pronta para ser uma “caixa de maribondo” identitária. O mais que isto já se tornou público: Alysson Mascaro internacionalmente atacado por fascistas antirussos com apoio da extrema direita brasileira, evidenciando como os opostos da cultura do cancelamento estadunidense se encontram, de modo unipolar.
Esses Lopes ianques
A frase-chave para a idiotia da era ianque não é outra, a propósito, senão esta: afirmar-se é empoderar-se na ordem-famulus dominante e, paradoxalmente, quanto mais é afirmada a identidade da apologética do mundo existente estadunidense, mais alteridades são canceladas, mais o mito de “A mulher não existe” se impõe em escala jamais vista e vivida, porque cotidiana, porque baseada no sequestro patriarcal da militância da histérica, referência necessária ao O Seminário: livro 18, de um discurso que não fosse semblante, considerando o seguinte fragmento “Um discurso se sustenta a partir de quatro lugares privilegiados, dentre os quais um, precisamente, ficou sem ser nomeado – justamente aquele que, pela função de seu ocupante, fornece o título de cada um desses discursos. E quando o significante-mestre encontra-se num certo lugar que falo do discurso do mestre. Quando um certo saber o ocupa, falo do discurso da Universidade. Quando o sujeito, em sua divisão, fundadora do inconsciente, encontra-se instalado ali, falo do discurso da histérica. Por fim, quando o mais-de-gozar ocupa esse lugar, falo do discurso do analista” (Lacan, 2009, p.24).
E qual (não) discurso emerge sem ser nomeado? Sim, o zero, esse, cifra em potência de todos os outros, ora ocupado pelo i)discurso do mestre, leia-se, do soberano, leia-se, do patriarcado, leia-se do patrão, leia-se do imperialismo; ii) pelo discurso da Universidade que, como saber do Estado patriarcal ( ou imperialista), fala ou tende a fazê-lo em nome do discurso do mestre; iii) pelo discurso da histérica, que se revolta tanto contra o discurso do mestre quanto contra o discurso do saber da Universidade; iiii) pelo, finalmente, discurso do analista, a representar a ciência ou o conjunto vazio, retomando a positividade da castração e sua existência universal em tudo que existe, sob a forma de um mais-ainda, isto é, do porvir da matrilinearidade. Na era da hegemonia ianque, assim, a histérica – a que recusa a totalidade de um mundo a serviço do falo, a que se sabe, como sujeito que é, crivada pela castração – é a que diz não à ordem existente perspectivando o discurso que não fosse o semblante.
A histérica, em termos marxianos, pode e deve ser interpretada como a guerra de classes sob o ponto de vista da potência ascendente do trabalho não alienado ou desalienando-se como um discurso que não fosse o semblante da alienação estrutural, no capitalismo, do trabalho, sequestrado efetivamente que está dos frutos de seu próprio tempo individual e coletivo vitais, embora seja também a de burgueses, por não serem o sujeito, essa castração positiva, da riqueza de que se apropriam. Fora de qualquer abstração, na sociedade do capital, a alteridade, essa histérica, é por excelência a classe trabalhadora, sujeito dialético do porvir matriarcal. Não há e nem pode haver, nesse contexto, interseção entre classe, raça e gênero[ii] porque a interseção ocorre de fato no interior de o discurso que não fosse o semblante da categoria de classe e suas três formas de desalienação: i) a que diz respeito à guerra de classes do trabalho contra os donos do capital; ii) a que se refere à guerra de classes das sete bilhões de pessoas do planeta ( da Maioria Global) contra o patriarcado unipolar do sistema imperialista do Ocidente; iii) a que diz respeito à guerra de classes contra a divisão social desigual do trabalho, segmento interseccional em que se inscrevem as alteridades laborais de gênero, étnica, epistemológica, culturais, sempre tendo em vista o trabalho em face do capital e os povos colonizados relativamente às metrópoles colonizadoras.
Entretanto, quando o discurso que não fosse o semblante é capturado pelo discurso do semblante de um mundo de um suposto saber sem pai, o sujeito se torna o seu revés; e a histérica deixa de ser alteridade da classe trabalhadora para se fazer identidade sem vazio, sem castração, essencializada pelo sopro liberal/neoliberal do “eu sou”, passando a ocupar a universalidade cultural do gozo do idiota, com seus brothers e girls, seus sintomas reificados sob o signo de particularidades próprias, autônomas, ignorando que a mulher de que se trata, assim como as alteridades étnicas e homoafetivas são fundamentalmente alteridades no interior da alteridade-mor da classe trabalhadora e, nesse contexto, não podem sob hipótese alguma se apresentarem como a diversidades-famulus do semblante do ultraimperialismo estadunidense por dois motivos inseparáveis: i) porque deixam de ser alteridades para se transformarem em identidades da cultura do gozo do idiota do discurso do mestre, EUA; ii) porque a guerra de classes deixa de ser da união das alteridades contra o milenar cancelamento da matrilinearidade contra a “família, a propriedade privada e o Estado” das identidades da patrilinearidade, idiotizando-se como o gozo-famulus do semblante da humanidade unipolar.
Os Estados Unidos, como versão unipolar da patrilinearidade ocidental, tornaram-se hegemônicos porque emergiram mundialmente como os donos dos meios de produção da cultura da idiotia do mito de uma civilização sem semblante e, assim, dos brothers e das girls. Considerem a propósito o conto “Esses Lopes”, presente no livro Tutaméia de João Guimarães Rosa. Lopes é um nome que tem como origem (há um) a palavra lobo em latim: lupus. “Esses Lopes” traduzem-se como “esses lobos”. O conto, com narrador-personagem, tem como protagonista uma mulher sem posses numa cultura violentamente patriarcal, que assim se descreve: “Deus me deu esta pintinha preta na alvura do queixo – linda eu era até a remirar minha cara na gamela dos porcos, na lavagem” (Rosa, 1985, p.55).
A narradora-personagem, que teve a má-sorte de nascer bela numa famulus do interior rural do patriarcado de um país ele mesmo famulus, como o Brasil, diante dos Lopes, ponderou de modo dissimulado, fingindo levar a sério o semblante patrilinear dos Lopes: “A gente tem é que ser miúda, mansa, feito botão de flor” (Rosa, 1985, p. 55). A narrativa, entretanto, revela uma personagem que finge instalar-se de modo subserviente no mundo dos Lopes, posicionando-se como a caça que caça, como a voz passiva que é a agente da ação: matar os pretendentes Lopes. E chega o primeiro, o Zè, “o pior, rompente e sedutor” (Rosa, 1985, p. 55), que, após ter lhe tirado o máximo, envenena-o sorrateiramente, “só por arrefecer aquela desatada vontade, nem conforme que seja crime” (Rosa, 1985, p.57). E chegam mais dois deles: “o primo e o irmão do falecido (Rosa, 1985, p. 57) que se matam por ciúme estimulado pela narradora-personagem. E aparece o quarto, “Sorocabano Lopes, velhoso, o das fortes propriedades” (Rosa, 1985, p. 57), sendo morto com muita comida, à base de gordura e sal. Sobram-lhe mais três Lopes: os filhos da patrilinearidade das gens dos Lopes, enviados para longe, porque, afinal, “todo mundo vive para ter alguma serventia. Lopes, não! – desses me arrenego” (Rosa, 1985, p. 58).
Na era do ultraimperialismo ianque, o mundo vira ao revés de fato e os Lopes se tornaram as alteridades, inclusive étnicas e de gênero, no interior da divisão internacional desigual do trabalho – pois é proibido, no âmbito das esquerdas globalistas, ser alteridade negra da classe trabalhadora brasileira, assim como mulheres e homoafetividades laborais. É cancelável as gens da matrilinearidade da Maioria Global. Monopolizando os meios de produção do semblante de um mundo suposto sem semblante, com, no passado, a radiodifusão, a televisão, a indústria gráfica e o controle da circulação das ideais; e, no presente, o sistema internético do Vale do Silício com suas Big Techs, embora tenha perdido a guerra econômica e a tecnológica, os EUA ainda são a vanguarda da guerra cultural contra a histeria dos povos, pois ainda é o senhor da famulus da idiotia planetária dolarizada; ainda é, cinematograficamente, a última palavra da patrilinearidade dos Lopes ocidentais, a cancelar o conjunto vazio da vida na Terra, embora fale em nome da cultura woke e se encarne, na raiz do corpo, na diversidade de suas identidades demagógicas brothers e girls.
Como cultura dominante do novo patriarcado, o que imita o sistema de gestos do matriarcado, o cancelamento das alteridades da classe trabalhadora, não importando se seja hétero, negra ou bissexual ( como se viu no caso do ex-ministro Silvio Almeida e do professor Alysson Mascaro) é o principal objetivo do ultraimperialismo que mimetiza o semblante de uma civilização sem famulus, para ser o novo dominus, com seus séquitos de “eu sou”, independentemente do gênero, da raça e da classe.
Conclusão
China superou EUA econômica, cientifica e tecnologicamente; Rússia militarmente. O vento da história sopra favorável às forças produtivas da Eurásia, deixando para trás as relações de produção do sistema imperialista ocidental, liderado pelo Tio Sam; e seus delírios supremacistas advindos da longa história da verdadeira (há um) origem do patriarcado da família, da propriedade privada e do Estado oligárquico da servidão por dívida e guerras de saqueio; a ocidental. Entretanto, o conceito de forças produtivas não pode excluir as que se inscrevam nos meios culturais de produção, que, no capitalismo, produzem mercadorias, sob a forma de bens e serviços, que são muito mais que, na era da indústria gráfica, jornais, revistas, livros, folhetins; na da radiodifusão, radionovelas, notícias, músicas; na das imagens em movimento, o cinema e a televisão; na da era da Internet, com seus meios de produção próprios como celulares, computadores, tudo que os anteriores meios produziram, mas em tempo real e instantâneo, transformando em online a interação humana face to face, abolindo distâncias e hierarquias… produz, antes de tudo, estilos de vida e, com estes, formas de pensar, relacionar, desejar, agir e ser que retroalimentam, na raiz dos corpos, a exclusão da Maioria Global e a dominação da oligarquia financeira de Wall Street e da City de Londres.
Ninguém em sã consciência pode dizer que, no que tange às forças produtivas dos meios culturais de projeção do ser, os EUA estejam ultrapassados. A aliança de Trump com os “big brothers” do Vale do Silício, com seu capitalismo de nuvens, é para garantir a vanguarda do vir a ser da unipolaridade dos lugares de fala mundialmente estadunidenses, acionando uma prática de cancelamento em tempo real, via função algoritmo, inteligência artificial e seus influencers fascistas liberados das bolhas, à esquerda e à direita; e fascistas porque o fascismo se define como violenta demagogia e cancelamento contra a luta de classes sob o ponto de vista da classe trabalhadora e, sobretudo, contra a revolucionária a guerra de classe anticolonial, da emancipação dos povos.
No que diz respeito à cadeia de transmissão institucional do cancelamento interno, lamentavelmente as Universidades públicas brasileiras têm exercido um papel absolutamente antinacional, pois têm estado de costas para o país, para seus desafios desesperadamente urgentes da luta coletiva pelo fim emancipatório da condição trans-histórica de país-famulus de uma ou mais metrópole ocidental. No âmbito da Pós-Graduação, como é possível aceitar e no mínimo não estranhar as modas teóricas do cancelamento da diversidade dos lugares de fala da soberania nacional, acatadas e incentivadas por uma instituição de Estado como CNPq, como foram, à sua época, o estruturalismo, substituído pelo pós-estruturalismo, que, por sua vez, foi, como o “há 1”, que se torna o “há 2”, que se torna o “há 3’, o “há 4”… substituído pelos estudos culturais e, depois, pelo multiculturalismo, o pós-colonialismo, os estudos de testemunho ( suprassumo do sionismo) e, no contemporâneo, o decolonialismo e a ancestralidade, com esta, a pretexto de contemplar um intercâmbio acadêmico entre Brasil e África, a adotar como palavra de ordem uma crítica woke ao progresso com um subjacente e subliminar objetivo de cancelar a presença de China na África e no Brasil, tendo em vista o pressuposto de que o desenvolvimento das forças produtivas são sempre antiecológicos, propondo, no lugar, um retorno idílico e romântico-reacionário a um passado arcádico, anterior à história; e aquele, em interação entre acadêmicos latino-americanos e norte-americanos, a debulhar, supostamente, o complexo semântico e representacional da atualidade do colonialismo europeu no país, cancelando na prática os mais de trezentos anos de laicidade protagonizada por processos revolucionários populares e operários de diferentes países europeus, com foco sobretudo no marxismo e nas lutas revolucionárias e anticoloniais dos povos contra o sistema imperialista euro-norte-americano, ao mesmo tempo que ignora totalmente o Superego da guerra de espectro completo de EUA contra a Maioria Global.
Retomando O Seminário: Livro 18, por um discurso que não fosse o semblante e sobretudo o seguinte fragmento, “quando o significante-mestre encontra-se num certo lugar que falo do discurso do mestre. Quando um certo saber o ocupa, falo do discurso da Universidade” (Lacan, 2009, p.24), pergunto: quem é o significante-mestre e qual lugar ocupa no contemporâneo? O que significa, nesse contexto, ocupar o lugar do saber/poder identitário/woke no interior de Universidades Públicas, financiadas pelo historicamente cancelado povo brasileiro? Penso que o final de O Seminário 19 ou o pior é a resposta incisiva a essas duas questões entrelaçadas, pois o gozo da idiotia do saber/poder da Universidade, epicentro da esquerda Woke, subscreve e projeta como última palavra do racismo e da violência de gênero, o bolsonarismo no Brasil, Milei na Argentina, Daniel Noboa no Equador, países que não por acaso estão dominados academicamente pela cultura dos sintomas e da demagogia do discurso do mestre Estados Unidos.
*Luis Eustáquio Soares é professor titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de A sociedade do controle integrado (Edufes).
Referência
BANDEIRA, Luis Alberto Muniz. A segunda Guerra Fria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2019.
HEGEL, G. W. F. Ciencia de la lógica. V. I. La lógica objetiva. Trad. Felix Duque. Abada Ediores: Madrid, 2011.
LACAN, Jacques. O seminário, livro18: de um discurso que não fosse semblante, (1971). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
_______. O seminário, livro 19: ou o pior. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
_______.O seminário, livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
_______.O seminário, livro 23: o sinthoma, (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
ROSA, João Guimarães. Esses Lope. In. Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.55-59.
SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das letras, 2011.
Nota
[i] Refiro-me à canção “Tô”, do disco Estudando o samba (1976), em cuja terceira estrofe se escreve/canta: “Eu tô te explicando pra te confundir/ eu tô te confundindo pra te esclarecer”.
[ii] Na prática, que é sempre o que importa, a interseccionalidade entre classe, raça e gênero é hierarquicamente grafada com a classe ocupando a posição final, raça, gênero e classe, sendo que efetivamente quase nunca de fato é analisada considerando sobretudo a sua transversalidade complexa no âmbito das relações sociais de produção em escala planetária, com o eixo unipolar do sistema imperialista ocidental impondo-se contra a Maioria Global e se figurando como o epicentro da divisão internacional desigual do trabalho e, assim, do racismo e da violência de gênero.
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