Por ALMERINDO JANELA AFONSO*
As relações entre professores, induzidas por ideais da Revolução dos Cravos, mudaram: reivindicações justas e lutas sindicais convivem com competições solipsistas, obsessões pela carreira e estratégias de sobrevivência profissional
1.
25 de abril, sempre! É a palavra de ordem de quem continua a acreditar nas principais promessas da nossa revolução democrática: democratizar, descolonizar e desenvolver.
O D de Democracia remete-nos para as promessas e conquistas que, entre nós, num período relativamente curto, se traduziram em direitos fundamentais, que não tínhamos. Trata-se de direitos que, noutros momentos históricos e noutras sociedades, foram sendo conquistados em etapas diferenciadas que se sucederam num tempo relativamente longo e que correspondem a sucessivas gerações de direitos.
Mas uma das especificidades da nossa revolução democrática reside precisamente no facto de termos conquistado e consagrado, quase em simultâneo, direitos de diferente natureza (direitos cívicos, políticos, sociais, económicos, culturais, etc.) não sendo, por isso, adequado, no nosso caso, falar de gerações de direitos.
E se considerarmos os direitos consagrados, sabemos que muitas promessas de abril foram cumpridas, ainda que muitas outras estejam por cumprir ou precisem de ser cumpridas de forma mais consistente e sustentada.
A questão dos direitos insere-se, aliás, no campo mais amplo da democracia e das tarefas do seu aprofundamento, isto é, a democratização da democracia.
Ora, é precisamente a democracia que está a atravessar desafios importantes e a ser confrontada com acontecimentos inéditos. Um dos acontecimentos mais preocupantes é a chamada “desdemocratização” quando, entre outras causas, assistimos a um crescimento inesperado da extrema direita, com tudo o que isso significa: xenofobia, racismo, discriminações várias, vozes de setores mais conservadores da sociedade civil a apoiarem (de forma mais ou menos dissimulada) a reversão de direitos sociais e liberdades fundamentais, nomeadamente a liberdade de expressar convicções culturais e identitárias.
Mas as questões são mais amplas, complexas e globais, como as que decorrem das guerras atuais em vários países e geografias (da Ucrânia à Palestina, passando pelo Sudão e outros países de África, bem como por diferentes regiões do mundo que os media tendem a esquecer). São estas guerras que contribuem para exacerbar ainda mais os problemas já existentes que dizem respeito aos movimentos de refugiados, à emigração e à catástrofe climática.
Também por isso, as questões da crise (ou das crises) da democracia e da participação são hoje, mais do que nunca, centrais para o nosso futuro comum, embora andem muitas vezes associadas à despolitização – daí falar-se também de pós-democracia (Crouch, 2020), ou contrademocracia (Rosanvallon, 2022), ou, como já atrás referi, de desdemocratização (Brown, 2006).
2.
A pós-política é uma outra forma de enquadrar e nomear esse debate porque se trata de uma política sem objeto, como refere Bruno Latour (2020), ou de uma “democracia sem política”, na expressão do filósofo espanhol (da moda) Daniel Innerarity (2016).
Um dos sintomas da pós-política revela-se, por exemplo, na gestão tecnocrática das questões ambientais. São frequentemente formas de gestão despolitizadas que contribuem para consolidar uma condição pós-política e pós-democrática. São a antítese da democracia, porque os processos pós-políticos ou privilegiam explicações e soluções técnicas, ou tendem a remeter a resolução e a mitigação da crise ambiental para comportamentos meramente individuais, ainda que eticamente desejáveis, mas esvaziando as ações coletivas e comunitárias (Afonso, 2024).
A pós-política é assim a regressão da democracia quando assenta exclusivamente na governação de especialistas e é impermeável à participação dos cidadãos na tomada de decisões. O que tem sido designado por alvorecer da barbárie climática e emergência das ideologias tóxicas só pode ser contrariado com uma mudança radical nos valores e visões do mundo subjacentes à política (politics) e, consequentemente, às políticas governamentais concretas (policies).
Sabemos que se insiste, e bem, numa visão que englobe simultaneamente diferentes problemas (alguns dos quais estruturais) que subsistem nas sociedades atuais, e que estão relacionados, direta ou indiretamente, com a crise climática. Como denuncia a conhecida e prestigiada jornalista Naomi Klein (2017), dizer não, não basta! Para enfrentar a “barbárie climática total” existem opções, mas não faz sentido fingir que são fáceis – “vai ser necessária uma guerra total contra a poluição, a pobreza, o racismo, o colonialismo e o desespero, tudo ao mesmo tempo” (Klein, 2019, p. 44-45).
Isto é, trata-se de uma luta contra diferentes formas de opressão e dominação. Daí que devamos dar maior importância ao conhecimento e ao pensamento crítico sobre o está acontecendo no mundo, de modo a retomarmos a educação no caminho da emancipação.
E se passados 50 anos, o D de Democracia está mais frágil, ou pelo menos mais ameaçado, o D de Desenvolvimento também já não pode nem deve seguir o caminho único que, de forma restrita, a velha ideologia da modernização parecia pressupor, e que era o caminho da aproximação dos países periféricos e semiperiféricos, como Portugal, aos padrões de desenvolvimento dos países capitalistas centrais do sistema mundial. Continuar os atuais padrões de desenvolvimento e de crescimento, nomeadamente em termos de consumo, tornará o mundo completamente inviável. Mas não existe um único caminho. Dado que há modernidades múltiplas e diferentes interpretações do que é a modernidade, também existem diferentes interpretações do que é (e do que deve ser) desenvolvimento.
Não é por acaso que, no âmbito deste debate, tem surgido a questão do decrescimento, a exigir uma transformação socioecológica profundamente radical. É também por esta razão que o D de Desenvolvimento, sobretudo quando visa ou significa, essencialmente, crescimento económico numa lógica neoliberal (à custa de todas as outras questões que são fundamentais para uma sociedade mais justa), pouco tem a ver com um dos ideais mais amplos da revolução democrática de abril de 1974. Neste sentido, o desenvolvimento precisa de ser repensado, já não apenas no contexto nacional, mas também, cada vez mais, no contexto europeu e global.
Falta o D de Descolonização. As antigas colónias africanas conseguiram a independência ao fim de uma longa luta, nomeadamente por ação armada de movimentos de libertação contra o regime ditatorial que mantinha Portugal amordaçado. Tratava-se de um regime que também constituía uma ameaça aos jovens portugueses, muitos deles incorporados compulsoriamente no serviço militar por pertencerem a movimentos estudantis que contestavam a guerra e a ditadura. Os movimentos estudantis deram assim um contributo importante para a revolução democrática (entre outros, Ferreira, 2012; Rosas, 2023; Teodoro, 2023).
No entanto, se é verdade que o colonialismo acabou na sequência da revolução democrática, a colonialidade persiste na sociedade portuguesa. A colonialidade (nas variantes e imbricações do poder e do saber) é a expressão usada pelos autores pós-coloniais/de(s)coloniais para designar a reatualização dos pressupostos de dominação e subalternização próprios da ideologia e da prática da colonização. A este propósito, por exemplo, nada melhor do que perceber de forma crítica o que acontece quando são feridos direitos humanos fundamentais pela inadequada concretização de políticas de acolhimento, legalização e de integração social de emigrantes e refugiados.
3.
Neste contexto de adversidade, importa salientar que a Educação e os seus profissionais não podem deixar de contribuir para construir mudanças profundas e urgentes. É também em relação a estas questões que a escola pública está hoje numa nova, enorme e dilemática encruzilhada. “Educação ou barbárie” é quase um grito, simultaneamente de revolta e de esperança, com o qual Bernard Charlot (um dos sociólogos da educação francófonos mais conhecidos no Brasil) intitulou um dos seus últimos livros (Charlot, 2020).
Historicamente, a escola pública foi disputada e pressionada para levar a cabo diversos mandatos (ora complementares, ora contraditórios): promover a cidadania restrita às lógicas do Estado-nação, a socialização, a coesão social, as exigências da economia, a legitimação das desigualdades e a reprodução social e cultural, mas também a racionalidade científica e a educação para a emancipação.
Nos últimos anos, ao contrário do que prometiam as utopias do processo revolucionário, a ideia de emancipação tem vindo a ser esquecida ou ressemantizada. Em certos contextos, o significado de emancipação, enquanto projeto coletivo, parece agora mais próximo da noção de “hipervalorização de projetos individuais” (Afonso, 2001) – projetos apoiados e maximizados por estratégias de crescente mercadorização e de privatização da educação, com a consequente desvalorização da escola pública.
Não é, aliás, por acaso que as estratégias classistas neomeritocráticas continuam a levar a melhor no ensino privado. Estas estratégias articulam a velha meritocracia com a parentocracia, isto é, a capacidade e o esforço individual de cada um com a intervenção dos pais na definição dos trajetos e opções estudantis. A investigação sociológica sobre as estratégias educacionais das classes médias e médias-altas passa atualmente por perceber esta neomeritocracia, que, entre outras coisas, incentiva cada vez mais a internacionalização dos estudos.
Não é, portanto, por acaso que os percursos de (suposta e desejada) excelência escolar são percursos que também têm maior probabilidade de acontecer numa articulação virtuosa entre os quesitos da velha meritocracia e os recursos da parentocracia, ou seja, da neomeritocracia (Afonso, 2017).
Nada contra o direito legítimo de escolha dos projetos educativos, entre o público estatal, o social solidário (menos falado) e o privado. Mas como defensor de uma educação pública universal de qualidade científica, pedagógica e democrática, para todas e todos, não posso deixar de registar os insuficientes investimentos e os crescentes cerceamentos que em Portugal (e em muitos outros países) sofrem as políticas sociais, nomeadamente na saúde e na educação. E, neste caso, com todas as consequências para a educação pública e para o reconhecimento e dignificação dos professores como trabalhadores intelectuais e profissionais – consequências essas que têm representado um défice material, mas também um défice simbólico, impedindo, em grande medida, uma nova remobilização e motivação docente.
São necessárias alternativas viáveis e outras oportunidades de realização e progressão profissional – condições para uma escola mais igualitária, de maior justiça social e epistémica, para as alunas e alunos de todas as classes e grupos sociais. Vale a pena, por isso mesmo, revisitar brevemente a Revolução de Abril (afinal é esse cinquentenário que estamos a comemorar) e fazer mais duas ou três notas breves sobre os caminhos entretanto percorridos pela profissão docente.
Durante as longas décadas de ditadura fascista, o regime esperava das professoras e professores dos ensinos básico e secundário (fundamental e médio) que tivessem vocação e espírito de missão, e que agissem como zelosos e subalternos funcionários de um sistema educativo centralizado, burocrático e fortemente hierarquizado, essencialmente organizado para dar conta de um mínimo de escolaridade (nem sempre para todos), que garantisse a indução diferencial (classista) de eventuais percursos posteriores (escolas técnicas industriais e comerciais versus liceus), e que selecionasse os poucos de que necessitava para, ao nível superior, sustentar a ideologia dominante, o statu quo e os projetos do Estado Novo.
No período revolucionário, pós-25 de abril de 1974, em liberdade, as professoras e os professores desenvencilharam-se das amarras do regime que colapsava, assumindo-se muitos como militantes pedagógicos e intelectuais transformadores, sendo certo que qualquer caracterização do turbilhão de sentimentos e desejos que emergiam nessa altura será sempre avessa a generalizações, muito embora as vivências e experiências estivessem profundamente imersas no espírito progressista do tempo. Lamentavelmente, na educação, as energias utópicas da Revolução esmoreceram mais cedo do que esperávamos.
Gradualmente, os professores acabaram por aderir aos discursos e promessas do profissionalismo docente (com tudo o que isso poderia significar como conquista coletiva), mas estão hoje confrontados com a desprofissionalização, ou, talvez mesmo, com um neoprofissionalismo.
Nos antípodas de abril, a desprofissionalização, que se traduz (também) na desvalorização social e política do trabalho docente, torna hoje ainda mais insuportável e alienante o efeito dos mil constrangimentos presentes no quotidiano: da impossibilidade dos usos criativos dos espaços e tempos, à solidão da sala de aula; do esbatimento da colegialidade, à natureza cada vez mais tática das interações; dos desequilíbrios provocados por injustiças várias na feitura de horários e na atribuição de cargos e tarefas, ao não reconhecimento dos investimentos na formação; dos efeitos mais nefastos da periferização das questões éticas, à permeabilidade acrítica a formas várias de desdemocratização; do assédio moral e atitudes de cancelamento, à manipulação gestionária e à vigilância autocrática.
Claro que também há resistências em contracorrente, alternativas construtivas, projetos inovadores (alguns em parceria com universidades e outras entidades de natureza diversa) e também há importantes compromissos educativos que continuam a acontecer nas escolas e que dignificam o trabalho docente. Mas o contexto atual é igualmente favorável à emergência do neoprofissionalismo – um conjunto de práticas que se fundem na assimilação acrítica do didatismo psicologista; na adesão incondicional à tecnicização digital do ensino e à sedução da inteligência artificial; na interiorização da lógica dos resultados mensuráveis para o marketing dos rankings nacionais e internacionais; na transformação do professor em eficaz tutor, mediador ou (mesmo) personal trainer.
Um neoprofissionalismo que convive com condições cada vez mais difíceis de trabalho em muitas escolas, nomeadamente com a acentuação da subordinação hierárquica (quando não autoritária) dos professores, com a simplificação da formação inicial e consequente desvalorização das ciências da educação mais críticas (ao contrário da exigência de uma formação complexa que é devida a trabalhadores intelectuais), entre muitos outros problemas.
As relações entre professores, induzidas por ideais da Revolução dos Cravos, foram mudando ao longo do tempo, e hoje redefinem-se de forma sincrética e muitas vezes paradoxal. Reivindicações conjunturais justas e lutas sindicais mobilizadoras, convivem com competições solipsistas, obsessões pela carreira e estratégias (nem sempre leais) de sobrevivência profissional.
A erosão das solidariedades no contexto de trabalho e a desvalorização de espaços e tempos de colegialidade dialógica coexistem com a desilusão de promessas políticas adiadas e com a exaustão motivada por horários sobrecarregados e tarefas burocráticas. Tudo isso, não raras vezes, com a vigilância panótica e autocrática de alguns (sublinhe-se, alguns) gestores escolares, pouco ou nada democráticos, agindo nos antípodas das promessas mais emancipatórias da Revolução dos Cravos – razão maior para reimaginarmos (criticamente) as experiências colegiais e autogestionárias.
Precisamos, aliás, urgentemente (no tempo que resta) conhecer mais biografias e testemunhos vivos, para que não sobre apenas a possibilidade da pós-memória (isto é, a história contada em segunda ou terceira mão pelos seus herdeiros). É importante homenagear todos os que ousaram ser livres e foram capazes de contribuir criativamente para as mudanças então em curso, sobretudo quando se assumiram como militantes pedagógicos ou intelectuais transformadores, encontrando novos sentidos para a realização das decisões coletivas, e assumindo os novos e inéditos desafios do trabalho pedagógico.
E se é verdade que a opressão se alimenta em grande parte da ignorância e da alienação, há também muitas razões que continuam a confirmar que o conhecimento no contexto de uma educação crítica contribui para nos manter no caminho da emancipação.
Concordo por isso com Patrícia Collins que numa entrevista recente sublinha: “Eu vejo uma distinção entre educação emancipatória e educação crítica. A educação emancipatória tem um compromisso com uma visão mais ampla da mudança social porque é informada por princípios éticos como liberdade, justiça social ou democracia participativa. A educação crítica, por sua vez, responde à realidade tal como a realidade se apresenta num dado momento — critica as desigualdades sociais, aponta os problemas sociais, propõe soluções e prepara as pessoas para serem solucionadoras de problemas. Porque visa mudar as realidades atuais, a educação crítica ajuda as pessoas a lidar com os problemas sociais com os quais elas se confrontam. A educação emancipatória imagina o que é possível além do aqui e agora, e a educação crítica fomenta as habilidades de pensamento crítico que nos levam até lá” (Corrochano et al. 2024).
Então, vale a pena sublinhar de novo: se queremos que a ignorância deixe de reforçar a opressão, e se pretendemos manter-nos e contribuir para que mais pessoas e educandos se mantenham no caminho da emancipação, não abandonemos nunca a educação crítica! Esta será sempre uma utopia realizável de abril!
*Almerindo Janela Afonso é professor do Instituto de Educação da Universidade do Minho.
Referências
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Afonso, A. J. (2024). Insustentabilidades: desigualdades, ecocídios e pós-política. In R. Barros, A. S. Henrique e D. H. Moura (Orgs.). Educação ao longo da vida e sustentabilidade(s). E-Book, Editora IFRN (em publicação).
Brown, W. (2006). American nightmare: neoliberalism, neoconservatism, and de-democratization. Political Theory, 34 (6), 690-714.
Charlot, B. (2020). Educação ou Barbárie? Uma escolha para a sociedade contemporânea. Cortez editora.
Corrochano, M. C.; Gomes, N. L.; Vianna, C. Valentim, S. S. & Marques, E. P. S. (2024). Entrevista com Patrícia Hill Collins. Revista Brasileira de Educação, 29, e290038. https://doi.org/10.1590/S1413-24782024290039.
Crouch, C. (2020). Post-democracy after the crises. Polity Press.
Ferreira, J. M. (2012). O movimento estudantil como motor da democratização da universidade e da liberdade em Portugal. Ler História, 62, 173-178.
Innerarity, D. (2016). A política em tempos de indignação. Dom Quixote.
Klein, N. (2017). Dizer não, não basta. Resistir às novas políticas de choque e alcançar o mundo de que necessitamos. Relógio D’Água.
Klein, N. (2019). On fire. Simon & Schuster.
Latour, B. (2020). Onde aterrar? Bazar do Tempo.
Rosa, F. (2023). Ensaios de Abril. Tinta-da-China
Rosanvallon, P. (2022). A contrademocracia. Ateliê de Humanidades Editorial.
Teodoro, A. (2023). Repressão estudantil e ação psicológica no final do Estado Novo. Edições Universitárias Lusófonas.
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