O super capitalismo

Charles Sheeler ( 1883–1965 ), Criss-Crossed Conveyors, River Rouge Plant, Ford Motor Company, 1927.
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Por JOSÉ MICAELSON LACERDA MORAIS*

Considerações sobre a autonomização da autodeterminação do capital

Procuramos neste artigo abordar a separação entre valor e mais-valor na perspectiva da seção I, do livro 3, de O capital, que trata da “transformação do mais-valor em lucro e da taxa de mais-valor em taxa de lucro”. A sua importância reside em tentar demonstrar que a separação entre valor e mais-valor, a financeirização e a digitalização da economia, em conjunto, podem configurar uma nova configuração de reprodução ampliada do capital. De certa forma, muitos estudos já demostraram como a financeirização da economia deslocou a importância da produção material no processo de acumulação de capital. Simplesmente adicionamos a esse contexto os resultados mais recentes da última revolução tecnológica.

Conforme explica Marx no livro III, de O capital, o valor de cada mercadoria, produzida de forma capitalista, é dada pela fórmula M = c + v + m, onde, c é o capital constante, v é o capita variável, e m é o mais-valor. A partir dessa fórmula ele diferencia o “valor de reposição em mercadoria para o valor capital” ou o preço de custo da mercadoria, dado por c + v, do “valor-produto” ou “custo de produção”. Portanto, Marx diferencia o que a mercadoria custa ao capitalista do que a mercadoria custa a sua própria produção. Essa diferença se torna mais clara quando o autor afirma que “[…] o custo capitalista da mercadoria se mede pelo dispêndio de capital, e o custo real da mercadoria, pelo dispêndio de trabalho […]” (MARX, 2017b, p. 54). Dessa forma, o preço de custo tanto aparece para o trabalhador como o custo real da própria mercadoria quanto “assume a falsa aparência de uma categoria da própria produção de valor”. Pois, se o preço de custo é dado por p = c + v, a fórmula M = c + v + m, assume a forma M = p + m, logo p = M – m. O mais-valor, m, aparece assim como um excedente do valor da mercadoria acima de seu preço de custo, simbolizando “[…] um crescimento do valor do capital que é despendido na produção da mercadoria e que retorna de sua circulação” (MARX, 2017b, p. 59). Para o capitalista esse crescimento deriva do próprio capital, pois ele passou a existir após o processo de produção, portanto, teve “origem nos empreendimentos produtivos realizados pelo capital”. Para o trabalhador, “[…] a parcela variável de valor do adiantamento do capital que paga o valor ou o preço de todo o trabalho despendido na produção […]” (MARX, 2017b, p. 57).

Para completar seu raciocínio, isto é, para mostrar a forma mistificada da produção do valor no capitalismo, Marx supõe inicialmente que mais-valor é igual a lucro, ou seja, m = l. Assim, se M = c + v + m, sendo p = c + v, de forma que M = p + m, e, sendo, ainda, m = l, logo, M = p + l. Conclui Marx (2017b, p. 62):

“[…] pelo fato de que na formação aparente do preço de custo não se percebe qualquer diferença entre capital constante e capital variável, a origem da alteração de valor que ocorre durante o processo de produção precisa ser deslocada da parte variável do capital para o capital total. Uma vez que num polo o preço da força de trabalho aparece na forma transformada do salário, no polo oposto o mais-valor aparece na forma transformada do lucro.”

O mais-valor assume a forma mistificada de lucro e, assim, este se apresenta no mundo das trocas e da produção; apenas como uma “soma de valor desembolsada para gerar lucro” ou de um “lucro engendrado”, “porque uma soma de valor” foi empregada como capital. Desse modo, parece que o mais-valor deriva da venda de mercadorias acima do seu valor e não da diferença entre valor de troca e valor de uso da força de trabalho.

Se, M = p + l, e, l = 0, M = p. Assim, o limite mínimo do preço de venda é dado pelo preço de custo da mercadoria; M = c + v. No polo oposto, tem-se a situação da mercadoria ser vendida pelo valor-mercadoria, ou seja, M = c + v + m. Nesse caso, p = M – m, implica que sendo a mercadoria vendida pelo seu valor o capitalista realiza um lucro igual ao “excedente de seu valor acima de seu preço de custo”. Portanto, “[…] entre o valor da mercadoria e seu preço de custo, é claramente possível uma série indeterminada de preços de venda. Quanto maior o elemento do valor-mercadoria constituído de mais-valor, maior o campo de ação para a prática desses preços intermediários.” (MARX, 2017b, p. 62). Marx, assim, conclui que preço de venda e preço de custo são coisas diferentes. Uma situação em que m = 0, constitui um “caso que jamais ocorre com base na produção capitalista”, como explica o próprio autor: “[…] seria absolutamente falso pressupor que, se todas as mercadorias fossem vendidas por seu preço de custo, o resultado seria o mesmo que se todas elas fossem vendidas acima de seu preço de custo, mas por seu valor […]” (MARX, 2017b, p. 65).

Marx, no capítulo 4 do livro I, de O capital, “A transformação do dinheiro em capital”, formulou sua teoria da exploração revelando toda a força da teoria do valor-trabalho como categoria de análise econômica. Ele nos mostra de forma lógica, considerando o valor como resultado de relações sociais historicamente específicas, como a produção capitalista transforma uma troca de equivalentes numa troca de não equivalentes, a partir do valor de uso da força de trabalho. A equivalência como princípio das trocas é, assim, mantida na esfera da circulação, na qual ocorre a troca da força de trabalho por salário. A não equivalência é um resultado implícito, porque encontra-se escondida na sutil diferença entre trabalho e força de trabalho; entre a formação de valor e o processo de sua valorização. Na aparência, o capitalista fez um pagamento justo, pois pagou o preço de trabalho determinado pelo mercado. Na essência, a coisa é outra. A utilização da força de trabalho durante uma jornada de trabalho não corresponde à “justiça” do mercado. Porque a produção de uma jornada de trabalho gera um valor acima do salário estabelecido pelo mercado, gera um mais-valor que é apropriado não pelo trabalhador, mas pelo capitalista. Estava, então, formulada a teoria do mais-valor, a teoria da exploração do trabalho no capitalismo. Veja que exploração nada tem a ver nem com as condições de trabalho ou com baixos salários. Ela está relacionada a diferença entre o valor de troca da mercadoria força de trabalho no mercado e o produto de seu uso durante o processo produtivo.

Não fosse o mais-valor explicado pelo resultado da diferença entre valor de troca e valor de uso da força de trabalho, muito apropriadamente, ele o seria pelo “tempo de trabalho necessário” à produção e reprodução do trabalhador. É um fato claro como o dia que os frutos do trabalho não retornam para o trabalhador assalariado, ou seja, o valor é produzido socialmente, mas apropriado de forma privada. Tudo que cabe ao trabalhador como resultado da utilização de sua força de trabalho é a sua reprodução individual e social. Algum grau acima dessa condição foi conquistado somente por meio de muita luta da classe trabalhadora contra sua total exploração. No entanto, a luta entre o conjunto dos capitalistas e o conjunto dos trabalhadores, representa uma antinomia, como tão bem demonstrou Marx (2017a), ou seja, “entre direitos iguais, quem decide é força”. Então, como a força é um monopólio do Estado e como este é um Estado comandado de forma capitalista, o grau civilizatório que pode ser atingido pelo capitalismo será sempre limitado pela remuneração da força de trabalho em torno de um valor que gira ao redor do tempo de trabalho necessário” a produção e reprodução do trabalhador. Em outras palavras, é um grau civilizatório no qual as relações sociais entre os indivíduos singulares, acontece a partir de uma sociabilidade que sempre envolve formas de exploração, dominação e expropriação.

Marx, ainda, no livro I, nos apresenta uma terceira forma de explicar porque os frutos de trabalho não retornam para o trabalhador assalariado. Trata-se da “influência que o aumento do capital exerce sobre o destino da classe trabalhadora”, que ele analisa no capítulo 23, “A lei geral da acumulação capitalista”. Sendo a produção de mais-valor a lei a absoluta do modo de produção capitalista, a forma de sua reprodução implica sempre, e de forma continuada, a reprodução própria da relação capitalista; “capitalistas de um lado, assalariados de outro”.

“Na realidade, portanto, a lei da acumulação capitalista, mistificada numa lei da natureza, expressa apenas que a natureza dessa acumulação exclui toda a diminuição no grau de exploração do trabalho ou toda elevação do preço do trabalho que possa ameaçar seriamente a reprodução constante da relação capitalista, sua reprodução em escala sempre ampliada. E não poderia ser diferente, num modo de produção em que o trabalhador serve às necessidades de valorização de valores existentes, em vez de a riqueza objetiva servir às necessidades de desenvolvimento do trabalhador. Assim como na religião o homem é dominado pelo produto de sua própria cabeça, na produção capitalista ele o é pelo produto de suas próprias mãos (MARX, 2017a, p. 697).”

Se nossa afirmação para a formação do mais-valor estiver correta (tanto a partir “tempo de trabalho necessário” à produção e reprodução do trabalhador, quanto da “lei geral da acumulação capitalista”), a teoria do mais-valor ganha uma amplitude muito maior do que a pensada originalmente pelo próprio Marx. Primeiro, porque o mais-valor se desvincula do valor, ou seja, o mais-valor se autonomiza. Segundo, porque o mais-valor passa a existir em qualquer atividade econômica que tenha como base o trabalho assalariado, independente dessa atividade ser considerada produtiva ou improdutiva. Dessa perspectiva, o mais-valor não é mais uma questão do capital ser considerado produtivo, é uma questão da própria existência do salário como forma de remuneração do fator trabalho.

Por esse raciocínio a diferença entre preço de custo e valor assume outra dimensão, pois o mais-valor deixa de ser uma adição e passa a ser uma taxa representada no próprio capital variável; se essa taxa se realizará integralmente ou não somente a esfera da circulação pode confirmar. Logo, M = c + v + (m/v)× v, ou seja, a taxa de mais-valia é intrínseca a própria existência de v. O lucro passa a ser dado por l = v × (m/v), e, como na fórmula original, varia diretamente com a magnitude do mais-valor.

Marx, no capítulo 3, “Relação entre a taxa de lucro e a taxa de mais-valor”, do livro III, de O capital, definiu a taxa de lucro como a relação entre o mais-valor e o capital total (m/C). Mas, ao proceder dessa forma ele já define o lucro como elemento interno, quando na verdade sua formação ocorre somente via circulação. Além disso, sabemos que o mais-valor é resultado exclusivamente do trabalho assalariado. Se quisermos determinar uma taxa de lucro interna devemos relacioná-la diretamente a uma taxa de mais-valor, como fizemos na última fórmula, l = v × (m/v). Assim, as variações em l passam a depender não da relação (m/C), mas da própria taxa de mais-valor. Assim, não existe um mais-valor e um lucro, eles serão sempre iguais no interior do processo. Se,

v = 100 e m = 100, logo, l = 100 × (100/100) = 100;

v = 50 e m = 100, logo, l = 50 × (100/50) = 100

v = 25 e m = 100, logo, l = 25 × (100/25) = 100.

Pelo raciocínio de Marx é como se tivéssemos duas taxas de lucro, uma interna e outra externa. Para dar coerência a formulação temos que eliminar uma delas. Não podemos ter ao mesmo tempo um lucro interno, que necessariamente tem de corresponder ao mais-valor, e, um lucro externo, que corresponde a realização do lucro interno na esfera da circulação.

Dessa perspectiva, também, a questão de que as mercadorias são ou não vendidas pelos seus valores perde sentido. Tudo o que importa considerar é que a produção capitalista se realiza a partir da exploração do trabalho assalariado. Pois, apesar de existir uma relação entre valor e preço de mercado, essa é uma relação externa a própria geração do valor, o qual funciona como fundamento, mas para o qual os preços e suas variações, apresentam-se quase que exclusivamente de forma autônoma, via processo de concorrência ou situações de monopólio.

A principal implicação da autonomização do mais-valor do valor é que não há mais necessidade de uma “taxa média geral de lucro” para a apropriação do mais-valor entre as diversas frações dos capitais em função. Embora, ainda, seja correto afirmar que exista transferência de mais-valor de uma esfera de capital para outra. O lucro realizado na esfera da produção apresenta-se, então, como um processo de ajuste entre os diferentes graus de exploração da força de trabalho nos diversos setores econômicos da sociedade. A afirmação de Marx de “[…] cada capital investido, seja qual for sua composição, extrai de cada 100, num ano ou em outro intervalo de tempo, o lucro que nesse período corresponde a 100 como alíquota do capital total […]” (MARX, 2017b, p. 193), fica, assim, comprometida.

Por essa ótica, não há necessidade que os preços de mercado das mercadorias correspondam diretamente aos seus valores, pois funcionam como instâncias distintas, apesar de relacionadas, de determinação, respectivamente, de preços de mercado (através da concorrência) e de grau de exploração da força de trabalho. Portanto, o problema da transformação de valores em preços se apresenta praticamente como um falso problema e , ainda, não contribui para pensar formas de superação do capitalismo. Se a produção de valor é tanto a sua produção quanto a produção de mais-valor, tudo o que importa é o quanto desse mais-valor será realizado no mercado através da concorrência.

Veja que essa proposição não nega a lei do valor trabalho, tampouco nega a troca de equivalentes no mercado. Pois, o valor é determinado pelo tempo de trabalho (passado e presente) e as trocas figuram apenas como ajustes entre os vários tempos de trabalho de todos os ramos da economia. Na troca entre capitalista e trabalhador assalariado eles estão trocando equivalentes (salário por força de trabalho), no entanto, do ponto de vista do valor é uma troca de não equivalentes, pois o valor de uso da força de trabalho é um aspecto real e não apenas uma ficção como a realizada na esfera da circulação. O princípio da equivalência é, portanto, ao mesmo tempo da equivalência e da não equivalência. Não é uma contradição em si, mas uma forma dialética de estabelecer o princípio. Se assim o é, todas as trocas são ao mesmo tempo troca de equivalentes e troca de não equivalentes. Todas as demais mercadorias além da força de trabalho devem ser assim também compreendidas. É nesse aspecto que a transformação de valores em preços se apresenta como um falso problema. Todas as mercadorias contêm trabalho pago e não pago, logo, todas as mercadorias possuem valor e mais-valor. Os preços estabelecidos no mercado realizam valor e, em proporções diferentes, dependendo das condições de concorrência, de monopólio ou de composição orgânica do capital, mais-valor. Conclui-se que os valores não necessariamente correspondem aos preços, embora funcionem como fundamento dos mesmos.

A lei do valor-trabalho assume uma dimensão muito maior que a pensada pelos clássicos e pelo próprio Marx. A distinção entre trabalho produtivo e improdutivo é anulada em favor da ideia de trabalho e mais-trabalho. Trabalho como necessidade de produção e reprodução das condições diárias de existência e, mais-trabalho, como excedente econômico.

Como nos clássicos existiu uma confusão entre trabalho e força de trabalho, em Marx, também, parece existir uma certa confusão entre valor e mais-valor. Tal confusão parece ter como origem tanto a distinção entre o que é trabalho produtivo e improdutivo quanto a ideia de capital produtivo. Se o capital é uma relação social específica entre capitalistas e trabalhadores e, se o mais-valor é originado do trabalho não pago e, ainda, considerando que todo trabalho assalariado representa uma subtração do trabalhador de parte de seu produto social; logo, qualquer trabalho assalariado em qualquer ramo de atividade econômica gera mais-valor. Ou seja, o mais-valor é uma forma de existência que perpassa o capital produtivo, sendo resultado de qualquer forma de capital. Não é porque o capital mercantil refere-se a esfera da circulação que ele não poderá gerar mais-valor. O processo de circulação certamente, como demonstrou Marx, não gera nenhum valor. Mas, o capital mercantil, assim como o capital fictício, em termos de existência, são setores nos quais estão presentes tanto o trabalho quanto o mais-trabalho; logo, apesar de não produzirem valor, extraem diretamente mais-valor da relação trabalho/mais-trabalho.

Nesse aspecto, a teoria do valor-trabalho se torna muito mais geral, de forma que a relação entre trabalho e valor perpassa o princípio da troca de equivalentes. Na economia contemporânea, diante da microeletrônica, dos algoritmos, enfim, das novas tecnologias da informação, uma pequena quantidade de trabalho torna-se capaz de gerar um grande valor e, ainda, servir de condutor para geração de outras massas de valor por outros diversos setores econômicos. Mesmo no ramo industrial, no capital tido como produtivo, o valor é produzido, por cada vez menos trabalhadores, devido as características tanto do próprio trabalho quanto dos meios de produção e de organização digitalizados. Portanto, a relação entre valor e trabalho foi totalmente transformada, mas isso de forma nenhuma invalida a lei do valor-trabalho, pelo contrário, amplia o seu poder enquanto categoria de análise da economia capitalista. Lembrando que a separação do valor e do mais-valor consiste de duas dimensões: 1) trabalho pago e trabalho não pago; e 2) automação de base tecnológica digital. Instâncias que se reforçam mutuamente.

Uma das consequências mais importantes das transformações acima descritas é a autonomização da acumulação frente à produção de mercadorias. Dessa forma, a própria produção do valor passa a ser um elemento secundário, toda a atenção volta-se a formas de extrair mais-valor. Pois, o próprio trabalho morto corporificado no setor tecnológico produz mais-valor de forma autônoma.

O avanço da financeirização, nas duas últimas décadas do século XX, trouxe muita instabilidade ao capitalismo. Todavia, conforme destaca Chesnais (2002, p. 2), “[…] o advento dessa forma de capital fez-se acompanhar da formação de configurações sistêmicas novas e de encadeamentos macroeconômicos e macrossociais inéditos […]”.Na década de 1990, o setor financeiro superou o setor manufatureiro, no sentido de que se generalizou uma maior percepção a respeito do peso e da influência dos ativos financeiros nas economias modernas. A composição da riqueza social, tanto de famílias quanto de empresas, sofreu importante mutação com a velocidade do crescimento dos haveres monetários. Movimento que resultou de uma forte tendência à financeirização e ao rentismo e que não está confinado às fronteiras nacionais. Processo que estabelece a autonomização do juro perante o lucro e no qual a relação-capital assume sua forma mais alienada e mais fetichista, conforme nos explica Marx. Por isso, “[…] em vez de superar o antagonismo entre o caráter social da riqueza e a riqueza privada [forma de sua apropriação], limita-se a desenvolvê-la sob uma nova configuração.” (MARX, 2017b, p. 498)

Nessa nova configuração do capital e do capitalismo, os desdobramentos da última revolução tecnológica, das duas primeiras décadas do século XXI, atuaram de duas formas a saber: 1) fornecer estabilidade ao novo padrão de riqueza e ao sistema, através das Big Tech e demais empresas de base tecnológica; e 2) garantir continuidade ao processo de acumulação ampliada de capital no capitalismo financeirizado. Daí, nossa denominação de capitalismo digital-financeiro-de-vigilância. Como nos esclarece os autores Goldberg e Akimoto, (2021, l. 1294)

“[…] capitalismo de vigilância não é tecnologia; é uma lógica que se infiltra na tecnologia e que a comanda para ação. (…) O digital pode tomar muitas formas, a depender das lógicas econômicas e sociais que o trazem à vida. (…) Que o capitalismo seja uma lógica em ação, não uma tecnologia é um ponto vital porque o capitalismo de vigilância que nos fazer crer que suas práticas são apenas expressões inevitáveis das tecnologias por ele empregadas.”

Assim, denominamos de autonomização da autodeterminação do capital o processo que resulta da interação entre financeirização e digitalização da economia, do qual se origina uma nova lógica de acumulação, que abre novas fronteiras para a continuidade do capitalismo, enquanto modo de produção dominante.

Há muito, o capitalismo, certamente, criou as condições que Marx afirmara como “tendência histórica da acumulação capitalista”, no capítulo 24 do livro 1, de O capital: da “expropriação dos expropriadores”. No entanto, não sucumbiu a elas. Pelo contrário, em apenas 154 anos, após a publicação de O Capital, essa organização social foi capaz de criar novas formas de geração de valor, novas dinâmicas de acumulação, novas relações sociais de expropriação e de exploração do trabalho, que colocaram em risco a própria existência humana e o próprio planeta. Pelo poder alcançado pelo capital com o capitalismo digital-financeiro-de-vigilância, talvez nunca passemos da pré-história humana, no sentido humanista do próprio Marx. Para ele o capitalismo seria o último estágio de nossa pré-história, marcada sempre pela exploração do homem pelo homem, e o início de nossa verdadeira história, levada a cabo por uma classe destituída de tudo (“uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil”) e, justamente por isso, plenamente capaz de humanidade, de realização da emancipação humana universal. Porque para Marx (2010, p. 54), “toda emancipação é redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem”, ou seja, a superação de sua alienação frente à religião, ao Estado e a economia. Enfim, como de forma extraordinária sintetizou Reinaldo Carcanholo, na sua apresentação da obra de Marx, “Contribuição à crítica da economia política” (2008, p. 14): “[…] abrir-se-iam, assim, as possibilidades de superação da violência contra a verdadeira natureza humana, de superação da alienação e do trabalho alienado. Vislumbrar-se-ia o surgimento de uma sociedade a ser organizada sobre a base do trabalho criativo e que garantiria a realização plena do ser humano”.

Até agora todas as tentativas falharam em conter o capitalismo e a crescente ampliação de seu poder destrutivo. O Estado e a democracia, que exerceram forças contra-arrestantes de grande importância ao longo do século XX, se mostram cada vez mais impotentes diante das novas formas de valor e do processo de valorização. A onda neoliberal e a financeirização da riqueza escancararam de vez o domínio do capital sobre o Estado. A democracia tanto agoniza como é manipulada, conduzida para onde os interesses do capital bem entendem. Tivemos ainda uma experiência socialista desastrosa que se enraizou de tal forma no inconsciente coletivo, criando e alimentando um estigma altamente negativo, que torna praticamente inviável qualquer outra tentativa nesse sentido. As organizações da classe trabalhadora, tão fundamentais na contenção do poder do capital, na segunda metade do século XIX, e até o último quartel do século XX, foram destruídas ou esvaziadas. A própria classe trabalhadora foi dividida e fragilizada, entre: (1) assalariados superiores (executivos e afins); (2) assalariados inferiores (funcionários públicos, por exemplo); (3) não assalariados, mas empregados via aplicativos (Uber e outros); e (4) não assalariados, nem necessários, nem reconhecidos como parte da sociedade, ou nem sequer exército industrial de reserva.

A fé da sociedade na ciência, como forma de humanização ou de instrumento com fins civilizatórios, que figurava como uma esperança, ainda que tênue até o final do século XX, hoje se mostra cada vez mais como um instrumento sofisticado de esticar ao máximo o conformismo social para o mundo que criamos. A transformação da ciência não só em mercadoria, mas em capital, conferiu a este um poder praticamente sem limites.

*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA.

Trecho do livro O capitalismo e a revolução do valor: apogeu e aniquilação. São Paulo, Amazon (Independently Published), 2021.

Referências


CHESNAIS, François. A teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1 (18), p. 1-44, jan./jun. 2002.

GOLDBERG, Leonardo; AKIMOTO, Claudio. O sujeito na era digital: ensaios sobre psicanálise, pandemia e história. São Paulo: Edições 70, 2021. (formato kindle).

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2.ed. SãoPaulo: Expressão Popular, 2008.

________. O capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017b.

________. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017a.

________. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

 

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