Por JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA*
Karl Marx vinculará o desaparecimento do cristianismo em sua dimensão idealista-subjetivista-individualista, às circunstâncias nas quais a produção esteja finalmente posta “sob um controle [central] consciente e planejado”
1.
Em 1842, Karl Marx estava aparentemente mais para um hegeliano republicano e um democrata rousseauísta, anti ancien régime. Estava ainda longe de ter sido ganho para o comunismo por Moses Hess, pela via filosófica de uma combinação, inicialmente tosca, de Ludwig Feuerbach e George W. F. Hegel.
Karl Marx era então um jovem jornalista político radical e um defensor de causas nobres, que estudou direito antes de, caído por Hegel, preferir doutorar-se em filosofia. O futuro autor de O capital era, enfim, um advogado filosófico, humanitário, dos pobres e oprimidos, em pleno atraso semifeudal da Alemanha, em penosa transição para a modernidade e a secularização. Mas Marx não era só isso.
Num de seus mais conhecidos artigos dessa época, na Gazeta Renana, a propósito da lei sobre o furto de madeira pelos pobres, nas propriedades de seus senhores, nosso futuro materialista histórico, em dado momento, sustenta seu argumento, a favor dos primeiros, com uma imagem intrigante, da sociedade ideal como “o grande corpo sagrado do Santo Humanus”. Ele contrapõe tal imagem, de uma comunidade humana inteiramente una e harmoniosa, àquela de uma “humanidade animal”, dividida em diferentes espécies antagônicas, por falsos direitos que encobrem privilégios de desigualdade.
Tal seria, para ele, o caso de sociedades de tempos pré-cristãos, “em que a história humana era parte de uma história natural”, uma verdadeira pré-história, em que os deuses dos homens, como supostamente no Egito antigo, ainda apareciam disfarçados em diferentes “formas animais” particulares, e não na figura de um Deus único propriamente homem, como no cristianismo.[i]
Essas “espécies” (digamos, ao modo de classes sociais), em que o gênero humano se dividia, Karl Marx explica, não se integravam entre si por uma relação de igualdade essencial, mas por uma desigualdade perversa, “fixada pela própria lei”, que, em tais condições, ocultava uma “não-liberdade”. “Pois, enquanto a lei humana é o modo de existência da liberdade, a lei animal é o modo de existência da não-liberdade”.
2.
O mais notável, contudo, é que seria ainda assim, nos tempos de Karl Marx, anacronicamente, “em várias terras e entre vários povos”, um mundo de feudalismo escancarado, de uma humanidade dividida como um “reino animal do espírito” (expressão de Hegel para a sociedade civil burguesa).
É esse mundo bárbaro que Karl Marx põe em contraste com um mundo verdadeiramente humano, em que “a desigualdade seria apenas a forma refratada da igualdade”, como seria para ele o caso entre os “nobres membros” do referido “corpo sagrado de humanus”, iguais e universais ao ponto de poderem “livremente intercambiarem-se entre si” – tal como, bem mais tarde, Karl Marx vai conceber os seres humanos uma vez libertos da divisão do trabalho, finalmente homens, de verdade, no comunismo.
Naquele reino animal do espírito, ao contrário, os membros da sociedade se encontram separados pela força, as pessoas “literalmente postas em caixas separadas”. Em tais condições, Marx prossegue um tanto enigmaticamente, encontramos de novo uma espécie de “adoração de [diferentes] espécies animais”, própria daquela “religião primitiva”, “pois os homens sempre tomam como seu Ser Supremo aquilo que é seu verdadeiro ser”.
Em tal falsa comunidade, a única igualdade vigente é a que existe entre animais dentro de uma mesma espécie, não uma que se estenda ao gênero humano em conjunto. Nesse quadro, a unidade do gênero humano apareceria apenas, paradoxalmente, numa conduta hostil universalizada, entre espécies que afirmam sua “diferença”, uma contra outra, num mesmo e único “campo de batalha”.
Em tais circunstâncias, sua “fusão mais íntima”, entre espécies, se daria apenas, como que antropofagicamente, de modo desvirtuado, “no estômago do predador”. Se daria nesse estômago como o “órgão que as conecta todas,” como o perverso “cadinho” daquela “fusão” – uma “fusão” que, entretanto, em uma forma verdadeiramente humana, como no mito de humanus, seria, para Karl Marx, tão desejável quanto possível.
Assim é que, naquele feudalismo selvagem com jeito de capitalismo selvagem, segundo essa sua proto-crítica da economia política, Karl Marx vê, em vez do sagrado corpo de humanus, no lugar do gênero humano realizado, uma verdadeira pirâmide ou cadeia alimentar, animal, cada espécie ou classe social alimentando-se da outra. E isso até chegar à que está abaixo de todas, que cresce no fundo “como um pólipo”, diz Karl Marx, cujos membros são mortos pelos de cima, pela exploração de seu trabalho.
Trata-se daquela espécie que tem “apenas braços para colher os frutos da terra para as raças superiores, enquanto se alimenta a si mesma de pó”. E, para sustentação e perpetuação desse falso corpo ou falsa comunidade, dividida e piramidal, “as classes privilegiadas reivindicam” – em vez do “conteúdo humano”, universal, do direito digno do nome – a sua “forma animal”, que equivale a um direito sem mais verdade alguma, um direito que acoberta e garante o privilégio, que mascara (ideologicamente) sua face animal.
3.
Aparentemente temos aqui, nessas metáforas todas, apresentadas por Karl Marx, muitos dos motivos que, em versão mais secularizada, na forma de conceitos críticos filosóficos, vão acompanhar seu pensamento por toda a sua obra. E diante disso podemos indagar com novo interesse o que é mesmo o mito original de humanus, a que Karl Marx está recorrendo na Gazeta Renana, em 1842.
Pelo que nos interessa, seria o sonho de perfeição do ser humano, de uma humanidade harmônica inteira, em bases místico-especulativas que o genial Johann von Goethe expõe em seu poético Mistérios, em que esotericamente faz convergirem o divino e o humano, humanidade e infinitude, perfeição e imortalidade. Esta convergência é, para nosso misterioso Goethe, a “ideia mais gloriosa”, de um iluminismo mais profundo do que o francês, de uma união final de cristianismo e humanidade.
Uma ideia que seria ao mesmo tempo a expressão do trabalho da vida de seu amigo, Johann Gottfried von Herder, filósofo e teólogo, representado nos Mistérios como o próprio humanus, enquanto Goethe aparece na figura do jovem Marcus, que deve suceder Humanus depois de sua “partida”.[ii]
Na narrativa dos Mistérios de Goethe, Humanus, o humano realizado, é a cabeça, única, o centro, da comunidade reunida à sua volta, em busca de sua perfeição. Humanus, uma personalidade superior, extraordinária, por si só é o homem universal, o “ser-genérico”, em quem cada um de seus membros se reconhece, por uma semelhança particular, complementar à dos outros. Tal pessoa é, inicialmente, para eles todos, um denominador comum, como a ideia completa da perfeição desejada.
O espírito de Humanus representa o encontro do amor divino, do verdadeiro Deus, com a caridade humana, do homem verdadeiro. O que torna Humanus o suporte de todos aqueles buscadores, de um modo tal que, à sua partida ou morte, este homem singular, ao inverso, por sua excepcional influência, permanece vivo, encarnado neles todos enquanto reunidos, encarnado naquele grupo ou comunidade como seu próprio corpo – transpessoal, místico. E, assim, a morte ou partida de Humanus, nos Mistérios, coincide com a perfeição e harmonização realizadas de seus diferentes membros, como meta final, histórica, de toda cultura e religião anteriores.
É essa comunidade que esse primeiro Marx, de 1842, pôde conceber como o gênero humano redimido, ou chamado à redenção, por via das diversas religiões dos diversos povos, coroadas elas todas no cristianismo como religião do Deus-Homem, bem entendido, esotericamente traduzido. Pois, na narrativa mística de Humanus de Goethe, seus membros são como representantes do que há/houve de bom nos diversos povos do mundo através da história, expresso em suas religiões, na época de ápice e florescimento de cada uma, sem as degenerações que depois as têm acometido historicamente.
O ideal de humanus, nesse cristianismo esotérico, humanizado, seria como que uma síntese superior, de diferentes épocas e países, e é por isso que todos aqueles indivíduos, membros do corpo de humanus, independentemente de sua procedência, podem-se reconhecer nele. É por isso que humanus pode finalmente deixá-los, como Cristo pôde deixar seus apóstolos, doando-lhes, por sinal de sua comunhão, o sacramento da eucaristia, como a semente de constituição de seu corpo místico universal, a Igreja, em que o próprio Humanus/Cristo misteriosamente vive.
4.
Um par de anos depois, na sua primeira crítica da economia política, nos famosos Manuscritos de 1844, Karl Marx, já declaradamente comunista, coloca-se expressamente na esteira das críticas da economia anteriores, francamente humanistas (Deem uma olhada!), de Friedrich Engels e de Moses Hess (Marx poderia ter mencionado também a de Rousseau, na Encyclopédie). Aí, como bom alemão, Karl Marx nos apresenta sua versão do “humanismo panteísta-histórico” da época, estreado, entre os jovens hegelianos, por David Strauss, logo sucedido por Ludwig Feuerbach, como “tradução” comunalista do cristianismo, de Deus no homem, num humano essencializado.
“A morte”, diz Karl Marx nos Manuscritos, nos termos peculiares de sua especulação filosófica, “parece ser uma dura vitória do gênero [humano] sobre o indivíduo particular [ou determinado]”. Afinal o indivíduo nasce e morre, enquanto, graças a ele, o gênero se perpetua. Mas, felizmente, nosso filósofo acrescenta, não é nada disso, porque “esse indivíduo na verdade é apenas um ser genérico particularizado [ou determinado]”, que apenas “por isso é mortal” (cf. 3º. manuscrito).
Este ser humano (social) encontra sua sobrevida, infere-se, na sua “unidade” ou “fusão” com o gênero, l’Humanité, coisa que entretanto, como consciência, escapa à percepção dos indivíduos comuns. Mas isso nas circunstâncias sociais-materiais, obnubiladoras, da propriedade privada e da produção generalizada de mercadorias, que distorcem uma consciência/ percepção que, nos homens comuns, seria recuperada apenas no comunismo.
Para que o/a leitor/a veja como Karl Marx associa sua própria crítica da economia política a tal especulação humano-genérica, ele não está expondo esta em nenhuma seção mais estritamente filosófica dos Manuscritos de 44, como a última. Mas justamente naquela intitulada “Propriedade privada e comunismo”, em meio a considerações econômicas sobre produção, divisão do trabalho e dinheiro.
Em plena maturidade, nada menos do que em O capital,[iii] Marx ainda associará o cristianismo (aquele não efetivamente encarnado, não comunistamente convertido), enquanto “culto do homem abstrato” e ideologia por excelência, às circunstâncias sociais e econômicas de vigência da propriedade privada, e da produção e circulação de mercadorias. Do mesmo modo que ele aí associará essas duas circunstâncias econômicas, negativamente, à ideia de direitos humanos, ao liberalismo, ao utilitarismo, à economia política burguesa etc., para ele essencialmente ideológicos, alienados, porque ontologicamente individualistas.
Karl Marx dirá também, agora na Questão Judaica (de 1843), que seu adversário (antes mentor) Bruno Bauer traduz o mundano em teologia, enquanto ele, Marx, faz o inverso, ou seja, traduziria o teológico em mundano. Nas Teses ad Feuerbach (a 5ª.), de 1845, Marx alegará, enigmaticamente, que “todos os mistérios que desviam a teoria para o misticismo encontram sua solução na prática [social]” – uma vez revolucionada.
E, ainda em O capital,[iv] sua última crítica da economia política, ele vinculará o futuro desaparecimento e realização de tudo isso, misticismo e religião – em particular o desaparecimento do cristianismo tradicional, enquanto ainda contraditoriamente subjetivista/individualista (especialmente na sua forma protestante), ao desenvolvimento de um “organismo social” em que prevaleça o caráter “comum” (ocultado no capitalismo) do trabalho, realizado com “meios de produção comunais”, como propriedade de todos.
Karl Marx vinculará o desaparecimento do cristianismo em sua dimensão idealista-subjetivista-individualista, às circunstâncias nas quais a produção esteja finalmente posta “sob um controle [central] consciente e planejado”, e os produtores estejam “conscientes de si como uma única força social de trabalho”, até mesmo como um homem só e um corpo só, com o que aí desapareceriam a falsa (auto)consciência (individualista) e a própria religião (idealista-subjetivista) como tal.
Tal plena “comunhão” se dará, então, no comunismo, que Karl Marx chega a comparar às condições de unidade e plena autotransparência de um único indivíduo humano produzindo para si mesmo. (…).[v]
*José Crisóstomo de Souza é professor do Departamento de Filosofia da UFBA. Autor, entre outros livros, de O avesso de Marx: conversas filosóficas para uma filosofia com futuro (Ateliê de Humanidades). [https://amzn.to/3XGbMUn]
Notas
[i] MARX,K. Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), n. 298, 25 out. 1842, suplemento; primeiro texto de uma série de cinco “Debates sobre a lei do furto de madeira”.
[ii] Para mais sobre o Mistérios e o mito de Humanus, ver: GOEBEL, Julius. Goethe’s Geheimnisse. The Journal of English and German Philology, [s. l.], v. 15, n. 3, 2016. Identificador jstor-2770046. Herder, pai do historicismo alemão, sustenta uma filosofia da história, de fundo místico-especulativo, precursora de Hegel e do próprio Marx, e de uma “etnografia universal”, que reconheceria o mais verdadeiro da cultura de outros povos, especialmente da sua religião.
[iii] MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983. V. 1, p. 75-76, 145.
[iv] MARX, 1983. V. 1, p. 74-76, 145.
[v] Este texto é uma parte, ligeiramente modificada, do “Antelóquio” que introduz as seis conversas de O Avesso de Marx (Ateliê de Humanidades, 2024), sobre os pressupostos filosóficos, de alcance metafísico-especulativo, do nosso querido e genial Karl Marx, que a turma não consegue ver.
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