Por GABRIEL LIMA*
O Supremo Tribunal Federal e a precarização do trabalho: uma análise crítica da relação capital-trabalho no Brasil
1.
Nos últimos anos, o confronto entre o bolsonarismo e o Supremo Tribunal Federal — marcado por ataques retóricos, tentativas de deslegitimação institucional e afrontas diretas à autoridade de ministros — fez por popularizar, em certos setores da sociedade, uma visão de que a Corte seria uma instituição progressista e aliada ao campo popular, o que por vezes parece ser reforçado por decisões favoráveis a grupos socialmente vulneráveis.
No entanto, a sequência de condenáveis posicionamentos acerca das relações de trabalho levanta a seguinte questão: quais interesses representa o STF na luta de classes brasileira?
Se por um lado o golpismo da extrema direita provocou um protagonismo da Corte na tentativa de responsabilização jurídica de parte do bolsonarismo, por outro, fica cada vez mais evidente seu alinhamento sistemático aos interesses do mercado e do grande capital, em sua fração “democrática”, na marcha em curso rumo à destruição dos direitos trabalhistas.
Em última análise, os motivos que desencadearam a crise entre o bolsonarismo e o Supremo não decorrem de conflitos entre interesses de classe, mas são produtos do interregno advindo após a crise do capitalismo democrático, que fracassou em conciliar prosperidade econômica com justiça social e participação política. Nesse sentido, apesar das múltiplas contradições aparentes, o bolsonarismo congregou as camadas sociais sem horizonte, direcionando-as contra as instituições democráticas, apontadas como uma das causas da crise. Dentre estas, talvez a em maior evidência, o Supremo Tribunal Federal.
Ou seja, a simplificação do debate sintetizando-o sob a ótica de uma polarização entre o bolsonarismo e a extrema-direita, de um lado, contra o STF e as forças progressistas, de outro, é insuficiente para responder à questão inicialmente levantada. Para se chegar ao papel da Suprema Corte na luta de classes brasileira, o melhor caminho é a partir de uma análise de sua atuação sobre a relação capital-trabalho. E, nesse sentido, não restam dúvidas de sua função na atualidade.
No capitalismo, a luta de classes expressa o antagonismo histórico entre os trabalhadores, que vendem sua força de trabalho, e a burguesia, proprietária dos meios de produção, que vive às custas do trabalho alheio. Enquanto motor da história, o desenvolvimento da luta de classes foi reflexo, ao longo do tempo, de um avanço na luta e organização dos trabalhadores.
Desse modo, a relação entre capital e trabalho, estruturada a partir do direito, passou a ser regulamentada por leis que, dentro de certos limites, tornavam a exploração do trabalho cada vez mais “digna” e socialmente aceita. Assim, conquistados sob suor e sangue, são marcos no Brasil, por exemplo, a Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943 e o Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963.
Contudo, com as transformações recentes do capitalismo e a ascensão do neoliberalismo, despontaram novas morfologias de trabalho, em especial marcadas pela flexibilização e desregulamentação das leis trabalhistas, que desembocam, por fim, na precarização do trabalho. Nesse cenário, é nítido o movimento jurídico do capital para validar, com a chancela do STF, a superexploração do trabalho: criam-se categorias que – por mais que a realidade negue – escapam ao conceito de “emprego”, logo, também não fazem jus ao sistema de proteção ao trabalho, a mais importante conquista ao longo da história. Assim, frauda-se, por meio do direito, a realidade.
2.
Ao endossar práticas como a pejotização, a uberização e outras formas contemporâneas de precarização do trabalho – e, ainda, ao pensá-las como relações de natureza civil – o STF tem contribuído diretamente para o esvaziamento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e para o desmonte da própria Justiça do Trabalho. Em nome da modernização e da livre iniciativa, decisões da Corte vêm legitimando a informalidade estrutural, a desproteção social e o enfraquecimento da organização sindical.
Na polêmica mais recente, o Supremo Tribunal Federal, por determinação do Ministro Gilmar Mendes, após reconhecimento de Repercussão Geral, suspendeu todos os processos em andamento que tratam da “pejotização” do trabalho. O fenômeno, que se espalhou pelo Brasil, consiste na contratação de uma Pessoa Jurídica para a realização de um trabalho.
Contudo, como forma de burlar a legislação trabalhista, tornou-se muito comum a contratação via Pessoa Jurídica para a realização de trabalho sob formas típicas de um empregado formal. Com isso, a empresa aumenta seu lucro às custas da dispensa dos direitos trabalhistas. O exercício de trabalho por meio de Pessoa Jurídica não é tido necessariamente como ilegal pela Justiça do Trabalho, mas, sim, a utilização desse mecanismo de forma fraudulenta, agora também colocada em xeque.
Desse modo, o Supremo tem atuado como verdadeiro revisor das relações de trabalho. Invadindo de forma autoritária outra esfera, cria-se um conflito de competências que, se seguir esses passos, caminha para o fim da Justiça do Trabalho. Na prática, as decisões recentes da Corte, como quando se trata, por exemplo, de trabalhadores de aplicativos, respaldam a transformação da relação de trabalho em uma mera relação civil, marcada pela autonomia de vontades. A tendência, excelente para o capital, é o fim da relação de “emprego”, generalizando a superexploração do trabalhador precarizado.
O papel do STF no desmonte da Justiça do Trabalho não deixa esconder qual lado da disputa o Judiciário tem impulsionado. Para o futuro, tão relevante quanto, é pensar: como isso atingirá a classe trabalhadora brasileira e como esta pode se (re)organizar na luta de classes?
A resposta certamente não virá do Direito e da Justiça, mas terá de ser construída por meio dos instrumentos de classe – partidos políticos, movimentos sociais e sindicatos – que melhor compreenderem a dinâmica das novas formas de trabalho do século XXI.
Se, fruto da ofensiva neoliberal, o mundo do trabalho se transformou intensamente nos últimos anos, os instrumentos de organização dos trabalhadores devem se adequar para oferecer uma resposta à altura. E assim, enfim, poder apontar uma saída à esquerda para o atual interregno, com um projeto que ofereça novos horizontes, esperançando que um outro mundo do trabalho ainda é possível.
*Gabriel Lima é graduando em direito na Universidade de São Paulo (USP).
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