Onda nova

Filme "Onda Nova" de 1983/ Divulgação
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Por GUILHERME COLOMBARA ROSSATTO*

Comentário sobre o filme dirigido por José Antonio Garcia & Ícaro Martins, em exibição nos cinemas

1.

No dia 27 de março, a Vitrine Filmes relançou Onda nova (1983) nos cinemas brasileiros, remasterizado em 4K.[1] Dirigido pela dupla José Antonio Garcia e Ícaro Martins, o filme continua em cartaz em cinemas selecionados em todo Brasil. Nesse breve artigo, recomendo aos espectadores que o conheçam.

Ele precisa ser redescoberto pelo público, porque é necessário nesse momento que vivemos, assim como foi em sua época. Em 1983, a censura tentou apagar sua importância estética e ideológica, mas o sucesso do relançamento entre os jovens, somente destaca a atemporalidade de uma obra de arte verdadeiramente libertária.

Ano passado, a nova cópia do filme foi exibida durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, entre os dias 17/10 e 30/10. Eu tive a oportunidade de assistir ao filme nessa primeira exibição, mas fui obrigado a retornar aos cinemas com o relançamento oficial, já que esta primeira sessão ofuscou todos os lançamentos de 2024. Trata-se de uma obra fundamental para a compreensão do Brasil dos anos 1980, ao final de uma longa ditadura militar (1964-1985). O regime sofria com a falta de apoio popular e político, caminhando para seus anos finais, iniciado o processo de abertura. Ainda assim, na época, o filme foi censurado.

Ele teve uma vida breve: foi exibido pela primeira vez na 7º Mostra de Cinema de São Paulo, mas acabou sendo recolhido pelos militares logo após a estreia. Segundo os censores, a obra era “(…) uma apologia à bissexualidade, ao amor livre e ao comportamento sexual irresponsável”.[2]

Onda nova é um produto histórico e cultural da década de 1980, com destaque para o movimento feminista e os cineastas paulistas da Boca do Lixo, ao romper com a forma fílmica tradicional. O cinema deveria representar a verdade. Corpos de verdade, discussões relevantes e sexualidade autêntica. Os jovens deveriam encontrar a diversidade nas telas, diferentemente das fórmulas comerciais dos filmes de grande orçamento.

Hoje, o alcance dessa diversidade ainda pode ser sentido nas exibições de Onda nova. Nesse sentido, mas com temor de beirar o anacronismo, esse historiador afirma que o filme diz muito sobre o Brasil de 2025 e seu relançamento nas salas de cinema pelo país é deveras importante. Em momento de crise econômica e ascensão do conservadorismo, precisamos de um filme libertário como este.

Nossos tempos demandam, afinal, a liberdade costuma resistir em momentos de recuo das ideias e manifestações revolucionárias. Como o cineasta Arnaldo Jabor afirmou: “A crise é boa. Nada melhor que uma crise para nos dar a sensação de que a vida muda…A crise nos inclui na política. Aliás, crise no Brasil é quando a política fica visível para a população”.[3]

2.

Mas afinal, do que trata Onda nova? O filme é uma comédia erótica sobre jogadoras de futebol e suas paixões. Elas jogam pelo time Gayvotas Futebol Clube, apoiado pelo movimento que ficou conhecido como Democracia Corinthiana (1982-1984).[4] O futebol feminino esteve proibido por mais de 40 anos no Brasil, após uma decisão do governo de Getúlio Vargas. Seguindo essa lógica, as mulheres deveriam se ocupar com atividades femininas, não com jogos esportivos voltados aos homens. A proibição foi encerrada em 1983, ano de lançamento de Onda Nova, que celebra tal conquista.[5]

Como dito, o futebol é um plano de fundo para os dilemas emocionais e sexuais das jogadoras. Elas falam abertamente sobre tudo, enfrentam o machismo de seus namorados, as críticas de seus parentes e exploram experiências, amores e relações homossexuais. Em nenhum momento da trama, estão preocupadas com o que os outros pensam acerca do esporte, concentradas em celebrar suas conquistas.

O futebol, tal qual a sexualidade, deve ser vibrante e libertador, sem quaisquer censuras morais ou governamentais. A felicidade é ponto central da trama, transmitida a partir de cenas cômicas e elementos surreais, até mesmo quando elas lidam com assuntos sérios, como direito ao aborto ou uso de drogas.

Essas conversas acontecem naturalmente, em um ambiente confortável para todas as jogadoras do Gayvotas. Lili (Cristina Mutarelli), por exemplo, deixa a casa dos pais após revelar o gosto pelo futebol. A sua mãe (interpretada por um ator) não entende os comportamentos da filha e o pai cala-se diante das brigas. Ao sair de casa, ela recebe o apoio de Rita (Carla Camurati), que a ajuda a carregar as malas e enfrentar os pais.

A situação até poderia ceder aos clichês dos filmes sobre mães e filhas, desembocando no melodrama. Pelo contrário: as duas brigam por diversos momentos da trama, se insultando com palavrões e até mesmo ameaçando um conflito físico. O traço cômico é muito forte em tais momentos, não lidando com a situação de modo dramático. As cenas no ambiente familiar funcionam como uma paródia à essa instituição tão importante para o Brasil do passado e presente. Ela é desconstruída pelo filme, pois as mulheres buscam apoio entre elas, morando juntas em um apartamento. O espaço é usado para sexo, brincadeiras e discussões. Elas não precisam da família para encontrar a felicidade. Aqui, a discussão é outra: o país precisa se libertar dessas amarras institucionais, para então, também encontrar a liberdade social.

Em outra cena, um casal lésbico troca carícias no banco traseiro de um táxi. O momento é reforçado pela ternura do casal, apontando para a libertação que o amor proporciona. Elas riem da situação, pois uma delas afirma que irá apresentar a outra para sua mãe. No geral, as cenas sexuais do filme destacam esse elemento disruptivo em relação ao conservadorismo da sociedade brasileira, autoritária por conta de seu passado colonial e as divisões de classe, escondidas “por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação una e indivisa”.[6]

A nação imaginada por Onda nova não é singular, mas plural por natureza, como no início do filme, em que alguns jogadores do Corinthians participam de uma brincadeira com as jogadoras do Gayvotas. Durante uma partida de futebol, os homens se vestem de mulheres e as mulheres usam roupas masculinas. A ironia está colocada desde o início, questionando os papéis de gênero e a sua importância para o esporte.

O jogador Wladimir Rodrigues, ídolo do Corinthians, veste roupas femininas e recebe ajuda das meninas para se maquiar. Enquanto conversam, ele continua ironizando a situação, afirmando sempre ter gostado de futebol, “com comportamentos masculinizantes desde a infância”. Os padrões de gênero são motivo de chacota para o discurso fílmico, representando o que a sociedade brasileira poderia alcançar sem eles.

3.

Além disso, o filme se utiliza de cenários coloridos e uma iluminação marcante para transmitir seu discurso político, que se encontra na montagem e outros aspectos técnicos. Não é somente uma questão discursiva, pois Onda nova constrói uma estética própria para lidar com sexualidade e outros dilemas da juventude brasileira. O filme faz parte da chamada trilogia do desejo, idealizada pela dupla de diretores nos anos 1980.

Com isso, trata das pulsões sexuais no interior da forma fílmica, por cenas autorais e diferentes do cinema mainstream daquele período. Até mesmo outras obras consideradas subversivas pela ditadura naquele momento, não lidavam da mesma forma com essas questões estéticas. O filme é um manifesto à favor da liberdade, como tanto mencionamos, seja ela moral ou política.

Um exemplo disto são os números musicais presentes no filme, como a cena em um clube noturno, logo no início da trama. A personagem Helena, interpretada por Tânia Alves, canta a música Vale Tudo, de Tim Maia e Sandra de Sá, famosa pela frase “Só não vale dançar homem com homem nem mulher com mulher, o resto vale”. No filme, porém, Helena modifica a letra e instaura uma nova palavra de ordem, “agora vale tudo”. Em seguida, as personagens femininas começam a se beijar em tela, reafirmando os valores progressistas do filme. Esta é sua preocupação: reinventar aspectos da cultura brasileira por estética própria, particular aos desejos da juventude paulista dos anos 1980.

Para o filme, a sociedade brasileira ainda estava muito atrasada em 1980 e pelo visto, continua assim nos dias de hoje. É preciso resgatar produções como esta, símbolos da resistência ao comodismo. O relançamento em 2025 contribuiu muito para isto, pois a publicidade do filme nas redes sociais, com destaque para o Instagram, focou em atrair o espectador pelas cenas eróticas e diálogos surreais.

É como se a produtora enxergasse um mercado nesse tipo de filme, justificado pela falta de sexualidade no cinema moderno. “Em um país ainda tão conservador que, infelizmente, vive a flertar com o autoritarismo, um cinema provocador e à frente do seu tempo sempre deve ser prestigiado”.[7]

No Brasil e no mundo contemporâneo, as questões sexuais continuam um tabu, com dificuldade de adentrar a chamada cultura popular. Os filmes são muito polidos e Onda nova segue na direção contrária.[8] A produção não é uma pornochanchada, pois está muito mais próxima de uma paródia de costumes com temas eróticos, ainda assim, trata-se de um retrato cômico sobre o Brasil dos anos 1980, que como reforçamos, diz muito sobre o presente.

O filme merece o olhar de uma nova audiência, uma onda nova de espectadores que adicionam camadas ao significado político da obra. Uma geração que viveu as auguras do bolsonarismo e as consequências desse conservadorismo, precisa vivenciar outros caminhos artísticos, que indiquem a pluralidade do Brasil.

*Guilherme Colombara Rossatto é mestrando em história social na Universidade de São Paulo (USP).

Referência


Onda nova
Brasil, 1983, 103 minutos.
Direção e roteiro: José Antonio Garcia & Ícaro Martins.
Montagem: Eder Mazini.
Elenco: Carla Camurati, Cristina Mutarelli, Cida Moreira, Cristina Bolzan, Ênio Gonçalves, Lucia Braga, Neide Santos, Patrício Bisso, Petrônio Botelho, Pietro Ricci, Pita, Regina Carvalho, Vera Zimmermann, Regina Casé, Tânia Alves, Caetano Veloso, Casagrande, Osmar Santos, Wladimir.

Notas


[1] O processo de restauro foi conduzido por Julia Duarte, Aclara Produções Artísticas e a família de José Antonio Garcia, com a colaboração da Cinemateca Brasileira/SAC – Sociedade de Amigos da Cinemateca, Zumbi Post e JLS Facilidades Sonoras.

[2] OLIVEIRA, Natalia. Filme censurado na ditadura é lançado após 40 anos. Conheça Onda Nova. Metrópoles, Brasília, 29 de março de 2025. Disponível em: <https://www.metropoles.com/entretenimento/cinema/filme-censurado-onda-nova>.

[3] JABOR, Arnaldo. Pornopolítica: paixões e taras na vida brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 59.

[4] Para mais detalhes sobre o movimento: SÓCRATES; GOZZI, Ricardo. Democracia Corintiana: a Utopia em Jogo. São Paulo: Boitempo, 2002.

[5] LOPES, Larissa. Mulheres passaram 40 anos proibidas por lei de jogar futebol no Brasil. Jornal da USP, São Paulo, 13 de junho de 2019.

Disponível em: <https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/mulheres-passaram-40-anos-sem-poder-jogar-futebol-no brasil/#:~:text=Após%20quatro%20décadas%2C%20a%20regulamentação,e%20a%20relevância%20econômica%20internacional>.

[6] CHAUÍ, Marilena de Souza. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 94.

[7] CUNHA, Alexandre. “Onda Nova”, censurado na ditadura, é um chute no Brasil conservador e machista. Revista O Grito!, Recife, 2 de abril de 2025. Disponível em: <https://revistaogrito.com/onda-nova-censurado-na-ditadura-e-um-chute-no-brasil-conservador-e-machista/>.

[8] BENEDICT, Raquel S. Everyone Is Beautiful and No One Is Horny. Blood Knife, Filadélfia, 14 de fevereiro de 2021. Disponível em: <https://bloodknife.com/everyone-beautiful-no-one-horny/>.


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