O último pub

Frame do filme The Old Oak
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por JOSÉ GERALDO COUTO*

Comentário sobre o filme de Ken Loach, em exibição nos cinemas

Aos 88 anos, o britânico Ken Loach, referência do cinema de engajamento político-social, continua fiel a seus valores humanistas num mundo cada vez mais desumano. Seu novo filme, O último pub, que entra em cartaz nesta quinta-feira, busca juntar os cacos dos sonhos despedaçados nas últimas décadas e encontrar motivos para manter a esperança. Ajuda também a iluminar o processo histórico que está por trás das recentes manifestações da extrema direita na Inglaterra.

O lugar em que se passa a história é significativo: uma cidadezinha do nordeste da Inglaterra que entrou em declínio depois do fechamento da mina de carvão local. Esse ambiente social depauperado, em que os desempregados de meia-idade enchem a cara de cerveja no bar, os adolescentes vadiam sem perspectiva pelas ruas e as mulheres fazem milagres para alimentar a família, é agitado pela chegada repentina de uma leva de refugiados sírios, instalados pelo serviço social em casas ociosas da cidade.

Racismo e xenofobia

Como seria de imaginar, todo o ressentimento dos moradores se volta contra os recém-chegados, sob a forma de racismo e xenofobia. “À procura de um culpado, nunca olhamos para cima, sempre para baixo, para pisar em quem está mais ferrado do que nós”, resume TJ Ballantyne (Dave Turner), dono do pub The Old Oak (O velho carvalho), onde os homens da comunidade se reúnem para beber e hostilizar os forasteiros.

TJ é uma espécie de último bastião da consciência proletária e dos valores de solidariedade internacional embutidos nela. Não por acaso, é nele que encontra apoio a jovem síria Yara (Ebla Mari), que funciona como líder informal e intérprete dos recém-chegados, por ser a única entre eles que fala inglês fluente. A aproximação entre os dois permite a Ken Loach operar uma “passagem de bastão” entre a luta operária do século XX e o drama da imigração do século XXI.

O filme cresce, a meu ver, quando essa conexão (de personagens e de temas) se expressa mais visualmente do que no discurso verbal, que às vezes resvala no didatismo doutrinário.

A primeira sequência, ainda antes dos créditos, é admirável: uma sucessão de fotos em preto e branco documenta a chegada dos refugiados e a hostilidade de um bando de bêbados locais, manifestada nos diálogos em voice over. A fotografia, aliás, é um vínculo fundamental entre os dois mundos: as fotos de greves e manifestações operárias feitas pelo pai de TJ, um mineiro combativo, dialogam com os instantâneos dos refugiados captados por Yara.

Tributário de um realismo social de corte clássico, quase documental, que aposta em gente com cara de gente (o protagonista é um ex-bombeiro e socorrista), Ken Loach se permite poucos rasgos de invenção audiovisual. Ainda assim, consegue criar cenas de grande força poética, como a da visita de TJ e Yara à catedral de Durham, construída pelos normandos há quase mil anos. “Meu pai dizia que a catedral não era da Igreja Católica, mas dos trabalhadores que a ergueram”, comenta TJ. Yara, por sua vez, reflete amargamente sobre a destruição de antigas construções romanas em Palmira, na Síria, pelo Estado Islâmico.

Paradoxo da esperança

O último pub é, de certo modo, um ensaio sobre a persistência da esperança num mundo em que tudo parece jogar contra. Mas a própria esperança encerra em si uma ambiguidade. “A esperança dói, a esperança pesa”, diz Yara, repetindo o sentimento expresso por Manuel Bandeira no “Rondó do capitão” (“Peso mais pesado/ não existe não”). No entanto, conclui a moça, ela é necessária para prosseguir vivendo.

O filme de Ken Loach é atravessado por essa contradição, por essa angústia. Talvez por isso seu tom seja melancólico, quase elegíaco, sem a chama revolucionária de um Terra e liberdade (1995) nem o humor de um À procura de Eric (2009) ou de um A parte dos anjos (2012). Dos sonhos de revolucionar o mundo a divisa que restou é a da solidariedade entre os humilhados da terra. Uma política de redução de danos, ou pouco mais que isso. À beira dos 90 anos o velho combatente está cansado de guerra – mas não parece disposto a entregar os pontos.

*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).

Publicado originalmente no Blog do cinema [https://ims.com.br/blog-do-cinema/o-ultimo-pub-por-jose-geraldo-couto/] do Instituto Moreira Salles.

Referência


O último pub (The Old Oak)
Reino Unido, 2023, 113 minutos.
Direção: Ken Loach.
Roteiro: Paul Laverty.
Direção de Fotografia: Robbie Ryan
Elenco: Dave Turner, Ebla Mari


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES