Por JOÃO RODRIGO V. MARTINS*
O teatro de grupo em São Paulo resiste ao mercado, insubordina-se perante o neoliberalismo, mas não escapa da armadilha dos editais
1.
Os núcleos artísticos de teatro de grupo na cidade de São Paulo[i] são uma entre as diversas categorias que compõem a cena teatral.[ii] Seu diferencial está na forma como articula suas relações de gestão, compreendidas aqui como forma de organizar o trabalho e a produção artística, com as políticas públicas de cultura, buscando construir experiências estéticas e políticas contra-hegemônicas. Tais experiências almejam questionar não apenas a lógica da cultura como mercadoria, mas também as próprias relações de produção capitalista.
O teatro de grupo é uma categoria caracterizada por práticas horizontais, colaborativas, coletivas, com enraizamento territorial e de produção não mercadológica. Em mapeamento recente (MATE, 2020), identificou-se a existência de mais de trezentos núcleos com produção significativa na cidade. Essa categoria, ao propor uma contra-hegemonia, estimula a refletir sobre aspectos fundamentais da produção e organização do trabalho artístico no capitalismo contemporâneo cognitivo (NEGRI; HARDT, 2014; NEGRI; LAZZARATO, 2001), abordando as relações sociais de produção implicadas na criação de mais valor.
Os editais constituem o principal dispositivo por meio do qual se realiza a política pública de cultura no Brasil. O município de São Paulo não foge à regra. A Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo,[iii] principal política pública de cultura voltada ao teatro de grupo, se destaca por ser a única dedicada ao financiamento de processos continuados de pesquisa artística, sem a obrigatoriedade de resultar em uma obra ao final.
Por sua perspectiva contra-hegemônica, tanto em termos de criação estética e poética quanto da organização do trabalho, os núcleos artísticos do teatro de grupo costumam afirmar que não produzem mercadorias. Isso ocorre porque se organizam como associações informais, horizontais, baseadas no trabalho coletivizado, não hierarquizado. Seu foco está nos processos de pesquisa e criação e não no resultado ou “produto”.
Assim, a estruturação em coletivo ocorre de forma continuada, pautada pela convergência de interesses estéticos e poéticos, e não de maneira provisória com a finalidade de produzir obras destinadas à comercialização. Essa afirmativa, contudo, quando confrontada com a noção de mercadoria proposta por Karl Marx (2004, p.117) se revela problemática, posto que mercadoria é, sobretudo, uma relação social e, por conseguinte, não pode ser definida tão somente pelo objeto, material ou imaterial, resultante do processo produtivo. O que adquire centralidade nesse processo são as relações sociais que a constituem e seu valor de troca.
Não há realização do valor de troca na apresentação dos espetáculos ou atividades teatrais dos núcleos artísticos, uma vez que os ingressos não são cobrados ao público. O valor de troca se manifesta na relação com o financiador público. No entanto, não estamos falando de extração de mais valor que se materializa em lucro ao poder público. O que está em jogo, nesse caso, é geração de mais valor simbólico que pode beneficiar, de um lado, o grupo artístico, e de outro, o Estado.
Ao produzir seus espetáculos, o grupo gera para si valores imateriais e intangíveis como prestígio, reconhecimento, visibilidade rede de contatos e sociabilidade em um campo marcado por intensas disputas por recursos. Esses valores simbólicos, por sua vez, podem ser convertidos em acesso futuro a políticas culturais, funcionando como capital social e simbólico, como aponta Pierre Bourdieu: “o capital social, que consiste em recursos baseados em contatos e participação em grupos e o capital simbólico que é a forma que os diferentes tipos de capital tomam uma vez percebidos e reconhecidos como legítimos” (BOURDIEU, p. 1987. p. 4).
Por outro lado, o valor gerado pelos grupos é angariado por gestores públicos para difusão cultura e promoção de seu governo — como aponta Karina Mauro em sua pesquisa sobre o teatro alternativo em Buenos Aires: “devemos ser capazes de estabelecer os vínculos que se formam entre a geração de recursos materiais e simbólicos pelo trabalho dos artistas e os distintos circuitos de produção, a fim de observar como o capital simbólico apropriado em um circuito que oferece poucas retribuições materiais se converte em benefícios econômicos em outro” (2018, p. 133-134).
2.
No que diz respeito às relações sociais de produção, os grupos têm relativa dependência das políticas públicas de cultura, as quais são estruturadas por meio do dispositivo do edital.[iv] O edital, enquanto aparato tecnocrático de organização da concorrência, é um dispositivo neoliberal por excelência e isso tem impacto significativo na organização do trabalho, produção artística e na subjetividade dos artistas.
No contexto neoliberal o edital impõe condições precárias de trabalho e suscita uma subjetivação, onde predomina o sujeito enquanto homo economicus (BROWN, 2015) ou sujeito empresarial (DARDOT; LAVAL, 2016).
As condições de precariedade do trabalho se expressam na informalidade, com contratos de prestadores de serviço; na intermitência do emprego e imprevisibilidade da renda, com a dinâmica de editais esporádicos onde o acesso nunca é contínuo devido à baixa oferta e alta demanda, gerando insegurança e medo; na ausência de direitos trabalhistas e seguridade social, onde não há décimo terceiro, férias, nem afastamento remunerado em casos de saúde; na necessidade de complementar renda com outros trabalhos também precários como outros grupos teatrais ou então em áreas como educação, serviços, construção civil, dado que não foi identificado, em nenhum dos casos acompanhados, um artista que vivesse exclusivamente do trabalho desenvolvido no grupo e dos recursos provenientes das políticas públicas de cultura.
No plano do processo de subjetivação fomenta-se valores e práticas como concorrência, autodisciplina, autocontrole, autoresponsabilização, flexibilidade, polivalência, eficiência, investimento em si mesmo como capital humano, apelo à criatividade e à gestão de risco. O artista ou grupo que se conforma a essa forma de subjetivação pode ser justamente aquele que, mesmo em condições precárias, consegue, por exemplo, mobilizar o capital social construído no interior do núcleo artístico para obter um melhor posicionamento na complementação de renda em outras áreas – seja por meio de sua rede de contatos, círculo de sociabilidade ou inserção em diferentes circuitos profissionais.
Assim, a problemática do dispositivo do edital consiste: na promoção do homos economicus ao organizar a concorrência (i), diante da precariedade, de forma tecnocrática, isto é, se apresentando como técnica, neutra e objetiva (ii), e estimulando a subjetivação gerencial empresarial (iii).
Primeiro, o edital constitui o modelo jurídico-administrativo que estrutura a lógica da concorrência. Existem muitos núcleos artísticos da categoria e pouca disponibilidade orçamentária de políticas públicas de cultura. Os editais formulados com prazos curtos e recursos limitados intensificam a concorrência, colocando os grupos em uma posição de constante pressão financeira, insegurança, medo e à beira da falência, reduzindo possibilidades de solidariedade e apoio mútuo dada às urgências materiais.
Segundo ponto, o direcionamento dos aportes financeiros públicos ocorre por meio de uma comissão que adota critérios apresentados como técnicos, neutros e objetivos. Esses critérios, atravessados por interpretações subjetivas que envolvem visão de mundo e concepção de arte, são construídos tecnocraticamente como se fossem impessoais. Ao fazer isso acabam cristalizados como universais e como se expressassem o interesse da sociedade, escamoteando formas de governo estatais e privadas.
O terceiro aspecto refere-se à promoção de uma subjetivação empresarial e gerencial alinhada aos preceitos globais de boa governança. Nesse contexto, exige-se que artistas e grupos adotem práticas de autorresponsabilidade (accountability), com ênfase na eficiência na gestão de recursos e no gerenciamento de resultados. Além disso, é imprescindível para sobrevivência o desenvolvimento de competências em áreas como planejamento estratégico, execução e monitoramento de projetos, gestão de conflitos e pessoas, flexibilização e inovação.
Na perspectiva dos artistas do teatro de grupo sobre o trabalho com editais, é comum ouvir relatos de que o trabalho com arte e cultura é aquilo que dá sentido para eles, sendo um espaço onde podem se realizar política, estética e eticamente. Nessas falas pairam ideias de liberdade, autonomia e autogestão que, na perspectiva de Isabell Lorey (2006), são valores que desempenham um papel basilar na “precarização de si”.
Trata-se, portanto, de um discurso em que a precariedade se apresenta como uma condição autoimposta: “O que nos interessa aqui não é a forma como as pessoas, em geral, são forçadas à precarização, mas o fato de que algumas afirmam que, enquanto trabalhadoras e trabalhadores culturais, escolheram livremente condições precárias de vida e trabalho. […] Dessa forma, no entanto, as contínuas relações de poder e dominação tornam-se invisíveis e os mecanismos de normalização se naturalizam como decisões autônomas e autoevidentes dos sujeitos”. (2006, p 12).
3.
Entretanto, os núcleos artísticos do teatro de grupo não são integralmente determinados pela lógica neoliberal que constitui as políticas públicas de cultura via editais. No plano da organização do trabalho e produção artística, adotam-se práticas orientadas pela horizontalidade, pela coletividade e pela recusa às hierarquias.
As decisões são tomadas em reuniões coletivas, nas quais diferentes visões individuais são acolhidas e a deliberação se dá por consenso. Estabelece-se a igualdade na remuneração, independentemente da função exercida, como forma de evitar relações de dominação, geralmente representadas na figura do diretor teatral. Todos os integrantes podem opinar sobre todas as esferas do trabalho, mesmo sem domínio técnico específico, o que contribui para uma relação não alienada com o processo como um todo. Além disso, a rotatividade de determinadas tarefas busca impedir a centralização e a cristalização de poder e autoridade em figuras específicas.
Diante da precariedade, os grupos desenvolvem diversas estratégias diversas para minimizá-la, entre elas a solidariedade no interior do grupo e entre núcleos. Os artistas não dispõem de seguridade social na relação de prestação de serviços ao poder público por meio de editais. Foram observadas situações em que um integrante precisou se afastar do projeto por motivos de saúde.
No entanto, afastá-lo formalmente para contratar outra pessoa implicaria em suspender sua remuneração, expondo-o a uma situação de vulnerabilidade. Diante disso, a solução encontrada pelo grupo foi manter o pagamento do seu cachê e redistribuir suas funções entre os demais integrantes. Embora essa decisão tenha acarretado uma sobrecarga para parte do coletivo, ela permitiu que o artista adoecido continuasse recebendo e utilizasse esse valor para custear seu tratamento médico.
Por fim, as relações de gestão do teatro de grupo com as políticas públicas de cultura se fazem em espaços abigarrados (GAGO, 2018), ou seja, em espaços atravessados por complexos e heterogêneos agenciamentos que ocupam a fronteira entre o alinhamento e a insubordinação ao neoliberalismo, sendo necessário nas análises, as análises considerem simultaneamente a tensão entre ambas as forças.
*João Rodrigo V. Martins é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e trabalhador da cultura na SP Escola de Teatro.
Referências
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
BROWN, Wendy. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.
BOURDIEU, Pierre. What makes a social class? On the theoretical and practical existence of groups. Berkeley Journal of Sociology, n. 32, p. 1-49, 1987.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2014
LOREY, Isabell. (2006). Gubernamentalidad y precarización de si. Sobre la normalización de los productores y productoras culturales. EIPCP (Instituto Europeo para Políticas Culturales Progresivas) [en línea]. Disponível em: www.eipcp.net/transversal/1106/lorey/es
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008 (1859).
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1990
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
MATE, Alexandre. Teatro de grupo na cidade de São Paulo e na grande São Paulo: criações coletivas, sentidos e manifestações em processo de lutas e de travessias / organização Alexandre Mate LONDERO, Elen; CABRAL, Ivam; AQUILES, Marcio; GAMA, Joaquim. São Paulo: Lucias, 2020
MAURO, Karina. Entre el mundo del arte y el mundo del trabajo. Herramientas conceptuales para compreender la dimensión laboral del trabajo artístico. In: Dossier telóndefondo/27, Revista de Teoría y Crítica Teatral, p. 114-143, 2018. Disponível em: http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/telondefondo/issue/view/418
NEGRI, A.; LAZZARATO, M. Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
Notas
[i] Teatro de grupo é um fenômeno nacional. O recorte desta pesquisa, no entanto, se situa no Estado de São Paulo, com mais ênfase na capital.
[ii] A cena teatral, de forma genérica, é composta por teatro independente, o teatro comercial, teatro de grupo, etc.
[iii] A LEI Nº 13.279, de 8 de janeiro de 2002 foi uma conquista da categoria organizada em torno do Movimento Arte Contra a Barbárie. Daqui em diante me refiro à lei apenas como Lei de Fomento.
[iv] Referimo-nos, especificamente, à Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Embora certas generalizações sejam possíveis, cada edital possui suas particularidades e exige um olhar atento às suas especificidades. A escolha dessa política como objeto de análise se justifica por sua relevância para o teatro de grupo, conforme exposto.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA