Os desafios da segurança pública

Imagem: Soner Arkan
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Por RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO*

Benedito Mariano trata de uma questão central para o país no seu livro “Segurança Pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático”

1.

No dia 25 de abril, não por acaso no aniversário da Revolução dos Cravos, o Instituto Novos Paradigmas promoveu em Porto Alegre o lançamento do livro Segurança Pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático, de Benedito Mariano.

Benedito Mariano construiu uma trajetória rara, que combina militância democrática, experiência institucional e formulação crítica. Fundador do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), nos anos 1990 foi nomeado o primeiro ouvidor das polícias do Estado de São Paulo, no governo de Mário Covas, e desde então tem se dedicado a fortalecer os mecanismos de controle externo e promover uma visão cidadã da segurança pública.

Ao longo dos anos, atuou em diversas gestões municipais – São Paulo, Osasco, Diadema, São Bernardo do Campo – implementando políticas orientadas pela prevenção da violência, pelo policiamento comunitário, pela valorização das guardas municipais e, sobretudo, pela ideia de que segurança se faz com diálogo, legalidade e políticas sociais, mas também com políticas públicas de segurança.

O livro agora publicado sintetiza esse percurso. Mas vai além. Ele lança um olhar honesto e necessário sobre a incapacidade da esquerda em consolidar um programa para a segurança pública. Na visão de Benedito Mariano, apesar da esquerda ter produzido as melhores propostas para o setor, com base nos direitos humanos e na democracia, essas propostas raramente se traduziram em políticas efetivas quando essa mesma esquerda chegou ao poder. Essa contradição – entre discurso e prática – é o eixo em torno do qual o livro se estrutura.

A partir desse ponto, gostaria de compartilhar algumas reflexões, provocadas pela leitura da obra de Benedito Mariano e por acompanhar esse debate ao longo dos últimos 30 anos.

2.

A meu ver, as dificuldades da esquerda para consolidar uma agenda transformadora na área da segurança pública, que vá além dos chavões e da crítica à violência estatal, decorrem de dois fatores principais. O primeiro é a fragilidade da base teórica que fundamenta o pensamento da esquerda brasileira de maneira geral, e que tem consequências diretas sobre o tema segurança pública.

Daí decorre o fato de que o tema foi sempre tratado como periférico, ou como um epifenômeno social, o que resultou na ausência de um programa coerente sobre como transformar, de fato, as instituições policiais, o sistema penal e as formas de enfrentamento da criminalidade. A cada eleição, novas propostas são formuladas, mas não chegam a constituir uma base comum em torno da qual a militância política se articule, no Congresso e nos diferentes espaços sociais, por apresentar-se muitas vezes como um discurso de ocasião, sem enraizamento nas premissas teóricas que fundamentam uma perspectiva de esquerda que ainda não superou velhos chavões.

O segundo fator é o peso dos setores sindicais e corporativos na definição das prioridades políticas, o que muitas vezes dificultou o avanço de reformas institucionais mais necessárias e produziu frequentemente um alinhamento acrítico com a permanência de mecanismos institucionais que resistem à transparência, à responsabilização e à modernização das corporações policiais.

Em que pese tenha havido governos petistas que, em determinados contextos, alcançaram algum sucesso na gestão da segurança, fato é que não se construiu um acúmulo coletivo sólido para todo o campo da esquerda. O conhecimento e as propostas mais avançadas foram, muitas vezes, desenvolvidos no campo acadêmico, especificamente no campo da Sociologia da Violência, da Segurança Pública e da Administração da Justiça Penal, e não politicamente apropriados ou traduzidos em ação governamental consistente.

Um exemplo desse fenômeno foi a publicação, em 2018, do livro Agenda de segurança cidadã: por um novo paradigma, pela Comissão de Assuntos Estratégicos da Câmara dos Deputados, sob encomenda do deputado Paulo Teixeira. O livro, fruto do trabalho de um grupo de pesquisadores, consolidou uma compreensão ampla, contemporânea e avançada sobre o campo da segurança pública e da justiça penal, oferecendo propostas concretas para a transformação do setor.

Muitas dessas propostas foram encaminhadas à equipe de transição do terceiro governo Lula. No entanto, diante das urgências do setor e da não implementação do Ministério da Segurança Pública, acabaram sendo em grande medida deixadas de lado, mais uma vez adiando a construção de uma política de segurança pública consistente a partir do governo federal.

Ainda assim, seria injusto dizer que a esquerda não acumulou boas experiências no campo da segurança pública. Nas últimas duas décadas, houve iniciativas importantes que precisam ser reconhecidas e valorizadas. O Pronasci, implementado pelo então ministro da Justiça Tarso Genro durante o segundo governo Lula, foi uma tentativa corajosa e inovadora de articular repressão qualificada e políticas sociais de prevenção da violência, colocando a União no papel de indutora de políticas estaduais e municipais.

É preciso lembrar também da experiência pioneira do governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, com José Paulo Bisol à frente da Secretaria da Justiça e da Segurança. Bisol foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a formular, dentro de um governo estadual, uma concepção de segurança pública baseada na dignidade da pessoa humana, no respeito aos direitos fundamentais e no combate à seletividade penal.

Sua atuação deixou um legado que ainda inspira aqueles que acreditam que é possível conjugar autoridade e legitimidade policial. Entre outras coisas, foi na gestão de Bisol que primeiro se ousou propor uma política de controle da utilização da força pelas polícias, assim como foi implementado um amplo processo de formação qualificada e integrada das forças policiais. Além disso, foi conferida à Brigada Militar a possibilidade de lavratura do Termo Circunstanciado para os delitos de menor potencial ofensivo, iniciativa depois acompanhada por quase todos os estados brasileiros.

3.

Fora do eixo dos governos petistas, encontramos experiências bem-sucedidas de gestão democrática da segurança. Em Pernambuco, o Pacto pela vida, no governo de Eduardo Campos, mostrou que é possível combinar metas, inteligência policial, monitoramento rigoroso e ação social com resultados consistentes na redução dos homicídios. O Espírito Santo, sob o governo de Renato Casagrande, tem seguido uma linha semelhante, valorizando a coordenação federativa e a profissionalização das polícias, assim como a gestão por resultados.

E, mais recentemente, o governo Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, vem demonstrando que é possível enfrentar o crime organizado, a violência letal e a criminalidade urbana com eficiência, com iniciativas baseadas em evidências, mas dentro dos marcos da legalidade e do controle institucional. Todas estas experiências demonstram que é possível reduzir a violência e a criminalidade apostando na qualificação das polícias, na gestão integrada e no monitoramento permanente dos resultados, e sem recorrer ao populismo punitivo.

Entretanto, a esquerda, e especialmente o PT, ainda enfrenta dificuldades para reconhecer a importância dessas experiências, muitas vezes por razões eleitoreiras, mas também por uma resistência histórica a absorver elementos da tradição liberal na gestão pública – como a cultura da responsabilização, da transparência e da eficiência democrática nas instituições de segurança, a ideia de interdição de comportamentos por meio do direito penal e de responsabilização criminal dentro da lei e do devido processo, agregando a estas ferramentas institucionais as políticas de prevenção ao delito.

Superar essas resistências é hoje um desafio fundamental para a consolidação de uma agenda democrática na segurança pública, pois é esse um dos vetores do crescimento da extrema-direita e do populismo penal. Não se trata apenas de disputar narrativas, mas de construir um programa realista, factível e transformador, capaz de combinar repressão qualificada, prevenção social e reconstrução da confiança entre o Estado e a sociedade.

Não se trata, portanto, de mimetizar o punitivismo irracional dos candidatos a autocrata, mas de buscar, por meio de uma ampla coalizão, o enfrentamento ao medo e à insegurança.

Esse caminho não será trilhado por um partido isoladamente. Ele exige uma nova coalizão política, que inclua a esquerda, o centro democrático e os setores comprometidos com o Estado de Direito. Uma Frente Ampla Democrática pela Segurança, incorporando as experiências exitosas como uma plataforma de gestão, é a única via capaz de sustentar as reformas que o país precisa – e que a população demanda com urgência.

A proposta da PEC da Segurança Pública, construída pelo Ministro Ricardo Lewandowski, aponta nessa direção. Trata-se de uma iniciativa que visa consolidar a arquitetura institucional do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), fortalecendo a coordenação entre União, estados e municípios, e dando maior clareza às competências e responsabilidades de cada ente.

A PEC da Segurança Pública estabelece diretrizes nacionais, mas respeita o pacto federativo. E, ao propor a consolidação de um sistema nacional, abre espaço para políticas baseadas em evidências, com metas, controle externo e avaliação permanente. Seus méritos estão justamente na busca por institucionalidade, estabilidade e compromisso com os fundamentos do Estado democrático de direito.

Neste cenário, o livro de Benedito Mariano se apresenta como uma leitura essencial. Não apenas porque denuncia a omissão histórica da esquerda no tema, mas porque oferece um ponto de partida para superá-la. É uma obra que nos provoca, nos compromete e, mais importante, nos convoca a agir com coragem e responsabilidade.

Em sociedades complexas e atravessadas por fortes desigualdades, a consolidação democrática, se ainda for possível como horizonte a ser alcançado, passa pelo reconhecimento de que a interdição de comportamentos lesivos é uma função legítima da ordem jurídica, devendo ser realizada por meio da aplicação de sanções que garantam não apenas a contenção e a retribuição proporcionada ao delito, mas também a construção de condições para o enfrentamento das vulnerabilidades sociais que afetam a trajetória de grande parte dos apenados.

*Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, sociólogo, é professor titular da Escola de Direito da PUC-RS.

Referência


Benedito Mariano. Segurança pública: o calcanhar de aquiles da esquerda e do campo democrático. São Paulo, Editora Contracorrente, 2025, 312 págs. [https://amzn.to/3Eu9l0t]


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