O retorno do negacionismo

Imagem: BJM
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Por JONATHAN DE FRANÇA PEREIRA*

O avanço do neoliberalismo submeteu a educação à lógica de mercado. A educação se tornou ameaça e o desprezo pelo conhecimento e a perseguição aos que ensinam caminharam juntas

A “nova” eleição de Donald Trump em novembro de 2024 e sua posse em janeiro de 2025, marcada, entre outros fatores, pela deportação em massa de imigrantes, trouxe de volta à tona a Nova Direita e suas práticas de negacionismo. Esse termo tem sido tão amplamente utilizado que, por vezes, acaba desgastado. Assim, quem o emprega — especialmente no wrestling dos debates digitais — corre o risco de ser visto apenas como mais um “cancelador”, que desqualifica uma discordância ideológica ou teórica com o carimbo de “negacionista”. Isso ocorre mesmo quando o fenômeno segue sendo analisado sob diferentes perspectivas por estudiosos.

Na psicologia social, Kahan (2013) associa o negacionismo a mecanismos como o viés de confirmação, que reforça crenças preexistentes, e à dissonância cognitiva, que descreve o desconforto gerado por ideias conflitantes. Já na neurociência, pesquisas indicam que o cérebro humano tende a resistir a informações que desafiam crenças políticas e ideológicas prévias (Kaplan et al., 2016). Na sociologia, a polarização e o papel das redes sociais são apontados como amplificadores de narrativas anticientíficas, que reforçam bolhas informacionais e criam resistência ao consenso científico (Oreskes et al., 2010). Em resumo, esses estudos mostram que as pessoas tendem a acreditar não no que foi provado, mas no que já pensam — ou simplesmente no que querem acreditar.

No entanto, o negacionismo científico vai além. Ele pode ser entendido como a rejeição deliberada de estudos baseados em evidências, movida menos por desconhecimento e mais pelo desejo de desafiar o conhecimento disciplinar, lançando dúvidas sobre dados e resultados. Frequentemente, esse fenômeno está associado à defesa de teorias conspiratórias ou posições radicais (Lewandowsky et al., 2019). Lee McIntyre destaca que o que distingue a ciência de outras formas de conhecimento é a chamada “atitude científica” — caracterizada pela preocupação com evidências e pela disposição de revisar teorias à luz de novos achados (McIntyre, 2019, p. 45).

No campo histórico, esse fenômeno reflete o que Rossi (2009) denomina “mal-estar na cultura”, em que eventos traumáticos, como o terrorismo de Estado, deixam marcas que transcendem gerações, manipulando a memória coletiva ou individual para atender a interesses políticos ou sociais. Nesse contexto, Rousso (2020) define o negacionismo histórico como um esforço deliberado para manipular o passado e evitar responsabilidades no presente. Traverso (2017, p. 35) reforça essa perspectiva ao destacar como o próprio conceito de “revisionismo” foi distorcido, com o único intuito de tosquear os fatos e a memória coletiva e minando a responsabilidade histórica. Como observado, a clareza conceitual do termo tem se perdido, enquanto importantes alternativas conveituais, como “distorcionismo” (Joffly, 2024), não alteram a lógica de rápida apropriação pelos próprios negacionistas.

Diante de uma bibliografia tão ampla, faz sentido, para nosso propósito aqui, recorrer a um princípio do “senso comum acadêmico”. No caso, um princípio atribuído a Guilherme de Ockham (1287–1347), filósofo e teólogo medieval, que afirma: “os entes não devem ser multiplicados além do necessário”. Em outras palavras, entre várias explicações para um fenômeno, deve-se optar pela mais simples, desde que seja suficiente para esclarecê-lo. Com base nisso, não pretendemos esgotar o tema, nem oferecer um panorama geral, mas apenas esboçar algumas considerações sobre o negacionismo, privilegiando os fatores mais evidentes.

O problema do negacionismo no Brasil ganhou destaque em 2010, alcançando seu vértice em 2020, em meio a uma crise epidêmica e ao acirramento político, sendo amplamente instrumentalizado pela extrema direita. Retornando no tempo, Lucas Patschiki (2012) observa que, no início deste milênio, com a criação do “Mídia sem Máscara” por Olavo de Carvalho, em 2002 — ano em que Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, assumiu a presidência —, desenvolveu-se um movimento centrado no enfrentamento ao comunismo. Contudo, essa definição de comunismo englobava qualquer posição minimamente inclinada ao progressismo. O discurso retórico consistia na disseminação de preconceitos contra comunistas, negros, mulheres, gays e indígenas, retratando-os como autoritários e promotores de suas “doutrinas”, supostamente sustentados por um Estado onipotente que lhes concederia privilégios. Tal fenômeno é analisado em estudos como a tese de dissertação de Mayara Balestro dos Santos (2021), que explora a relação entre agenda conservadora, ultraliberalismo e negacionismo histórico.

Nos últimos anos, essa postura foi amplamente rechaçada por setores da esquerda, majoritariamente compostos por liberais progressistas, alguns dos quais eram antigos opositores da própria esquerda, mas recuaram diante da radicalização. Isso incluiu professores universitários, que tiveram sua autoridade questionada — inclusive aqueles que relativizavam ao extremo o saber disciplinar, vendo-o, acima de tudo, como mais uma forma de opressão.

Contudo, cabe destacar que o conhecimento baseado em evidências raramente foi valorizado no Brasil, mesmo antes da disseminação de falácias sobre doutrinação ideológica. É relevante lembrar a queixa de professores da educação básica, que há tempos denunciam a desqualificação do saber metódico. Essas denúncias, infelizmente, não apenas foram ignoradas, mas, de certo modo, sistematicamente negadas ao longo de décadas. Assim, chegamos à nossa suposição menos extravagante da navalha de Ockham: no que diz respeito à ciência e sua popularização, até pouco tempo, não existia pecado abaixo da linha do Equador

Não é nenhum mistério que ciência e educação caminham juntas, embora nem sempre de mãos dadas. No Brasil, especialmente na atualidade, essa relação parece seguir direções opostas. No entanto, essa trajetória não foi linear. Durante a redemocratização, movimentos sociais, universidades e sindicatos se empenharam na reconstrução do ensino, buscando romper com o legado autoritário da ditadura. Esse processo levou à substituição da chamada “educação cívica”, imposta pelo regime militar, por abordagens mais plurais e inclusivas (Cerri, 2001, p. 108). Um marco fundamental dessa transformação foi a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, que regulamentou o sistema educacional brasileiro e trouxe avanços como a universalização do ensino básico, a autonomia universitária e o reconhecimento da educação indígena.

No entanto, o avanço do neoliberalismo, consolidado nos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso, submeteu a educação à lógica de mercado, promovendo um modelo técnico e voltado ao consumo. Esse cenário trouxe desafios como o financiamento público insuficiente, a predominância da educação privada, a falta de expansão da educação integral e a desvalorização do ensino público (Saviani, 1997). Paralelamente, cresceram as acusações contra escolas e professores, vistos por alguns como agentes de doutrinação ideológica. A crítica virou insulto, a educação se tornou ameaça. Como irmãs siamesas, o desprezo pelo conhecimento e a perseguição aos que ensinam caminharam juntas. Essas, sim, de mãos dadas.

Os professores da rede pública foram encurralados entre currículos burocráticos e desconstrucionistas, enquanto o enfraquecimento dos sindicatos os deixou sem defesa diante do desmonte da educação. Ao mesmo tempo, a indústria cultural despejou modismos irracionalistas, vendendo distração no lugar de investimento real em escolas e valorização docente. Desconstruíram-se ideias no papel[1], mas a realidade seguiu intacta, submetendo a educação à lógica do consumo. No fim, o combate ao negacionismo parece se resumir a um jogo de palavras: frases feitas contra frases feitas, enquanto a escola apodrece e o professor segue abandonado.

Assim, do ponto de vista genealógico, o negacionismo contemporâneo vai além da simples rejeição de fatos científicos. No século XVIII, acreditava-se que o conhecimento libertaria as pessoas, mas, no fim, a razão, em vez de promover a emancipação, foi instrumentalizada para servir mais aos poderosos do que ao povo. O rechaço às grandes narrativas orientadas para o futuro (Lyotard, 1979) tornou-se ainda mais evidente a partir da década de 1970 e se aprofundou neste milênio, à medida que as instituições da democracia liberal falharam em atender às demandas populares, intensificando o sentimento de alienação das massas.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), emergiu uma rejeição aos ideais da modernização, embora esses já fossem contestados no Ocidente durante a chamada “Era de Ouro” (1945-1973), como definida por Hobsbawm (1994, p. 13). Nesse período, o crescimento econômico, as políticas redistributivas e a intervenção estatal consolidaram uma economia mista, pelo menos no primeiro mundo — enquanto o terceiro[2] seguiu, em partes, a reboque —, buscando equilibrar os interesses do trabalho organizado e do capital.

Contudo, nos anos 1980, a onda conservadora liderada por Reagan (1981-1989) e Thatcher (1979-1990) marcou a ascensão de uma nova direita que combinava valores tradicionais com políticas neoliberais. A redução do papel do Estado em áreas sociais, o discurso punitivista e a oposição às liberdades civis promoveram narrativas revisionistas que alinhavam o passado aos seus interesses políticos (Lacerda, 2019).

Nancy Fraser aponta que eventos como o Brexit (2016) e a primeira eleição de Donald Trump (2017) refletem o colapso do neoliberalismo. Para Fraser, a vitória de Trump não é apenas uma rejeição ao neoliberalismo, mas ao “neoliberalismo progressista”, que uniu movimentos sociais e corporações, mascarando políticas predatórias sob discursos de diversidade. Esse modelo negligenciou as demandas da classe trabalhadora, perpetuando desigualdades econômicas enquanto promovia apenas o reconhecimento cultural. Assim, a extrema direita consolidou seu poder explorando inseguranças sociais, combinando narrativas conspiratórias e ressentimento coletivo.

Esse mecanismo, agora adaptado ao liberalismo, é explorado por movimentos de extrema direita. Um estudo de Engler e Weisstanner (2020) analisou como, entre 1980 e 2016, a desigualdade de renda e o declínio do status subjetivo impulsionaram o apoio à direita radical em 20 democracias ocidentais, especialmente entre homens brancos sem educação superior, ressentidos pela perda de status socioeconômico e cultural (idem).

Não é à toa que hoje se fala em guerras culturais, que, no cerne, tinham como foco o combate contra imigrantes e agora se manifestam como uma guerra de identidades na indústria cultural. Entre outros aspectos, isso envolve adultos que buscam preservar sua memória afetiva de desenhos animados, games e histórias em quadrinhos das “invasões bárbaras” ou da alardeada cultura woke.

No cerne, o que existe são conflitos de cunho ideológico, que se manifestam em embates internos entre as classes dominadas, tomando a forma de xenofobia, racismo, homofobia e intolerâncias religiosas. A instrumentalização da insegurança social para fins políticos, já observada nas décadas de 1920 e 1930, ressurge nesse contexto. A frase de Hermann Goering em Nuremberg ilustra essa dinâmica: “As pessoas sempre podem ser levadas a obedecer aos seus líderes […] basta dizer que estão sendo atacadas e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo […]. Isso funciona da mesma forma em qualquer país” (Apud Gilbert, 1947, p. 256).

Tal revisionismo dos conflitos sociais e geopolíticos, agora sob uma perspectiva cultural, já se manifestava na década de 1990, com interpretações como as de Samuel Huntington em O Choque de Civilizações (1997), que redefiniu os conflitos globais como choques culturais, em vez de lutas de classes. Sem uma centralidade clara, como a exploração do trabalho, a produção de mais-valia e a consequente alienação dos resultados da produção — inclusive científica e do conhecimento socialmente produzido — esse enquadramento deslocou a análise dos conflitos para uma suposta disputa entre valores e identidades.

Nesses termos, diversas formas de opressão passaram a ser vistas como equivalentes, com o capitalismo reduzido a apenas mais um entre vários sistemas de dominação (Collins & Bilge, 2016, p. 46). O resultado é a diluição da perspectiva materialista e a perda de uma explicação objetiva para as desigualdades estruturais.

Na segunda metade do século XX, a cisão entre razão instrumental e modernidade cultural se aprofundou (Habermas, 1984). Segundo Libâneo (2016), esse movimento desfigurou as funções educativas. No século XXI, políticas educacionais ditadas por organismos como o Banco Mundial intensificaram a crise. Desde os anos 2000, a escola trocou saberes humanísticos por métricas utilitaristas, afastando a ciência de seu potencial transformador e das necessidades concretas da classe trabalhadora. No Brasil, o desinvestimento em ciência, a gestão empresarial da Capes e a dependência das redes sociais como meio de comunicação científica ampliaram o fosso entre conhecimento e classes populares, deslegitimando a educação como ferramenta de emancipação.

A noção de letramento digital é relevante, mas insuficiente para enfrentar a crise atual. Como alerta o historiador inglês E. P. Thompson: “enquanto o mundo muda, devemos aprender a modificar nossa linguagem e nossos termos, mas nunca sem motivo” (Thompson, 1981, p.34). O problema não está na promoção de novos conceitos, mas na recuperação de saberes que transcendam o imediatismo técnico e dialoguem com a profundidade da experiência humana. É necessária uma educação popular que revisite a filosofia (para além do cânone ocidental) e resgatar literaturas que iluminem a condição humana.

Francis Bacon, crítico ferrenho do obscurantismo, já destacava que o avanço do conhecimento não se limita à ciência, mas está intrinsecamente vinculado à sua difusão. Advertia que a filosofia e os estudos universais, frequentemente tidos como inúteis, são, na verdade, o alicerce de todas as profissões, sem os quais elas não poderiam se sustentar (Bacon, [1605] 2021, The Second Book). Parte superior do formulário Parte inferior do formulário[3]

Na contramão disso, como já mencionado, Libâneo (op.cit) aponta que as políticas educacionais atuais promovem uma visão instrumental da educação, orientada para resultados imediatos e demandas do mercado, desfigurando seu caráter emancipador. Para ele, o acesso a conhecimentos culturais e científicos é indispensável tanto ao desenvolvimento cognitivo quanto à redução das desigualdades educacionais. Essa abordagem exige a integração de saberes sistematizados com práticas socioculturais, buscando uma síntese que transcenda o local e o imediato. Esse erro, ao se perpetuar, torna-se um grande obstáculo para o progresso do conhecimento, já que saberes fundamentais têm sido tratados de forma superficial. Trata-se de uma questão histórica e estrutural, que exige um reposicionamento da ciência e da educação em relação às demandas concretas das classes populares. Sem isso, continuaremos presos ao ciclo histórico de alienação, descrença e negação.

Nesse contexto, é notável como o negacionismo científico, por vezes, se limita a rebater o pânico moral dos negacionistas — às vezes com ainda mais pânico — sem uma reivindicação categórica de melhorias ou qualquer abordagem consistente nas políticas da Educação Básica. Como bem analisado por Márcio Alessandro de Oliveira (2023), a constante busca por novidades, aliada à rejeição da opressão disciplinar, dos discursos universalistas e da pedagogia tradicional, fez emergir, nas últimas décadas, uma tendência que desprivilegia a aquisição do conhecimento e privilegia materiais didáticos de baixa qualidade, frequentemente restritos a temas como redes sociais e alinhados aos interesses da indústria cultural, ao gosto do pós-moderno[4].

Essa transformação reflete um projeto mais amplo de desqualificação do magistério, que relega os professores ao papel de meros facilitadores ou macaqueadores de saberes, destituindo-os de autoridade intelectual e científica. Esse processo alienante reforçou a separação entre ensino e pesquisa, sustentando a ideia de que professores não são — ou não deveriam ser — pesquisadores (idem).

Como destacou Saviani (2021, p. 35-36, apud Oliveira, 2023), o ensino tradicional seguia um método expositivo estruturado em cinco etapas: preparação, apresentação, comparação e assimilação, generalização e aplicação. Esse modelo, fundamentado no método científico indutivo de Francis Bacon, apoiava-se em três pilares principais: observação, generalização e confirmação. Esses princípios sustentaram a empiria – distinta do empiricismo – e a ciência moderna, moldando práticas pedagógicas voltadas não apenas para a transmissão de conhecimento, mas também para a promoção de uma formação integral.

Portanto, contrariando o senso comum atual, pesquisa e ensino não são atividades dissociadas. Como apontam R. Brown e S. McCartney (1998), a curiosidade investigativa, essencial à pesquisa, é igualmente indispensável ao processo de ensino, reafirmando a necessidade de integrar essas práticas para uma educação verdadeiramente fundamentada em evidências e letramento científico.

No relatório “Information Disorder: Toward an Interdisciplinary Framework for Research and Policymaking” (Wardle e Derakhshan, 2017), os autores argumentam que o enfrentamento da desinformação exige ações coordenadas entre sociedade civil, governos, empresas de tecnologia e meios de comunicação. Destacam que não há uma solução única, mas sim a necessidade de estratégias combinadas, baseadas em educação, regulação, colaboração e pesquisa contínua. O combate à desinformação, segundo o relatório, transcende o aspecto técnico, constituindo um desafio ético crucial para preservar a democracia e a coesão social.

A negação da ciência não seria uma rejeição do próprio modelo científico neoliberal? Reduzida a um sistema fordista, baseado na produção incessante de Papers intermináveis, ela se afastou de sua função social, alimentando o negacionismo e o ressentimento popular. Não seria também sintoma da falta de significado na aceleração constante das transformações, de trabalhadores desafiados por um progressismo liberal midiático e pela desconstrução de discursos, muitas vezes empurrada goela abaixo? Em crises capitalistas, o fascismo prospera quando faltam saberes que atendam às demandas populares e quando as insatisfações não são direcionadas a quem detém o verdadeiro poder. O problema vai além da comunicação científica: exige vincular o conhecimento ao bem comum.

É importante notar que, no período em questão, registraram-se avanços sociais relevantes, como o aumento da presença de negros no ensino superior, de 20,8% em 2002 para 38,9% em 2009 (IPEA, 2024), apontando uma tendência à democratização educacional. Contudo, as desigualdades estruturais entre alunos de escolas públicas e privadas persistiram, assim como as disparidades de renda e oportunidades, comparáveis a sistemas segregacionistas como os dos Estados Unidos e do apartheid sul-africano (Carpentier, 2009). A crise econômica iniciada em 2014, agravada pelas políticas de austeridade implementadas a partir de 2016, resultou em desemprego crescente, cortes em políticas sociais e restrições nos setores de saúde e educação, revertendo conquistas anteriores (Loureiro, 2019).

Enquanto isso, no campo acadêmico, a crítica à ideologia e à economia política passou a ser vista como uma ortodoxia ultrapassada. Esse movimento ganhou força em uma das áreas mais disputadas pelos negacionistas hoje: a história, frequentemente reduzida a uma mera disputa de narrativas. Nos anos 1980, críticos literários e historiadores começaram a diluir a distinção entre ficção e verdade, um processo posteriormente imitado por discursos ideológicos, como os dos negacionistas. Ao negar a existência de parâmetros para a verdade histórica, esses discursos reivindicaram legitimidade para suas próprias versões, apresentando-as como “verdades” alternativas. Eric Hobsbawm alertou que a perspectiva relativista desafia a separação entre fato e ficção, já que que qualquer construção de realidade poderia ser válida desde que fosse percebida como tal: “O discurso é produtor desse mundo, não o espelho” (Hobsbawm, 2000, p. 286). No entanto, se a história se repete, a primeira vez é tragédia; a segunda, farsa.

Ainda assim, é preciso ressaltar que o ceticismo legítimo, inclusive o desconstrucionista, não pode ser entendido como uma forma de negacionismo, pois é inerente a todos os momentos da ciência. Reconhecemos os avanços trazidos pela ênfase no particular, que enriqueceu, no caso da história o conhecimento empírico, traduzida pela descoberta e uso de fontes variadas — arquivos judiciais, eclesiásticos, notariais, orais e visuais. Nossa crítica diz respeito à rejeição das generalizações sem uma busca por síntese, que frequentemente leva ao empiricismo normativista, distinto da fundamentação em evidências empíricas. Paradoxalmente, ao enfatizar subjetividades e significados nas “tramas culturais”, muitos estudos acabam retomando a noção de “fato puro”.

É importante também lembrar que, a partir dos anos 1970, críticas ao mecanicismo reducionista de certas correntes marxistas e estruturalistas contestaram a divisão rígida entre base e superestrutura, bem como a negligência aos sujeitos históricos. Contudo, as alternativas teóricas que se consolidaram, centradas em dispositivos de poder, tramas culturais e redes de atores, também apresentam limites (Viotti, 1994). Ao priorizarem estruturas invisíveis ou difusas, acabam obscurecendo a agência humana, inclusive a dos cientistas, como atores históricos transformadores.

Como afirmou um agitador revolucionário, teórico social e historiador da Revolução Russa, dissidente de uma vulgata marxista que se impunha à época: “Aquele que for incapaz de admitir a iniciativa, o talento, a energia e o heroísmo no marco da necessidade histórica não aprendeu o segredo filosófico do marxismo.”[5] Essa formulação reafirma a centralidade da ação humana na interação dinâmica entre agência e estrutura no processo histórico.

O pós-modernismo, ao fundamentar modelos quase exclusivamente na subjetividade e nas relações discursivas, apesar da intenção inversa de muitos autores, prefigura o obscurantismo ao rejeitar referências determinantes e propor a superação da modernidade. Desde os anos 1970, difundiu-se a ideia de que a racionalidade científica moderna foi deslocada por uma nova realidade, onde a razão, acusada de excludente e opressiva, cedeu espaço a uma lógica que valoriza narrativas locais e pluralidade. Embora desafiando métodos rígidos, essa descentralização da ciência também deu “razões” ao negacionismo contemporâneo, reforçado pela alienação das massas diante da fetichização das ciências, que aparecem como poderes estranhos e sobrenaturais.

Desconstruir as origens elitistas do saber é um tema relevante, mas deve ser equilibrado com a apropriação crítica desse conhecimento pelas classes populares. Como sugere Gramsci em Cadernos do Cárcere (Caderno 10, §6), a história e seu ensino devem transcender interesses de classe, construindo perspectivas universais que promovam transformação social. A democratização e qualificação da educação formal são essenciais para estabelecer uma relação efetiva entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS). Apenas uma educação crítica pode integrar avanços científicos e tecnológicos às demandas sociais, permitindo compreender as complexidades contemporâneas e atuar de forma transformadora.

Nesse sentido, Sérgio Paulo Rouanet já advertia — ironicamente, tornando-se ele próprio alvo do irracionalismo no futuro — sobre uma lógica que, nos anos 1980, extirpava dos currículos “tudo o que tivesse a ver com ideias gerais e valores humanísticos” (Rouanet, 1987, p. 125). Ainda assim, ele relacionou essa contracultura menos ao desconstrucionismo e mais à “incultura”, refletindo sobre o irracionalismo de seus futuros críticos: “Os egressos desse sistema educacional deficitário transformam, simplesmente, seu não-saber em norma de vida e modelo de uma nova forma de organização das relações humanas” (Rouanet, 1987, p. 125).

Portanto, nossa explicação simplista sugere que o combate ao obscurantismo deve ser feito ouvindo aqueles que o enfrentam há décadas: os professores. É urgente que assumam a defesa das bandeiras e demandas da educação básica de forma estruturante. O desafio contemporâneo é equilibrar a desconstrução das origens elitistas do saber com uma educação crítica e universalizante, capaz de integrar ciência, tecnologia e demandas sociais. Afinal, entre o dogmatismo moderno e o relativismo pós-moderno, a ação humana continua sendo o eixo imprescindível das transformações históricas. Se a tragédia já foi encenada e a farsa repetida, resta saber se permitiremos um desfecho ainda mais perverso.

*Jonathan de França Pereira é doutorando em história na Universidade Federal da Paraíba.

Referências


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Notas


[1][1] Um exemplo dessa visão que culpa discursos, e não estruturas, pelos problemas da educação aparece na afirmação de um aclamado historiador brasileiro: “Vive-se no país a ilusão de que investir mais em salários de professores e na modernização das escolas resolverá os problemas da educação, assim como se acredita que presídios de segurança máxima, câmeras de vigilância e bloqueadores de celulares solucionarão os problemas do sistema prisional. Contudo, tais problemas residem nas próprias instituições, nas concepções modernas que as criaram e as sustentam” (Albuquerque, Jr., 2017, p. 64). Contra isso, argumentamos que a educação pública definha sob promessas tecnicistas, enquanto o ensino humanístico clássico segue intacto nas escolas privadas. O Novo Ensino Médio é o exemplo: vendido como inovação, entregou precarização. A escola sempre serviu aos interesses das classes dominantes — e a tentativa de imposição da Lei da Mordaça (PL 7180/2014) prova isso. Mesmo sem institucionalização, medo e censura já moldam as salas de aula.

[2] O conceito de primeiro, segundo e terceiro mundo foi popularizado por Alfred Sauvy em 1952, comparando os países não alinhados ao Terceiro Estado da Revolução Francesa. Durante a Guerra Fria, o primeiro mundo incluía países capitalistas desenvolvidos, o segundo mundo era formado pelo bloco socialista, e o terceiro mundo pelos países não alinhados. SAUVY, Alfred. Trois mondes, une planète. L’Observateur, França, 1952.

[3] “Isso ocorre porque os príncipes encontram escassez de homens competentes para servi-los em questões de Estado, já que não há educação colegial livre onde aqueles inclinados a isso possam dedicar-se a histórias, línguas modernas, livros de política e discursos civis, e outras qualificações semelhantes para o serviço público. E como os fundadores de faculdades plantam e os fundadores de palestras regam, é coerente abordar o defeito presente nas palestras públicas, a saber, a pequenez e a insignificância do salário ou recompensa atribuída a elas na maioria dos lugares, sejam palestras sobre artes ou profissões. Pois é essencial ao progresso das ciências que os palestrantes sejam os mais capazes e competentes, já que são destinados a gerar e propagar o conhecimento, e não apenas para uso passageiro” (idem).

[4] OLIVEIRA, Márcio Alessandro de. A falácia das metodologias ativas. A Terra é Redonda, [S.l.], 2023. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-falacia-das-metodologias-ativas/. Acesso em: 28 jan. 2025.

[5] (TROTSKY, [s.d.], p. 55 apud SENA JÚNIOR, 2004).


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