O brutalismo vai à escola: sobre o retorno às aulas presenciais

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Por CAROLINA CATINI*

A luta pela educação é a mesma luta contra a barbárie que está em curso. Como educadoras e educadores que somos, sabemos que nosso trabalho concreto não diz respeito aos índices e estatísticas, mas sim às pessoas

“Havendo óbitos de alunos ou de profissionais da escola, e se for algo desejado pela comunidade escolar, o grupo pode organizar ritos de despedida, homenagens, memoriais, formas de expressão dos sentimentos acerca da situação e em relação à pessoa que faleceu, e ainda atentar para a construção de uma rede socioafetiva para os enlutados”

Essa prescrição de comportamento e permissão para homenagear os mortos faz parte do plano de retorno às aulas da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo. Choca a franqueza desumana do comunicado e nos cabe perguntar por que é possível tamanha brutalidade. Afinal, faz literalmente parte do “plano” a ocorrência de novos contágios pelo novo coronavírus, uma vez que ao promover o contato social pelo retorno às aulas presenciais, se torna obrigatória a previsão da possibilidade de um incremento do número de mortes.

O primeiro motivo extrapola os muros da vida escolar e da política educacional. Está relacionado ao amortecimento do choque com a morte massiva, prova que a barbárie está entre nós e nos embrutece. Ela se naturaliza pela “banalização da experiência da morte”, como diz um jovem cineasta de São Paulo, o “menino do drone”, como ficou conhecido na região em que mora, ao utilizar seu equipamento durante a pandemia, e captar do alto as imagens do cemitério São Luís, já tão emblemático em função da violência estatal no extremo sul da cidade. “Código de Barras” é o nome que ele dá à série de imagens que fez dessa produção em série de valas. Neste código, cada linha é um número, porque não estamos falando de “pais, mães, irmãs. E aí vira código de barras, mano. Vira uma coisa industrial, uma esteira de morte, aquela coisa da fábrica que passa, cola o código e saem lotes e lotes e lotes e lotes de morte”.

Impossível não pensar em outras indústrias da morte em massa ou nas guerras que nosso momento extremo cita e recoloca na ordem do dia. Ou melhor, nas guerras que deixam de ser classificadas como tal porque se tornaram permanentes e deixam de gerar comoção. “Um país só pode ficar tão apático”, diz Silvio Luiz de Almeida, “quando é um país que já se acostumou com a morte, principalmente de trabalhadores e de pessoas negras”. Para ele, mais de cem mil mortes se torna corriqueiro num país em que 50 mil pessoas morrem assassinadas por ano, no qual se morre de fome. Dessa forma, aquilo que devia nos tirar do conformismo e levar à desnaturalização de toda violência, desde a mais trivial, se torna o contrário: a acomodação à nova escala de brutalidade como forma de vida. É novamente o “menino do drone” que fala dessa imensa capacidade de naturalizar o massacre: “Fala mil mortes, choca. Quando a gente fala 20 mil mortes, choca. Só que quando a gente fica falando de mil em mil, todos os dias por três meses, o ouvido está calejado e aí vira normal. Parece que essa é a nossa nova condição da vida e assim seguimos. A quebrada sempre fez isso: tem mancada, tem fome, faltam coisas. Só que não é um dia, dois dias. Falta a vida toda e banalizou”.

Adaptação por necessidade e por exaustão de trabalhadoras e trabalhadores, que sobrevivem apesar da pandemia, do desemprego, dos trabalhos e moradias precários, das periferias sem saneamento básico. “Resiliência”, diriam os empresários, vencedores de plantão das lutas na educação. Num currículo escolar privatizado pela classe do empresariado nacional, a resiliência é a palavra chave que orienta os percursos formativos da classe oposta.

Os empresários não estão presentes apenas nas redes privadas de educação, como proprietários de escolas ou de títulos de participação dos lucros das empresas educativas, que pressionam o retorno às aulas presenciais porque deixam de ganhar dinheiro com o confinamento. O empresariado está também se apropriando privadamente da educação estatal, interessado em movimentar a economia e tornar a educação dos pobres produtiva. Basta acessar o site da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo e ver quem são os “parceiros” do direito à educação: Instituto Unibanco, Instituto Natura, Fundação Telefônica, entre outros grupos que não fazem parte do Todos pela Educação. Assim como em tantos outros estados e munícipios esse tipo de “parceria” tem em comum algumas estratégias de ação política, dentre as quais uma nova pedagogia que está centrada nas atitudes e comportamentos das crianças e dos jovens.

Aliás, outro motivo para a naturalização da brutalidade na política educacional encontra suas razões pedagógicas por estar relacionada ao experimento da introdução das ditas competências e habilidades socioemocionais nos conteúdos escolares. Essa é a última grande moda pedagógica empresarial de educação dos pobres, que preenche milhares de materiais pedagógicos atuais. Em tempos de desespero e falta de perspectivas, uma vasta literatura pseudocientífica com linguajar de autoajuda ganha muita adesão, e invade todos os meios educativos.

Ela busca ajustar as atitudes diante de situações de instabilidade e de horror, cada vez mais corriqueiras em nossa vida social, pelo controle das emoções. Deve-se aprender desde cedo como permanecer em sua trilha individual, mesmo em situações de catástrofes familiares ou sociais. A estabilidade deve ser atributo de cada um, independente da turbulência do contexto, de modo que o projeto de formação se torna a gestão de um projeto de vida, por uma sequência de cumprimentos de metas, num simulacro individual da forma empresarial. Trata-se da fabricação do sujeito empresarial – conforme expressão desenvolvida por Pierre Dardot e Christian Laval em A nova razão do Mundo (Boitempo) –, mas num contexto de crise e precariedade alarmante das condições de trabalho e de vida. No fundo, um programa curricular de formação para subserviência ao capital, diretamente definido por aqueles que o personificam.

Do modo que aparece aqui, a pedagogia emocional buscaria domesticar o sentimento e a chance de uma reação de revolta. Considerando o modo com o qual estamos lidando com o morticínio, é fácil imaginar que, com auxílio da gestão das emoções alheias, nossa brutalidade possa produzir a imensa façanha de introduzir a morte no cotidiano escolar, com naturalidade. É o que prevê a política pública.

Prescrever atitudes diante da morte e permitir “a expressão de sentimentos em relação a pessoa que faleceu” é dispositivo de gestão e controle mal disfarçada de gesto humanitário. Mas tamanha é a falta de consideração pela dor do outro que até pode parecer uma generosidade que emana das leis do Estado, o mesmo que faz a gestão da barbárie. A afetividade objetificada em lei é o aprofundamento da coisificação das pessoas, não o seu contrário

À interiorização da violência de guerra, que vai muito além da brutalidade, Achille Mbembe está dando o nome brutalismo: a matéria-prima da vida se brutaliza e uma nova forma de desumanização se generaliza. Com a normalização de situações extremas, a morte deixa de ser um evento de exceção e a seletividade que define qual a classe de pessoas que será destinada à eliminação se torna puramente aceitável, sem questionamento.

O brutalismo é a violência extrema e também sua desrealização: o crime hediondo se esconde na falta de parâmetros, no sofrimento sob suspeita diante da naturalização massiva, na transformação das histórias de vida e de morte em estatísticas, no ritmo da sucessão de eventos, na forma de circulação das notícias, etc. Por isso é preciso denunciá-lo a todo tempo.

A violenta lógica de roleta-russa do retorno às aulas presenciais está inscrita também na responsabilização individual dos profissionais da educação, que devem assumir todos os danos possíveis, inclusive pelo contágio. Mães, pais e responsáveis também assumem os riscos e podem escolher privadamente se enviam ou não filhos para escola, como decisão que diz respeito à vida privada e não à vida coletiva ou às condições de trabalho de professores e professoras, que é do que se trata a vida escolar. Parece que às vezes se esquece que a educação é fruto de muito trabalho.

Professores e professoras passariam, então, a se responsabilizar pela implementação do ensino híbrido: introdução dos encontros presenciais justapostos à manutenção do ensino à distância, atividades remotas ou mitigadoras. Para os empresários e gestores, mais uma meta a ser atingida mediante o sacrifício alheio. Para trabalhadores e trabalhadoras, mais um esforço a ser enfrentado depois de mais de cinco meses de trabalho exaustivo com o ensino remoto, com a intensificação de trabalho da imensa maioria, com o desgaste excessivo e muitas situações de conflito. De qualquer forma, mais uma cama de gato armada para culpabilizar professores e professoras pelo fracasso dos resultados da educação em 2020.

É verdade que as condições de trabalho são muito distintas em cada rede de ensino ou escola, mas de modo geral, como em todo trabalho, as condições pioraram drasticamente, e as mentiras dos programas de “valorização do magistério” se explicitaram de maneira radical. Tem se falado bastante do ônus do trabalho remoto para o trabalho docente. A cobrança é intensa, e a vigilância cresce, assim como a ansiedade pela prática de avaliação permanente a qual está submetido o trabalho.

Nas redes públicas, as situações também variam muito, mas docentes eventuais de vários tipos foram dispensados ou estão sem receber – no caso da rede paulista, na qual os contratos precários compreendem cerca de 40% do corpo docente, estão sem receber desde o início da pandemia. A invasão das empresas privadas, com sua tecnologia, formações, projetos, programas, etc., faz avançar de maneira desmedida a apropriação privada do trabalho e da formação para a prática docente. Nas redes privadas, além do trabalho exaustivo e muito além das horas-aulas, há notícias de demissões em massa, sobretudo no ensino superior e na educação infantil. Muitos acordos de diminuição de salário sem redução de jornada, e relatos de professores e professoras em situação de risco de saúde, que não pararam de trabalhar por medo do desemprego se multiplicam.

Não é de invisibilidade do trabalho docente que se trata, nem da falta de escuta por parte dos gestores: trata-se de evidenciar nossa descartabilidade, o caráter substituível que ganha o trabalho de educar, como qualquer outro trabalho simples.

Essa pedagogia das emoções é colocada em cheque ao dar tanta importância às condições psíquicas de estudantes e nenhuma às condições – objetivas e subjetivas – de milhares de professores e professoras. Pode-se ver a indiferença e a desqualificação do trabalho docente na cartilha de orientações psicossociais do Projeto Jovem de Futuro do Instituto Unibanco, indicado pela Secretaria de Educação do Espírito Santo (no mesmo plano de retorno em questão). Como se poderia desenvolver “habilidades emocionais” de jovens abstraindo o fato de que educação é trabalho de adultos? Do ponto de vista da gestão, isso só se faz possível quando são os lucros e índices que importam e não o processo educativo. A obsessão pela demonstração da performance educacional torna até mesmo a emoção objeto de mensuração e classificação pelas avaliações. Diz Mbembe que o brutalismo se expressa também pelo ímpeto de não deixar nada às margens do cálculo, pela busca de submeter tudo o que até então permaneceu movendo-se por fora dos mecanismos de controle, com alguma liberdade.

É evidente que alguma liberdade só pode se manifestar pela negação da barbárie desde suas formas mais elementares, pelo confronto, pela luta que se desenha em cada escola, que é também uma trincheira. Ela está nos coletivos de estudantes, mães, pais ou responsáveis, professores e professoras decidindo juntos o que fazer ao invés de esperar a ordem dos patrões ou prefeitos; está nos novos coletivos de trabalhadores e trabalhadoras da educação se formando em meio à maior degradação de relações que já vivemos; está nas greves planejadas em ambientes virtuais.

É também nessa vida cotidiana de organização que lembramos o tempo todo que a luta pela educação é a mesma luta contra a barbárie que está em curso. Como educadoras e educadores que somos, sabemos que nosso trabalho concreto não diz respeito aos índices e estatísticas, mas sim às pessoas.

E se não nos protegermos e não nos organizarmos coletivamente, poderemos virar mais uma linha do código de barras e ganhar uma homenagem emotiva conforme as normas prescritas pela moderna burocracia estatal-empresarial.

*Carolina Catini é professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-UNICAMP).

Publicado originalmente no blog da Boitempo

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