O trabalho na era digital

Imagem: Ciro Saurius
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Por ANDRE LUIZ DE SOUZA*

O trabalho por plataformas “on demand” e “crowdwork” – precarização e flexibilização

As mudanças ocorridas no século XX podem ser caracterizadas pela chegada do automóvel, o que modificou a estrutura da sociedade industrial e levou a novos paradoxos de desenvolvimento. O século XXI, por sua vez, caracteriza-se pela sociedade do celular, ou, melhor dizendo, do mundo digitalizado e informatizado, a partir de códigos que perpassam as percepções humanas. Nesse sentido, o mundo do trabalho, nesse século, também teve uma mudança radical nas características e nas concepções das novas formas de trabalhos que vigoram diante das demandas tecnológicas do século XXI. Mesclada entre tecnologia de ponta e reordenamento de novas formas de formas de trabalho, a sociedade capitalista vai criando e aumentando o pauperismo flexível das ditas sociedades pós-moderna.

A restruturação do mundo do trabalho adentra novas realidades para o trabalhador, sendo necessárias adaptações que assegurarem a sobrevivência diante das configurações e precarizações das relações trabalhistas. Essas novas práticas laborais estão forjando novos sujeitos adaptáveis e flexíveis para suprir as demandas do capital, sustentando, dessa forma, as vicissitudes das grandes corporações que exploram e subordinam suavemente a classe trabalhadora perante as novas facetas do mercado de trabalho. Diante disso, a era digital gerou os trabalhadores intermitentes, revestidos de escravos contemporâneos. Nas últimas décadas, ocorreu um aumento do setor de serviços. A justificativa disso se deve às políticas neoliberais de privatizações do setor, as quais geram lucros e passam a serem exploradas por grandes corporações capitalistas. Ademais, nesse processo, houve uma explosão do mundo informacional digital (ANTUNES,2018).

Segundo Abílio (2020), “no início de 2019, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 3,8 milhões de brasileiros tinham no trabalho por aplicativo sua principal fonte de renda. Já a pesquisa do Instituto de Lo-comotiva demonstrou que aproximadamente 17 milhões de pessoas obtêm regularmente algum rendimento por meio do trabalho por aplicativo no Brasil.” (ABÍLIO, 2020, p.111).

Esses dados refletem a nova realidade do trabalho mediante à informatização e às precarizações das relações do trabalho. Isso demostra uma nova estruturação do mudo do trabalho e também o aumento da exploração e da precarização da força do trabalho. A autora ressalta que, atualmente, vivencia-se uma nova forma de controle, de gerenciamento e de organização do trabalho, que está amplamente relacionada ao trabalho mediado por plataformas digitais, mas não se restringe a ele. Trata-se de uma tendência global, compreendida como uberização[i] (ABÍLIO, 2020).

As novas formas de controle do corpo de trabalhadores, diante das práticas nebulosas das flexibilizações, confundem o que é trabalho e não trabalho, além de sobrecarregar e aprofundar uma nova forma de gestão e de controle da força de trabalho. O desmantelamento das leis trabalhistas e as crises crescentes da sociedade neoliberal que priorizam os grandes lucros agravam ainda mais as relações precárias dos trabalhos informatizados/uberizados.

O controle e a necessidade do trabalhador desempregado de submeter-se ao modus operandi do sistema na era digital e o trabalho por plataformas forjam um novo trabalho, que se torna uma espécie de escravo moderno nos ditames do capital. Analisando as fragilidades de direitos trabalhistas e as garantias laborais, a era digital, vinculada às plataformas novas práticas de trabalho, leva o trabalhador a ser um servo do capital digital. Abílio (2020) reforça, a exemplo dos motofretistas, as transformações de um trabalho que passa a estar organizado e subsumido anovas formas, as quais alteram os modos de remuneração, a determinação do tempo de trabalho, as motivações subjetivas, a formação da identidade profissional, a saúde do trabalhador, entre outros elementos. Vive-se, nesse caso, em prol do ritmo do relógio, que dita as regras e as demandas, forçando um trabalho perigoso e sem seguranças trabalhistas.

Nessa correlação, conforme a análise de Antunes (2018), o privilégio dos trabalhadores é de serem servos e servas do trabalho, “se tiverem sorte”. Para o autor, na atual conjectura da sociedade de classes, a partir do momento que as pessoas não têm o privilégio de serem servos, configura-se uma tragédia social, ou seja, o flagelo do desemprego completo. Essa categoria do trabalho cria uma nova espécie de monopolização das atividades econômicas, reorganizando a centralização do controle sobre o trabalho e aumentando a submissão dos trabalhadores a esse modelo de plataformas denominadas de urberização.

O Estado tem um papel decisivo para regulamentações da uberização, pois, as suas reformas neoliberais garantem a expansão das corporações nos mercados internos, assegurando a eliminação de direitos conquistados a duras batalhas. Outrossim, pode-se aferir que as conveniências do Estado na flexibilização das leis trabalhistas fortalecem a exploração e a precarização da força de trabalho. Essa nova onda de restruturação das relações de trabalho fortalece o lucro das corporações internacionais, além de enfraquecer e inibir as garantias legais de direitos dos trabalhadores. Como pontua Abílio (2020), envolta na produção discursiva do empreendedorismo, a uberização remete também aos modos de subjetivação relacionados às formas contemporâneas de gestão do trabalho e ao neoliberalismo.

A uberização revela as práticas de subordinação do trabalho, de vigilância, de controle e de forte gerenciamento do trabalho. O desmantelamento da Reforma Trabalhista, de 2017, possibilitou e corroborou com a expansão dos meios legais e exploratórios para construir um novo sujeito que se adapte aos processos de submissão ao trabalho precarizado. Nesse sentido, o Estado é conveniente ao aparato desse modus operandi que se espalha em uma velocidade em todos os rincões do Brasil. Portanto, vive-se um processo em que, conforme a economia se desindustrializa e reduz postos formais de trabalhos, o apelo para “empreender”, “vencer por si mesmo”, “não depender de patrão” aumenta, forjando, com isso, novos trabalhadores desesperados na busca de seu sustento, os quais aceitam qualquer coisa para sobreviver. Abílio (2020) salienta que está em jogo a tendência de uma generalização em âmbito global, com características persistentemente invisibilizadas e fortemente associadas à marginalidade, ao trabalho informal e, mais genericamente, ao mundo do trabalho da periferia.

A sociedade do século XXI representa um cenário crítico e caótico no tocante às condições de trabalho no mundo globalizado. Demostrada uma realidade assustadora das condições de vida da classe trabalhadora, nos séculos passados, era perceptível a dura labuta do dia a dia. Atualmente, na modernidade, torna-se oculta e maquiada aos olhos da sociedade, mas a exploração e a subordinação continuam as mesmas diante da remodelagem do capital e das novas práticas das relações de trabalho. Como exemplo, têm-se os precarizados, os flexibilizados, os temporários, além do enorme exército de desempregados e desempregadas que se esparramam pelo mundo contemporâneo. Parafraseando Abílio (2020), a classe trabalhadora e o autogerencimento de uma sobrevivência em que muito pouco está garantido, de uma provisoriedade permanente, são elementos estruturantes de um modo de vida que precede as políticas neoliberais e a flexibilização do trabalho.

Portanto, a era digital tem sufocado os direitos dos trabalhadores, os quais foram conquistados a duras batalhas no decorrer da história. O processo de radicalização de novas relações de trabalho informatizado deveria ser de fato para melhorar as condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora, mas o que se vê é um profundo retrocesso, coma implementação das políticas neoliberais e a retirada de direitos desses sujeitos, colocando-os na linha de frente dos trabalhos mais árduas da sociedade. Essa realidade da sociedade dita “moderna” encontra-se permeada de contradições em suas diversas formas nas relações humanas. A ciência (tecnologia), que deveria ser um patrimônio da humanidade, está a serviço das grandes corporações que controlam e dominam as massas de trabalhadores.

Ademais, o século XXI tornou-se a era da representação e da mundialização do capital, desencadeando diversas crises sociais, econômicas, políticas e culturais. As relações flexíveis da nova sociedade tornaram-se o ponto crucial da subordinação da força de trabalho e da perda de direitos para se adaptar às novas práticas laborais. Essa flexibilidade das relações de trabalho aumenta a desregulação das relações trabalhistas e aumenta a carga de exploração da classe trabalhadora. O processo de informalidade torna-se a base das novas práticas denominadas de empreendedorismo na contemporaneidade, chamado por Harvey (2002) de “ecletismo nas práticas de trabalho”.

*Andre Luiz de Souza é doutorando em sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referências


ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

ABÍLIO, LudimilaCosthek. “Uberização: a era do trabalhador just-in-time?”. Estudos Avançados, v. 34, n . 98, p. 111-126, maio de 2020. Doi: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3498.008

HARVEY, David. A condição pós-moderna. [Trad. Adail Ubirajara Sobral; Maria Stela Gonçalves]. São Paulo: Loyola, 2002.

Nota


[i]A uberização do trabalho define uma tendência em curso, que pode ser generalizável pelas relações de trabalho e abarca diferentes setores da economia, tipos de ocupação, níveis de qualificação e rendimento, condições de trabalho, em âmbito global (ABÍLIO, 2020).

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