Os desencontros da macroeconomia

Imagem: Alpz
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Por MANFRED BACK & LUIZ GONZAGA BELLUZZO*

Enquanto os ‘mídiamacro’ insistirem em sepultar a dinâmica financeira sob equações lineares e dicotomias obsoletas, a economia real seguirá refém de um fetichismo que ignora o crédito endógeno, a volatilidade dos fluxos especulativos e a própria história

O economista Simon Wren-Lewis usou o termo “midiamacro” para descrever a narrativa dominante na mídia, empenhada em disseminar uma certa visão da economia.

Essa visão abriga a síndrome de um conjunto de sinais e sintomas médicos frequentemente associados a uma condição ou doença específica que pode ter múltiplas causas ou a causa pode ser desconhecida.

No caso dos economistas mainstream, os sintomas e suas causas são conhecidas, ambas definidas nas etéreas regiões do fetichismo “científico”: os movimentos da economia monetário-financeira-capitalista são manietados por funções e equações lineares, transformando as diferenças em igualdades. Sem pudor, criam jargões, repetem a exaustão, como os cânticos diários nos cultos religiosos.

Os “mídiamacro”, transformam a dinâmica em estática, ao descartar as evidências que apresentam os movimentos que assolam as economias monetário-financeiras capitalistas. Assim escorraçam a temporalidade e as insistentes flutuações de renda e emprego, sempre mobilizadas pelas forças da finança.

Pedimos licença para citar artigo de Nimesh Vora na Reuters essa semana: o enfraquecimento do dólar desde o início da Presidência de Donald Trump tem feito com que ele se torne a moeda de financiamento preferida para as operações de “carry trade“, fomentando fortes fluxos para moedas de mercados emergentes com maior rendimento.

Os carry trades financiados pelo dólar na rupia indonésia, na rupia indiana, no real, na lira turca, entre outras moedas, estão de volta à moda, disseram gestores de fundos. Em uma típica operação de carry trade, investidores usam moedas baratas para empréstimo a fim de financiar investimentos naquelas com melhores rendimentos. Os retornos são maiores se a moeda emprestada enfraquecer.

Fonte: Banco Central do Brasil

Cabe aqui a citação de um recente artigo do economista grego Yanis Voroufakis: “Também sabemos quem não está disposto a ajudar a reequilibrar o mundo: os Estados Unidos. Enquanto o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, se torna lírico sobre o reequilíbrio do comércio e dos fluxos de capital, o governo Trump para o qual ele está trabalhando está interessado apenas nos objetivos contraditórios de, por um lado, desvalorizar o dólar e, por outro, atrair quantidades ainda maiores de capital para os Estados Unidos – uma contradição que só pode ser resolvida por meio de coerção maciça que os EUA não têm poder e disciplina para implementar”.

Os “mídiamacro” encastelados nas simplificações da teoria quantitativa da moeda, insistem de forma até paranoica, em dividir o mundo em dois blocos, o lado real da economia e o lado monetário. O dinheiro vem de fora, é “externo” aos movimentos da economia. Assim, é descartada a condição endógena do dinheiro nos movimentos que afetam as decisões dos agentes. Uma desgraça cognitiva.

Nessa toada monetarista emerge outro sintoma preocupante, propagado aos quatro cantos, pretende garantir que a poupança determina ou financia o investimento, e para deixar qualquer alienista preocupado, nossos “mídiamacro”, separam investimento produtivo de investimento financeiro.

Vamos considerar as chamadas “operações de carry trade”. Essa forma financeira gira no mundo na casa de um trilhão de dólares, procurando ganhar dinheiro rápido e fácil. Valendo-se da arbitragem câmbio\juro- (para os leigos) trata-se da diferença entre as moedas e suas respectivas taxas de juros dos países.

Esse movimento está valorizando as outras moedas em relação ao dólar. Por exemplo, o real nesse momento. Perguntamos: aos “mídiamacro” essa valorização do real causada por esse influxo de uma operação financeira não interfere na determinação de preço nos produtos importados e exportados? Outra pergunta: por que essa “poupança “não vai para o investimento produtivo?

Pedimos licença e paciência ao leitor para novamente, desmascarar a narrativa dos “mídiamacro”. Recorremos às Sagradas Escrituras para registrar a luta de David contra Golias. A pedra atirada por David, além de certeira, tem que ser fatal.

No artigo publicado no Institute for New Economic Thinking, Thomas Fergunson disparou: “O contraste gritante entre o crescente papel financeiro e a formação real de capital está tornando a afirmação de que as finanças servem à economia real, na medida em que alguma vez foi verdadeira, bastante precária. Os fluxos brutos astronômicos que fluem pelos mercados monetários contemporâneos estão apenas obliquamente relacionados à atividade econômica real; uma alta porcentagem, provavelmente a maioria, origina-se de esforços para proteger-se dos riscos que o próprio processo, com toda a sua alavancagem e margens minúsculas, cria”.

Em seu artigo, Thomas Ferguson informa que a escala total de intermediação financeira é de cerca de 174% do PIB, enquanto o investimento fixo privado não residencial somou apenas 13% do PIB. É evidente que a maior parte da intermediação financeira (dos bancos paralelos) nos EUA não serve à formação real de capital em nenhum sentido.

Os desencontros da macroeconomia são evidentes. A busca obsessiva pelo equilíbrio em um ambiente marcado por flutuações do PIB.do emprego, da renda e dos preços. Nesse ambiente cognitivo sobrevive o dogma de dividir a economia em duas placas tectônicas: a placa do investimento-poupança se contrapõe à placa monetário-financeira.

Às vésperas da eclosão da crise financeira de 2008, prevaleciam a baixa inflação, a liquidez abundante e a avidez pelo risco. Muitos os analistas enveredaram pelos traiçoeiros caminhos do “excesso de poupança global” como causa das transformações nas economias monetário-financeiras capitalistas. No limbo dos mídiamacro repousa o crédito.

O economista Cláudio Borio, diretor da área monetária do Banco de Compensações Internacionais (BIS), descartou essa pretensão: “esta é uma visão das finanças excessivamente estreita e restrita, pois ignora o papel do crédito monetário (…) poupança e financiamento não são equivalentes em geral”. Lamenta o economista do BIS, “os fatores financeiros ainda flutuam na periferia do pensamento macroeconômico”.

*Manfred Back é graduado em economia pela PUC –SP e mestre em administração pública pela FGV-SP.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente). [https://amzn.to/45ZBh4D]


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