Por OSWALDO DE OLIVEIRA SANTOS JUNIOR*
A preservação do patrimônio (material e imaterial) se liga a manutenção da identidade cultural de um povo, aos laços culturais que constituem as relações sociais
Introdução
Em todas as Ciências Sociais Aplicadas, existe a preocupação com a precisão dos conceitos, ou seja, a forma de representar ou descrever os objetos concretos ou abstratos da realidade social. A análise, classificação e descrição dos objetos exigem uma abordagem metodológica capaz de dar conta da complexidade das diferentes realidades sociais. A reflexão sobre essa realidade (a memória, a história e as relações com os patrimônios) necessita de uma postura capaz de problematizar, interrogar e apontar para respostas diante das questões sociais e históricas que são apresentadas no cotidiano dos indivíduos e dos grupos humanos.
É correto observar que, na busca pela precisão dos conceitos nos deparamos, muitas vezes, com uma enormidade de variáveis possíveis que devem ser consideradas, analisadas e criticadas. Estas variáveis decorrem muitas vezes de diferentes “concepções de mundo” dos sujeitos que produzem e se relacionam com o conhecimento e com suas memórias e histórias. Portanto, as análises que se seguem, pressupõem uma abordagem histórica e crítica com o objetivo de delinear os conceitos que serão trabalhados ao longo do texto, tendo em vista, que eles são produtos de um processo histórico e que devem ser analisados no interior dele. (Leme, 2002, p. 95).
A partir desta constatação, Dulce Leme afirma que: “a realidade científica não será, portanto, a realidade espontânea e passivamente observada, mas uma realidade constantemente construída” (2002, p. 97) O mesmo devemos aplicar à história, visto que ela nunca será a “fotografia” de um passado, mas sim a construção deste passado a partir dos interesses hegemônicos do presente. O conhecimento histórico, portanto, não pode ser limitado ao estudo dos fatos e a reprodução do saber sem reflexão ou novas indagações e negações, ao contrário, ele necessita da afirmação e da negação permanentes, é, portanto neste processo dialético (abstração e concretude num só tempo) que se dá a construção dos conceitos e do conhecimento. Compreendendo que “a dialética é constituída pelas contradições reais, que se manifestam principalmente nos níveis político, social e econômico” (Sandroni, 2001, p. 174).
Diante dos fatos históricos, das memórias e dos patrimônios o profissional do turismo será sempre desafiado a perguntar, e a problematizar, ou seja, a buscar de forma dialética pelas reais motivações dos fenômenos sociais e históricos.
Desta forma este ensaio busca situar o conhecimento dentro de um processo histórico, social e político em permanente evolução e transformação, observando que os conceitos são resultados destes processos dialéticos.
História e memória
A história enquanto disciplina/ciência se desenvolve a partir do século XIX, assim o XIX pode ser entendido como o século da história, este surgimento está ligado à chamada “escola histórica positivista”, a Escola Histórica Alemã e a Escola Metódica Francesa, que levam a história à categoria de uma ciência. É a partir de então que se tem a profissão do historiador e tem início uma escrita da história com preocupações científicas e historiográficas. Em certo sentido que se tem antes não seria história. Assim iniciamos falando de memória, e como ela se expressa e de suas relações com a história.
Falar de memória (no Brasil) é tratar de um tema da “moda”, muitos falam em “preservação da memória”, do cuidado com a memória, e ninguém por mais incauto que seja arrisca afirmações que ameacem a memória (D’alesio, 1993, p. 97). Sendo assim, podemos fazer uma primeira indagação: afinal por que se dá este interesse pela memória, do senso comum à formulação das políticas públicas…?
É possível observar que é “nos momentos de ruptura da continuidade histórica que as atenções mais se voltam para a memória […]. A memória, neste caso, recompõe a relação passado/presente e é estratégia de sobrevivência emocional”
(Idem, ibid.).
No senso comum[1] a construção da memória é vista como um processo truncado senão impossível de ser realizado, neste contexto ouve-se expressões do tipo: “o povo brasileiro não tem memória”, “o povo brasileiro não conhece sua história” ou ainda “somos um país sem memória”. Ao mesmo tempo ouve-se: “precisamos valorizar a nossa memória”, “é preciso resgatar o passado”, “devemos recuperar nossa memória” ou por fim “precisamos preservar nosso patrimônio histórico e cultural”.
Além de certos termos não terem nenhuma relação com a história (como resgate), é curioso como estas expressões guardam formas de compreender a memória que são contraditórias e ambíguas, note-se, por exemplo, a afirmação de que o povo não possui memória, isto é totalmente falso, ou a de que o brasileiro não conhece sua história. Primeiramente deve-se perguntar qual a memória que não é preservada (a oficial ou a popular)? Da mesma forma a história que se desconhece, é necessário indagar pelos processos de construção da história, pelas omissões e falseamentos da realidade histórica.
A memória deve ser compreendia como a capacidade humana de armazenar dados e relembrar destes por meio de ações biológicas. Conforme observa o historiador Jacques Le Goff (2003, p. 419): “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações, ou que ele representa como passadas”. Assim, querer entender, por exemplo, que todo o povo brasileiro tenha a mesma memória é incorrer num enorme exagero, visto ainda que a memória sempre é seletiva, ou seja, ela escolhe o que será guardado, transmitido e interpretado.
A relação entre história e memória é complexa, ao mesmo tempo se complementam e se negam. História e memória não são sinônimas, a memória é múltipla, e é ao mesmo tempo lembrança e esquecimento, enquanto a história é a “reconstrução do passado”, é uma ciência de construção da sociedade, na medida em que narra o que deve ser lembrado, fará seleções e escolhas (políticas, ideológicas e outras).
No artigo “Entre memória e história: a problemática dos lugares” (1981), Pierre Nora irá refletir sobre os lugares de memória, compreendendo que são: “verdadeiros patrimônios culturais projetados simbolicamente e podem estar atrelados a um passado vivo que ainda marca presença e reforça os traços identitários do lugar” (Andrade, 2008, p. 570).
Há, portanto, uma relação entre História e memória, entre história e os lugares de memória, pois estes lugares são portadores reais das identidades dos grupos sociais.
Os lugares da memória
Há muitas formas de acesso à memória: os sons, cheiros, a narrativa da história, sabores e saberes, construções e ruínas, festas e cortejos etc. Todas estas formas não são senão lembranças, lugares de memórias, que guardam e produzem as identidades. A seleção do que ficará na memória resultará na identidade de um grupo/povo, por isso lembrar será um instrumento também de poder e de exclusão. Por exemplo, quando determinadas festas e tradições são mantidas, os grupos que as expressam são valorizados e preservados, enquanto quando outras são “esquecidas” os grupos são culturalmente silenciados pela história.
Nota-se que em sociedades que passaram por muitas transformações e destruições a memória é coisa que foge, que corre riscos, assim ela irá a busca de lugares onde ela possa se alojar, lugares onde a memória é guardada, como os museus, monumentos etc. O único problema é que ao ser assim preservada inevitavelmente irá ocorrer uma seleção, que nem sempre será discutida amplamente ou abarcará todos os lugares de memória de todos os grupos.
Contudo no mundo ocidental (pautado pela racionalidade analítica) será a história que irá definir quais os lugares de memória, quais os patrimônios serão preservados, por vezes estabelecendo conflitos com as memórias. Um exemplo disto é que os chamados Institutos de patrimônio histórico quem decidirá quais patrimônios materiais e imateriais, lugares, saberes e histórias serão ou não preservados.
Este processo de seleção pelo crivo da história e não da memória resulta das relações de poder estabelecidas na sociedade, onde os interesses do mercado ditam quais memórias devem ser preservadas, orientada sempre pela lógica da mercantilização dos lugares de memórias, tendo-se o risco do patrimônio histórico passar por um processo de “disneylandização”, ou seja, lugar não da preservação das identidades sociais, culturais e históricas, mas da mercadoria que é comercializada de diferentes formas até seu esgotamento ou descaracterização.
Para aprofundar esta questão, vale fazer um caminho pelas teses sobre a história de Walter Benjamin, para quem a história é feita pelos vencidos, que silenciam os “derrotados”. No processo de luta de classes a história silenciou os vencidos. É possível fazer esta constatação na tese número VI das “Teses sobre história” de Benjamin, onde se lê (apud, Löwy, 2005, p. 65): “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.
Conforme observa Michael Löwy (2005), a tese número VI de Walter Benjamin sobre a história, rejeita uma formulação historicista e positivista da história. Não é possível falar em neutralidade da história, e todas as vezes que isso de alguma forma é reforçado, o que ocorre de fato é a confirmação da “visão dos vencedores: dos reis, dos papas, dos imperadores”.
A produção dos silêncios da história, muitas vezes contou, em parte, com a firme colaboração dos historiadores, que, por exemplo, ao produzirem uma história nacional acabaram que por gerar a exclusão de grupos sociais.
A memória, seus lugares e patrimônios
Como vimos até aqui, a memória pode ser compreendida como a capacidade de conservar certas informações, esta propriedade decorre de um conjunto de funções psíquicas e sociais (Le Goff, 2003, p. 421). Nota-se que os lugares de memória são materiais, simbólicos e funcionais. Conforme observou Pierre Nora (1981, p. 21-22) “mesmo um lugar puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica”. O mesmo pode ser observado em uma sala de aula, um lugar funcional. “Mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, para uma chamada concentrada de lembrança”.
Visto assim, a noção de patrimônio material e imaterial deve ser compreendida sempre como complementar, dado que são materiais, funcionais e simbólicos simultaneamente.
Ao longo da história das sociedades humanas a memória se manifestou de cinco maneiras diferentes, isso interessa particularmente ao profissional do turismo, na medida em que trabalha com estes elementos em seu cotidiano. Estas formas foram: (i) A memória oral sem escrita – o saber valorizado era aquele decorado, no sentido estrito (saber décor[2]) . Também compreendida como memória étnica; (ii) A memória oral / escrita – “pré-história” / antiguidade; (iii) A memória oral / escrita – período medieval, que vivia em equilíbrio entre a oralidade e a escrita; (iv) A memória escrita – século XVI com a invenção da imprensa, que experimenta o progresso da memória escrita; (v) A memória eletrônica – período contemporâneo, com seus desenvolvimentos atuais da memória.
Para Jacques Le Goff (2003, p. 424-425), o domínio da memória étnica se faz de como memória coletiva, de transmissão oral em especial através dos mitos de origem. Contudo “é necessário sublinhar que, […] a memória transmitida pela aprendizagem nas sociedades sem escrita não é uma memória „palavra por palavra”. Essa transmissão está longe de ser mecânica, pois ela é contada e recontada de diferentes formas, exemplo disso são as diferentes “versões” dos mitos de origem entre os povos antigos.
A memória étnica ou sem escrita, gira em torno de três interesses principais: a idade coletiva do grupo, que se origina em certos mitos de fundação (de origem); o prestígio das famílias dominante expresso através das genealogias e por fim o saber técnico, “que se transmite por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa” (Le Goff, 2003, p. 427).
Com o surgimento da escrita ocorreu uma profunda transformação na memória coletiva. A escrita permitiu à memória coletiva um grande progresso: a comemoração, ou seja, a construção comunitária da memória sem a necessidade da oralidade. Os monumentos históricos, por exemplo, verdadeiros patrimônios materiais, comemoram e celebram feitos de um passado, assim como as inscrições antigas que se transformam em elementos auxiliares da história.
No Oriente antigo, por exemplo, as inscrições comemorativas deram lugar à multiplicação de monumentos como estrelas e os obeliscos. Na Mesopotâmia, predominaram as estrelas, nas quais reis quiseram, imortalizar seus feitos através das representações figuradas, acompanhadas de uma inscrição […]. Foram, sobretudo, os reis acádios[3] que recorreram a esta forma comemorativa. (Le Goff, 2003, p. 427)
A memória oral/escrita. O documento escrito foi outra forma ligada à memória, conforme observou Le Goff (2003, p. 428-429) este se deu em diferentes bases como folhas de palmeiras, ossos e peles de animais até finalmente chegar ao papiro, pergaminho e o papel. É importante ainda destacar que todo documento possui um duplo caráter o de monumento e patrimônio. Neste documento (monumento e patrimônio), ocorre ao mesmo tempo o armazenamento das informações que nos comunica através do tempo e do espaço fornecendo um processo de marcação além de assegurar a passagem da oralidade para o visual, o que permite a correção e a transmissão ordenada.
Os reis, por exemplo, na antiguidade criaram as “instituições-memória” que consistem em bibliotecas, museus, composições e documentos gravados em pedra, em que eram narrados seus grandes feitos, o que nos levou à fronteira onde a memória se torna “história. (Idem, p. 430).
A memória oral / escrita produz grandes transformações, como, por exemplo, a transformação dos mnemones[4] em arquivistas. As preocupações com as mudanças decorrentes da memória escrita, que na Grécia arcaica, até mesmo uma deusa da memória foi pensada, visto que o esquecimento era considerado mortal: a deusa da memória seria então Mnemósine, e seu papel é o lembrar as pessoas dos grandes feitos dos heróis e presidir a poesia lírica, assim todo poeta é possuído/inspirado / lembrado pela deusa Mnemósine, fazendo-o um adivinho do passado, que preserva a humanidade do esquecimento letal. (idem, p. 433).
A memória escrita, com a imprensa a memória experimenta uma revolução, pois ela alargou a memorização do saber. Criou-se, por exemplo, na Idade Média a palavra memorial, que esteve inicialmente relacionada às contas financeiras, um dossiê administrativo, portanto, transformando a memória num serviço burocrático, a serviço do centralismo monárquico (Idem, p. 455).
Já nos séculos XIX e XX observou-se o surgimento de novas expressões de memória, novos lugares de memória, como ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) em que foram erguidos inúmeros monumentos aos soldados desconhecidos mortos nas batalhas, ou seja: “A comemoração funerária encontra aí um novo desenvolvimento. Em numerosos países é erigido um Túmulo ao Soldado Desconhecido, procurando ultrapassar os limites da memória, associada ao anonimato, proclamando sobre um cadáver sem nome a coesão da nação em torno da memória comum”. (Le Goff, 2003, p. 460).
Nos séculos XIX e XX pode-se dizer que o fenômeno da memória coletiva se expressa definitivamente em torno da nação. Um outro elemento que no mesmo período revoluciona a memória é a fotografia, que trouxe o fenômeno da multiplicidade de memórias visuais.
Após estas breves considerações acima, é necessário (sem trocadilhos), trazer à nossa lembrança, que existe a memória verdadeira, que é aquela que se expressa no hábito cotidiano, no trabalho, nos saberes e sabores transmitidos em silêncio e a memória transformada em história, que perde sua espontaneidade. (Nora, 1981, p. 14).
A história por ser uma atividade racional e estruturada cientificamente, retira todo véu de sacralidade da memória, conforme observou Maurice Halbwachs. Assim: “A história reconhece o passado e quer conhecê-lo, portanto, é uma “representação do passado” e não sua vivência. A memória é inconsciente dela mesma, é, por isso mesmo, todopoderosa, autoritária, absoluta; a história é consciente porque racionaliza e neste sentido é sempre relativa. (D’Alessio, 1993, p. 101).
Novamente a relação história-memória-história é posta, a memória sempre será vista como um fenômeno atual, enquanto a história será a (re)construção e desconstrução destas memórias. O profissional do turismo como o historiador ficará sempre entre estas questões a memória e a história, sua preservação e problematização constantes.
Patrimônio cultural
A noção de patrimônio (patrimonium), possui uma trajetória na história, e se liga inicialmente à ideia de herança, bens materiais, coisas que se acumulam. Em um primeiro momento, na Roma Antiga, se relaciona aos interesses da aristocracia, já que a maioria das pessoas (plebeus) não possuía bens e não era sequer proprietária de terras. Nesta Roma Antiga não havia a noção de um patrimônio coletivo e público, “o patrimônio era patriarcal, individual e privativo da aristocracia” (Funari; Pelegrini, 2006, p. 11).
Na Idade Média, mesmo com a manutenção da aristocracia, com a ascensão do cristianismo, o patrimônio (cultural e histórico) ganha uma dimensão coletiva e simbólica, a experiência religiosa comum a uma imensa maioria conduz à um sentimento de pertença maior. “O culto aos santos e a valorização das relíquias deram às pessoas comuns um sentido de patrimônio muito próprio” (idem) e a valorização dos lugares e objetos de celebração cúltica.
No Renascimento, o terceiro momento desta história do patrimônio, há uma centralidade nos valores humanos em detrimento dos religiosos, ocorre a (re)valorização das expressões gregas, com as construções de monumentos e a criação dos antiquários (“lugares de memória”), que “faziam pesquisas com um não disfarçado orgulho local.” (Idem, p. 13).
O quarto momento desta breve história do patrimônio ocorre com o advento dos Estados Nacionais, um exemplo é a França, onde se consolidou a proposta de patrimônio como é compreendido modernamente. O debate sobre a cidadania que segue a partir da Revolução Francesa (1789) sinalizava para a igualdade de todas as pessoas na nação e apontava também para a comunhão de todos os valores culturais e patrimoniais do povo. A partir de então patrimônio passou a designar o conjunto de bens culturais de um povo, uma herança cultural capaz de construir as identidades nacionais.
Do ponto de vista sociológico há um aparente retorno e valorização das identidades culturais, que sofrerem um processo de invisibilidade social,[5] em especial após à formação dos Estados Nacionais, que buscaram elementos culturais abrangentes e excluíram as particularidades desrespeitando as diferenças, para forjar as identidades nacionais. Contudo é importante salientar que “a busca de uma identidade cultural é a busca de afirmação de uma diferença e de uma semelhança”. (Dias, 2006, p. 68).
Este retorno das identidades culturais, é um fenômeno que decorre também do enfraquecimento dos Estados Nacionais, muitas vezes incapazes de manter a coesão dos grupos, assim se dá: “A busca pela identidade num mundo cada vez mais heterogêneo, em que cada vez mais se inter-relacionam culturas que não mantinham contato direto, pois tais relações eram intermediadas pelo Estado Nacional, aumenta a necessidade de se inserir neste contexto global, e a busca de inserção é a busca por seus iguais, a busca por uma certa homogeneidade dentro da heterogeneidade”. (idem).
O patrimônio cultural no Brasil contemporâneo
A preservação do patrimônio (material e imaterial) se liga a manutenção da identidade cultural de um povo, aos laços culturais que constituem as relações sociais, por isso a legislação que protege o que irá ser denominado patrimônio é necessária. No Brasil esta proteção ocorre desde a Constituição Federal (1988) em especial em seu artigo 216, na seção sobre cultura do capítulo sobre educação, cultura e desporto, em que se lê que:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (i) As formas de expressão; (ii) Os modos de criar, fazer e viver; (iii) As criações científicas, artísticas e tecnológicas; (iv) As obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; (v) Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Nota-se claramente a preocupação com todas as formas de patrimônio, o imaterial e o material. Como se observa o conceito de patrimônio imaterial a partir da UNESCO define que: “O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana”. (Ministério da Cultura/IPHAN).
Enquanto o patrimônio material é definido como: “[…] um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza nos quatro Livros do Tombo: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis como os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; e móveis como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos”. (Idem)
Contudo é importante problematizar esta questão, visto que a definição do que será preservado passará pela história (pelos vários níveis de institutos de patrimônio histórico – federal, estadual e municipal) e não necessariamente pelos lugares de memória. Serão muitas vezes estes institutos quem irão definir qual patrimônio será preservado ou não, contudo vale destacar que os “bens de um povo” são características também da memória.
É possível observar esta questão na afirmação de Pedro Funari e Sandra Pelegrine (2006, p. 43): “Em nosso país [Brasil], as políticas públicas voltadas para a área cultural, particularmente aqueles referentes à proteção patrimonial, têm oscilado entre concepções e diretrizes nem sempre transparentes. Certo é que a maior parte das iniciativas neste campo se inscreveu nas esferas do poder federal, e que, não raro, sustentam interpretações díspares”.
No Brasil o órgão federal encarregado pelo patrimônio cultural é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) criado em 1937. A instituição que em princípio “foi confiada a intelectuais e artistas brasileiros ligados ao movimento modernista”, hoje está presente em todos os estados brasileiros com 25 escritórios, 4 centros culturais e 41 museus sob sua administração direta, com cerca de 250 mil bens sobre sua guarda. (Ministério da Cultura/IPHAN).
Ainda em nossa problematização sobre a questão do patrimônio cultural e suas formas de preservação, vale ressaltar que: “[…] os bens culturais são preservados em função dos sentidos que despertam e dos vínculos que mantém com as identidades culturais. No entanto, apesar da amplitude que o conceito de patrimônio cultural vem adquirindo, tendendo a contemplar as mais diversas formas de expressão dos bens da humanidade, tradicionalmente, o referido conceito continua sendo apresentado de maneira fragmentada” (Pelegrini, 2006).
É certo afirmar que o patrimônio cultural se assenta na memória do grupo, neste contexto, nota-se que a atividade turística acaba desempenhando um papel importante, tanto para a preservação como também para a descaracterização dos sítios (lugares), certo é que feito com responsabilidade e respeito às diversidades a atividade turística colabora para a manutenção e preservação dos patrimônios culturais e ambientais, assim como das identidades.
Outra questão é que as sociedades humanas ao se desenvolverem produzem riquezas materiais e imateriais, ou seja, “coisas” que a ela pertencem, que lhes diz respeito e possuem significados, contudo no processo de desenvolvimento econômico estes bens produzidos muitas vezes tornam-se empecilhos aos novos empreendimentos humanos que chegam iniciando um conflito entre o que deve ou não ser preservado como identidade cultural, a escolha nem sempre vai recair sobre aqueles patrimônios realmente significativos, até porque esta decisão nem sempre é possível, visto que tal escolha é por vezes a escolha dos grupos dominantes que silenciam as minorias.
*Oswaldo de Oliveira Santos Junior é Historiador, professor universitário aposentado e coordenador da pesquisa para o Memorial da Luta pela Justiça de São Paulo.
Texto publicado originalmente na revista Lutas Sociais da PUC-SP, DOI: https://doi.org/10.23925/ls.v28i53
Referências
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Notas
[1] O senso comum aqui deve ser entendido como a expressão “rasa” e alienada da história e da sociedade. Ele é, portanto, desprovido da crítica e da reflexão. Pelo senso comum a realidade é invertida e muitas vezes o falso é tomado por verdadeiro, criando a falsa consciência da realidade
histórica. Para o aprofundamento do conceito sugiro a leitura do livro Convite à filosofia de Marilena Chauí.
[2] Decorar é “guardar no coração”, “guardar na memória”, ou simplesmente recordar, pois no passado se entendia que o coração era o “lugar” que guardava as memórias. Rubem Alves, afirmou que: “Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno. Se preciso de agenda é porque não está no coração. Não é o meu desejo. É o desejo de um outro”.
[3] Região onde se localiza o atual Iraque, próximo de Bagdá.
[4] O mnemon é uma pessoa que guarda a lembrança do passado em vista de uma decisão de justiça. Pode ser uma pessoa cujo papel de “memória” se limite a uma operação ocasional. Em muitas mitologias o mnemon é um servidor dos heróis, que os lembra sem cessar das ordens divinas cujo esquecimento poderia trazer condenação e até a morte. (Le Goff. 2003, p. 432). Ainda hoje é possível observar em muitas comunidades religiosas indivíduos que se assemelham a estes mnemones, ou seja, aqueles que trazem na oralidade os preceitos e histórias do grupo.
[5] “O conceito de Invisibilidade Social tem sido aplicado, em geral, quando se refere a seres socialmente invisíveis, seja pela indiferença, seja pelo preconceito, o que nos leva a compreender que tal fenômeno atinge tão somente aqueles que estão à margem da sociedade. De fato, são essas as maiores vítimas da Invisibilidade Social (…)” PORTO, Juliana. Invisibilidade social e cultura de consumo. Disponível aqui.
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